Old guys still got it

Segundo piloto natural
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A maior rivalidade? – Parte 2
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Em condições normais, uma crônica de esporte a motor tem ênfase na corrida em si – do apagar das luzes vermelhas (ou bandeira verde) até o agitar da bandeira quadriculada. O que acontece antes ou depois acaba sendo complementar, coadjuvante, servindo mais para contextualizar, além de dar algum tempero especial com curiosidades relevantes.

Mas a 105ª edição das 500 Milhas de Indianápolis tratou de subverter essa fórmula tão corriqueira. A corrida em si, claro, teve sua enorme importância de sempre, dado todo peso histórico que eventos por lá possuem. No entanto, quero chamar atenção para o fato que esta edição de 2021 teve o pós corrida mais espetacular de toda a história do Indianapolis Motor Speedway.

A vitória de Helio Castroneves foi de todo apoteótica, sobretudo quando, a duas voltas do fim, ele fez por fora a ultrapassagem (num competente Alex Palou) na qual assumiu definitivamente a liderança. Era possível perceber que a reação da torcida abafou e rivalizou com o som dos motores. Um momento mágico do esporte a motor começava a se desenhar.

Mesmo com um público reduzido nas arquibancadas, ainda devido à pandemia, era possível sentir todo o calor humano presente no autódromo, como se estivesse lotado, tal como nos dias anteriores ao maldito Covid. Todos prestavam reverência àquele que recebia a quadriculada e passava a integrar o grupo dos maiores vencedores do Speedway – assunto que vale uma análise mais adiante.

Foi interessante perceber que os presentes nas arquibancadas e no paddock entenderam de imediato o real tamanho daquilo que estava acontecendo. Não é todo dia que um piloto ganha o direito de figurar pela quarta vez no troféu Borg&Warner. De repente, toda aquela cerrada rivalidade que se viu na pista, em uma dura batalha pelo mais famoso litro de leite do mundo, esvaneceu-se. Testemunhamos, felizes, uma rara oportunidade em que o reconhecimento se desenrolou com tamanha intensidade.

O modo espontâneo e vibrante de Helio, quebrando todos os protocolos para escalar a cerca, sua marca registrada, levantou ainda mais a torcida, entre uma e outra comemoração, incluindo uma tentativa de volta olímpica com socos no ar à la Pelé. E então surgiu uma miríade de pessoas para cumprimentá-lo por sua grande vitória.

Primeiramente, claro, os membros da equipe Meyer Shank, ainda incrédulos com tudo aquilo. E então começaram a surgir pilotos genuinamente contentes em abraçar o vencedor do dia. O primeiro foi Marco Andretti, seguido pelo companheiro de time, Jack Harvey, entre outros. Logo chegaram Will Power e Simon Pagenaud, seus antigos companheiros de Penske, logo complementados pelo diretor da equipe, Tim Cindric, um velho conhecido.

Blessing

E então acontece aquela que talvez seja, para o futuro, a cena-síntese quando lembrarmos as 500 Milhas de Indianápolis de 2021: ao encontrar o mítico Mario Andretti, Helio curva-se e ganha um beijo de bênção, seguido de um espontâneo sorriso do ítalo-americano. Ficou até difícil saber quem estava reverenciando quem, tamanha fidalguia do momento. Podemos traduzir o momento como um “bem-vindo ao Olimpo, filho”.

Vieram mais cumprimentos, de gente do quilate de Johnny Rutherford, um tricampeão que agora saudava o novo tetra, e o Capitão (de tudo e de todos) Roger Penske, dono de equipe, da categoria e do autódromo, seu patrão por 20 anos e parceiro das outras três vitórias. Eram tantos abraços e apertos de mão que Helio demorou dezesseis minutos (!) para chegar ao pódio.

Fica a certeza que não haveria vitória mais popular em nenhum dos outros 32 competidores. Nem mesmo as pratas da casa. Sim, americanos são naturalmente patrióticos. Mas prezam ainda mais a grandiosidade de uma carreira vitoriosa.

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Para acontecer uma derrota, basta uma coisinha minúscula fora de lugar. Já para acontecer uma vitória é preciso uma construção inteira. A corrida de Castroneves foi uma construção de um autêntico tarimbado do Indianapolis Motor Speedway. Ficou claro que ele ficou testando suas possibilidades durante a corrida e conseguiu escalar o pelotão para ficar entre os primeiros num timing perfeito.

Dada a largada, Helio ficou correndo entre os cinco primeiros, mostrando consistência nos primeiros momentos, em que os pilotos vão estudando o ritmo dos rivais. Chamou a atenção dois fatos: o primeiro era de estar muito à vontade para passar por fora durante toda a corrida e o outro quando, por volta do giro 70, Helio deu uma “escalada” no pelotão, passando para a liderança para, logo em seguida, voltar a ceder terreno. Ali ele claramente estava prospectando suas reais possibilidades na corrida – se, de fato tinha carro para brigar.

