Outra corrida quente demais…

Experimento social
06/02/2015
Segundo ato
13/02/2015

Tudo sobre uma das três daquelas que são apontadas como as corridas disputadas sob clima mais tórrido em toda a História da F1: o GP do Bahrein de 2005, o GP de EUA-Dallas de 1984 e o GP da Argentina de 1955.

No meu derradeiro texto de 2010*escrevi sobre a tórrida disputa do GP da Argentina de 1955, com a promessa de abrir o ano com o relato sobre o GP de Dallas de 1984, outro disputado na casa dos 40ºC. Vamos a ele.

De fato, seria mais fácil dizer simplesmente “GP de Dallas”, uma vez que foi o único, tamanho trauma que deixou na F1. Era a terra dos gastões magnatas do petróleo e que emprestava seu nome para o seriado de TV mais badalado daquela época. Dallas queria ser conhecida como “cidade de classe mundial” e um dos objetivos era ser incluída no calendário da F1. Para isso, contrataram Chris Pook, que organizava as populares e festivas provas em Long Beach (Califórnia) e, claro, colocaram um caminhão de verdinhas na mão do Tio Bernie para obter sinal verde.

O local escolhido para a corrida, que seria a 9ª do calendário, em 8 de julho, foi o Texas State Fair Park, uma área com várias atrações turísticas como museus, o aquário de Dallas e o estádio Cotton Bowl, que já foi casa do famoso time de futebol americano Dallas Cowboys e sediou o jogo Brasil 3 X 2 Holanda na semi-final da Copa do Mundo de 1994. De todos os lugares que a F1 visitou, talvez este tenha sido o mais bizarro de todos.

A título de ‘circuito’, fizeram uma coleção interminável de chicanes curtas, com dois hairpins obscenos, tudo entubado por muretas de concreto e telas de arame, que ainda por cima deixava todos os trechos parcial ou totalmente cegos. Mas o primor era mesmo o asfalto, que com o calor que já durava dias começou a derreter e ser arrancado aos torrões durante os treinos livres (que começaram com familiarização na quinta-feira), se desmanchando principalmente nos trechos de tangência até formar algo parecido com os facões de trilhas off-road.

Ainda havia mais agravantes. A F1 não estava sozinha em Dallas: a extinta Can-Am, com seus protótipos monstruosamente potentes, era categoria preliminar e também contribuiu para detonar o piso nos treinos e na corrida disputada no sábado, com 50 voltas em quase 1h50min de duração sob sol escaldante.

Tentando consertar a pista antes da corrida, a organização passou o warm-up para, vejam só, sete horas da manhã! Ficou famoso o ato de protesto realizado pelo sempre bem-humorado Jacques Laffite, que chegou ao paddock vestido de modo mais apropriadamente possível: de pijama. Entretanto, o folclórico francês podia ter voltado pra cama, já que o asfalto estava tão abominável que a sessão foi cancelada. Como compensação, pilotos teriam três voltas de reconhecimento antes da largada. A partir das 9h foram realizadas obras literalmente tapa-buraco que, claro, não iriam aguentar o tranco na corrida, antecipada das 13h para as 11h, e com 10 voltas a menos – 68 em vez de 78.

Resumidamente: terra desconhecida, calor do inferno, circuito horrível, asfalto desmanchando a 66ºC, público apático, corrida encurtada. E uma atuação heroica de Keke Rosberg, literalmente o mais ‘cabeça-fria’ entre todos os pilotos.

Keke fez o 8º tempo. A fila da frente era da Lotus-Renault, com a 1ª pole da carreira de Nigel Mansell, acompanhado por Elio de Angelis. O bigodudo finlandês ganhou uma posição ainda antes do sinal verde, quando René Arnoux, o 4º, não conseguiu dar partida na sua Ferrari na volta de apresentação e foi levado para os boxes.

Dada a largada, as Lotus mantiveram a formação, seguidas pela Renault de Derek Warwick. O novato Ayrton Senna, 5º do grid, não duraria muito no pelotão da frente. Rodou infantilmente na 2º volta em um trecho de asfalto remendado e foi obrigado a esperar todo o pelotão passar diante dos seus olhos até desvirar sua Toleman-Hart. Ele não teria êxito na tentativa de recuperação: além de um pit emergencial na 10ª volta, abandonaria na 48ª, sem embreagem, quando era 13º colocado. Imediatamente os dois da McLaren, Alain Prost e Niki Lauda, mais Rosberg, ganharam posições.