E tinha.

Dado o pequeno número de bandeiras amarelas (apenas duas, resultando na mais rápida edição da história), não houve jogo com as janelas de reabastecimento. Os que tentaram alguma jogada, sucumbiram – incluindo o favoritíssimo Scott Dixon, pole e mais rápido nas principais sessões de treino. O neozelandês da Ganassi teve um atraso já no começo de prova e nunca pôde se reerguer.

Dixon foi um dos primeiros a ter problema. Indianapolis não liga pra favoritismo.

A partir da relargada na volta 125, começou a se desenhar a lista de favoritos da corrida. Helio, em posição forte, teria que brigar com Alex Palou, no outro carro rápido da Ganassi, Helio e o cada vez mais rápido Pato O’Ward, da McLaren. Palou tem 24 anos. Pato tem 22. É a soma exata dos 46 anos de Castroneves. Não há como não rir diante de uma situação dessas.

Na entrevista para a TV americana, Castroneves fez questão de ressaltar os veteranos como ele. “Old guys still got it”. Helio passa a ser o piloto com maior distância entre suas vitórias: 2001, 2002, 2009 e… 2021. Não só isso: passa a ser o único piloto da história a vencer após correr pela poderosa Penske.

A Meyer Shank Racing é uma equipe pequena, relativamente novata, oriunda do mundo da endurance. Contratou Castroneves apenas para algumas corridas, como forma de tentar expandir suas operações em definitivo para dois carros no futuro, contando com a experiência do brasileiro.

E para esse êxito, contou com uma fundamental parceria com a Andretti Autosport, com quem compartilhou dados por todo o mês de maio durante os treinos, iniciativa que também tinha a Honda como suporte. Neste ano, por sinal, os motores japoneses tiveram vantagem perante os Chevrolet, ainda que bastante tímida.

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A briga pela vitória: Castroneves x Palou

Já é algum consolo. Alex Palou pode até ter perdido a corrida, mas saiu de Indianápolis como líder do campeonato – que, por sinal, está bastante aberto, com seis vencedores em seis etapas.

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Após a boa vitória de Helio em 2009 (que teve ainda os resquícios do drama de ser acusado pela justiça americana de sonegação de imposto e conspiração – sendo devidamente inocentado) passei todos esses anos me perguntando se ele seria “um bom tetra”. Afinal, estamos falando do ingresso no panteão sagrado dos maiores vencedores da prova composto por lendas vivas nas figuras de AJ Foyt, Al Unser e Rick Mears.

Todos os acontecimentos após a bandeiradas não deixam dúvidas de que o ingresso a esse clube tão restrito é mais que merecido.

Como se não bastasse, alguns elementos do cartel de Helio chegam a ser superiores. Nenhum dos supracitados foi segundo colocado três vezes. E é um tanto curioso: a derrota mais dolorosa para Helio foi em 2014, numa tremenda batalha contra Ryan Hunter-Reay, em que o americano teve mais momentum e manteve a ponta na volta final, ganhando por apenas um carro de diferença.

E eis que para vencer pela quarta vez, Helio conseguiu escapar das tentativas de Palou ao dar de cara com um pesado tráfego na volta final. Os retardatários, no entanto, também estavam em ritmo forte e o último daquele pelotão acabou “puxando” Castroneves o suficiente para ele receber a bandeirada em primeiro.

O piloto que acabou involuntariamente oferecendo um providencial vácuo para o vencedor foi… Ryan Hunter-Reay.

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Termino o texto reafirmando: nenhum Andretti vence desde o beijoqueiro Mario, em 1969. E contando.

 

Abração!

 

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. wladimir disse:

    Bom dia, Lucas!
    Obrigado por mais um artigo empolgante! Helinho entra para a história como quarto tetra em Indianápolis 500 mostrando competitividade e vitalidade de causar inveja a muitos pilotos novatos e experientes de várias categorias. Lembremos que o próprio Mario Andretti foi campeão na F1 aos 38 anos, fez pole position aos 42 e, de volta à Indy, foi competitivo até a aposentadoria aos 53 anos. A vitória de Hélio evoca os bons tempos do automobilismo nos anos 70 e 80 quando aconteciam vitórias esporádicas de equipes pequenas, especialmente na F1 graças ao motor Ford Cosworth.
    Vamos voltar às Wing Wars, Lucas.

  2. MarcioD disse:

    Não perco as 500 milhas há anos, vale muito á pena assistir!

    Imprevisibilidade, situações inusitadas e muitas disputas com alternâncias de posição são o que não faltam. E tudo isso recheado com muita emoção!

    E que atuação magistral do Helinho: velocidade, talento e visão de corrida.

    E aos 46 anos em equipe pequena.

    Foi a melhor comemoração que já vi de um vencedor ali.

    Transmissão, narração e comentários muito bons do Geferson e do Mattar que transmitiram muito conhecimento e emoção.

    MarcioD

  3. Rubergil Jr disse:

    Belo texto Lucas. Que corrida, e que final! Foi muito emocionante mesmo. Quero deixar minhas pílulas aqui:

    De fato, 3 dos favoritos sucumbiram logo no começo, “vítimas” da trapalhada de Stefan Wilson: Dixon, Rossi e Kanaan. Um milhão de coisas podem acontecer e te tirar da disputa – Mario e Michael Andretti que o digam. Indy tem um quê de Le Mans, no sentido de quase “escolher” quem deve vencer ali.

    No final da corrida eu estava preocupado também com a estratégia do Sato, achava que ele conseguiria ir até o fim sem parar. Mas de fato, sem bandeiras amarelas não há espaço para estratégias.

    Aliás, a quase total ausência de bandeiras amarelas para mim tem 2 explicações.
    1) O altíssimo nível de confiabilidade dos equipamentos – acho que esta foi a primeira vez na história de Indy que não tivemos NENHUM abandono por quebra de equipamento. Isto também é absolutamente histórico. Por outro lado, tira um pouco da imprevisibilidade – mas tenha a certeza que Mario e Michael Andretti invejam e muito esta condição atual.
    2) Depois de uma prova mais acidentada em 2020, os pilotos perceberam que os carros com windshield não são aptos a disputas muito duras lado a lado nas curvas, portanto percebe-se que foram bem mais cautelosos nas disputas (houve apenas uma disputa roda a roda na curva 1 que não durou meia curva, não lembro quem foi) e na pilotagem em geral.

    Apenas na freada para os boxes o pessoal se embananou um pouco com os freios frios e tivemos lances até bastante perigosos protagonizados por, além do já citado Wilson, Will Power, Ryan Hunter-Reay e Simona de Silvestro – Wilson e Simona abandonaram ali mesmo.

    Ou seja, o único beijo no muro (Graham Rahal) se deu por uma falha na fixação da roda durante o pit. Aliás a dinâmica do acidente me lembrou muito o sofrido por Jeff Andretti em 1992, mas graças a Deus, Graham estava bem mais devagar e teve muito mais sorte.

    Por fim, apenas uma correção: Al Unser também tem 3 segundos lugares. E ainda tem 4 terceiros lugares. Ou seja: se Indy tivesse pódium, teríamos visto Al Sr. 11 vezes ali (de um total de 29 participações). Mas em percentual de pódiums, Rick Mears é inigualável com 7 pódios em 16 participações (e olha que Mears abandonou 5 vezes por problemas mecânicos e bateu uma vez).

    Quanto aos Andretti, Lucas, nem adianta contar mais. Marco é carta fora do baralho. E não creio que haverá outro Andretti correndo em Indy tão cedo. E o mesmo se aplica aos Unser – e fica aqui o registro de pesar pela morte recente de Bobby Unser, outra lenda em Indy.

    Abraços!

  4. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    ” A corrida de Castroneves foi uma construção de um autêntico tarimbado do Indianapolis Motor Speedway”

    Eu diria mais … Indianapolis parece ter sido feito para Helio Castroneves … é incrível como ele sempre andou bem lá … não sei quantas vezes ele correu as 500 Milhas mas suas carreiras sempre foram fortes e merecedoras de destaque.

    Num momento em que o automobilismo brasileiro passa por uma seca interminável de vitórias na Formula 1, poder assistir um brasileiro ganhar pela 4ª vez as 500 Milhas, se tornando um dos recordistas de vitorias, é algo sensacional e feito histórico para jamais ser esquecido …

    Foi uma emoção sem igual e há muito tempo não sentida !!!

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  5. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!

    Sou fã do Hélio Castroneves, e a emoção que ele nos proporcionou ontem, foi incrível, o cara fez uma prova brilhante, perfeita, e se falam que o Templo de Indianápolis escolhe quem vai vencer, deve ser verdade mesmo, pois Dixon era o grande favorito a vitória, mas, o Templo de Indianápolis mostrou que não era ele o escolhido, e sim Castroneves.

    Até então, Tony tinha sido o único dos brasileiros a vencer a Indy 500 sem as cores da Marlboro

    Agora Hélio também vence sem as cores da Marlboro.

    Abraço!

    Mauro Santana

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