A partir daqui, volto a recorrer ao maravilhoso livro-revista “F1 – 50 Anos Dourados”, volume 3, de 2000, no qual o jornalista britânico Joe Saward explica sucintamente o que aconteceu em seguida:

Após algumas voltas, Warwick forçou a passagem e ficou em segundo atrás de Mansell. Na volta número 11 ele ameaçou tomar a liderança e rodou, indo de encontro às barreiras. O calor estava começando a fazer estragos. Além de Warwick, atingiram o muro Riccardo Patrese, Andrea de Cesaris, Johnny Cecotto, Patrick Tambay, Nelson Piquet, Marc Surer e Michele Alboreto. Os pilotos perdiam a concentração por um instante, perdiam o controle e batiam.

Na volta 14, Rosberg passou a ocupar a terceira posição e na 19 estava em segundo. Perdeu para Prost durante duas voltas mas então Alain cometeu um erro e Keke ficou novamente em segundo. Na volta 26 ele tomou a liderança de Mansell. O inglês havia atingido um muro e teve de parar nos boxes, mas Prost reagiu e ficou novamente na frente. Porém, na volta 57 até ele bateu. Logo depois aconteceu a mesma coisa com Niki Lauda. Fazia calor demais. O motor Honda – que havia passado a maior parte do ano explodindo – sobreviveu e Keke estava totalmente refrescado, pois usou um curioso “capacete frio” com a parte superior enchida com gelo que manteve sua mente concentrada. Notável também foi o incomum avanço de René Arnoux que, sem enfrentar problemas largou no final do grid para chegar em segundo. 

(É importante fazer uma ressalva às palavras de Saward: Piquet bateu porque ficou com acelerador travado em sua Brabham-BMW. A BT53 já estava equipada com aquele estranho radiador de óleo no bico do carro, fazendo os pés dele cozinharem tal como nas provas anteriores, em Detroit e Montreal, que ele venceu.)

httpv://youtu.be/W6X3qvT3b_o

De Angelis, àquela época mais constante do que nunca, completou o pódio texano, uma volta atrás. O falecido italiano foi seguido da outra Williams, de Laffite, 4º, que já ia com duas voltas de desvantagem e nenhum capacete gelado. Keke, por sinal, disse em entrevista pós-prova que havia conversado com Frank Williams sobre o tal capacete assim que Dallas entrou na agenda. Ele disse ter pago 2,5 mil dólares na peça, mas, claro, que havia valido a pena.

Para fechar com chave de ouro, o Gran Finale protagonizado por Mansell. Depois de amassar uma roda e perder a liderança, o Leão teve problemas de câmbio no final e o carro parou na reta de chegada. O inglês não teve dúvidas em pular do cockpit e começou a empurrá-lo nos metros finais. Contudo, não lembrou-se de que estava sob calor desértico e em questão de segundos perdeu os sentidos. Ele foi derretendo para juntar-se aos asfalto, em uma queda engraçadíssima em câmera lenta. Mansell teve dupla sorte: por pouco não foi atropelado pelo próprio carro e, se perdeu o 5º para a obesa Osella-Alfa Romeo de Piercarlo Ghinzani (única pontuação da Osella na F1!), ainda marcou um pontinho pelo 6º lugar, mesmo que o esforço de empurrar o carro não tenha ajudado nisso.

Que todos possamos ter um ótimo (resto de) verão e um ótimo ano!

Aquele abraço!

*Texto publicado originalmente em 19 de janeiro de 2011.

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

2 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    muito boa a lembrança. A temporada de 1994, apesar do dominio das Mclaren/Porsche do Lauda e Prost, foi possivel ver o Piquet dominando treinos e conquistando 9 poles no ano (recorde na epoca), a estreia de Senna na categoria e a volta da Honda à Formula 1 via Willians. Foi um ano que alem de Lauda e Prost, tivemos vitorias do Piquet (2 se não me engano), esta do Keke e a primeira vitoria de Mansel na Formula 1 ainda andando pela Lotus … fora cartão de visitas de Senna com aquele show de baixo de chuva em Monaco … foi uma temporada bem bacana

    Fernando Marques

    Niterói RJ

    • Fernando Marques disse:

      Me desculpem … leiam 1984 e não 1994 no meu comentário e a primeira vitoria de Mansel foi em 85 pela Willians … em 84 quem venceu também foi o Michelle Alboreto com a Ferrari … Mansel em 84 conseguiu uma pole position com a Lotus …

      Fernando Eduardo

Deixe um comentário para Fernando Marques Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *