Pilotando com Stirling Moss

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A ciência e a tecnologia são importantes molas propulsoras do avanço da humanidade. Sempre associamos a ideia de que um dia o homem será sobrepujado pela máquina, tal é a dimensão que a tecnologia tomou em nosso cotidiano. Um exemplo simples é que, hoje, qualquer deslocamento por mais simples que seja nos faz usar um aplicativo de geolocalização, os Wazes e Google Maps da vida. Até para caminhos já conhecidos costumamos usar.

Há, evidentemente, muitos outros exemplos de como as máquinas podem fazer nosso trabalho, e como tornam nossa vida, que é cada vez mais complexa, mais confortável; muitas vezes nos pegamos perguntando como vivíamos sem internet e sem smartphone. Previsão do tempo e trânsito é apenas um exemplo da facilidade ímpar que a tecnologia nos proporciona.

Só que nem sempre foi assim, é de se pensar como era a nossa vida antes dessas facilidades?

Recentemente adquiri o livro “The Racing Driver”, do jornalista Denis Jenkinson, e acabei lendo uma história bem interessante, que mostra a criatividade como um elemento que criou o que podemos classificar como sendo o primeiro Waze da história do automobilismo. Isso aconteceu em 1955, e que foi usado na Mille Miglia daquele ano.

A Mercedes formou uma combinação inusitada para aquela edição. Ao volante do espetacular modelo 300 SLR foi convocado o reputadíssimo Stirling Moss. Até aí nenhuma novidade. No entanto, a seu lado estaria um navegador, elemento que só era usado nos rallies, que na época não eram eventos de alta performance, mais voltados para amadores. Esse navegador era o jornalista Denis Jenkinson.

Após essa prova, ele escreveu um dos mais viscerais relatos já descritos em palavras sobre a participação de uma pessoa numa prova automobilística. O seu artigo “Com Moss na Mille Miglia” é conhecido como um clássico do jornalismo do esporte motorizado. O seu livro “The Racing Driver” foi baseado nessa sua experiência enquanto co-piloto e é um verdadeiro clássico, recomendado para a leitura dos apreciadores de corridas.

As suas notas sobre as corridas foram pioneiras, levando a que hoje todos usem o formato e estrutura como base para a escrita jornalística.

Essa edição de 1955 da tradicional Mille Miglia ficou marcada por ser a primeira vitória de um piloto britânico e a contribuição de Jenks foi inusitada e decisiva para a obtenção do resultado.

Mas vamos voltar ao início. Afinal, esta vitória não foi um acaso obtido no calor do momento, foi, sim, o resultado de semanas, até meses, de preparação e planejamento.

O entusiasmo de Jenkinson com a corrida Mille Miglia remontava muitos anos antes da edição de 1955. Entre as razões existia o fato de ser permitido transportar um passageiro, e ele já havia um tempo planejava a sua participação como um espectador privilegiado, estando dentro de um dos carros que participassem da prova.

Em 1954, ele conversou com o piloto americano John Fitch, também da Mercedes, sobre essa possibilidade. Dessa conversa entre eles, Jenkinson intuitivamente deduz que a única maneira que um não-italiano poderia vencer a Mille Miglia seria aplicando a ciência. Ele já havia pensado em fazer um mapa do percurso e como co-piloto ir passando as informações.

Enquanto isso, Stirling Moss já havia participado de quatro edições da famosa prova sem obter resultado expressivo. Sendo um circuito aberto durante o ano, era dificílimo decorar e ter certeza de todas as variáveis para se obter a maior velocidade possível. Na verdade, a coragem era um elemento muito mais utilizado pelos pilotos naquela época.
A dupla imaginada a princípio, entre Jenkinson e Fitch, dependia da decisão que a equipe Mercedes estava para tomar e assim confirmar um carro para a dupla.

Longas conversas sobre as maneiras e contribuições que um piloto poderia usar de um passageiro eram a tônica dessa turma. A ideia era de criar um “cérebro mecânico” que teria a responsabilidade de ajudar na navegação e assim vencer o desafio de decorar mais fácil o traçado da pista.

A ideia foi muito bem recebida pela Mercedes. Vale sempre lembrar que Alfred Neubauer, o chefe da equipe, era um entusiasta na acepção da palavra e inovações eram sempre bem recebidas por ele. Assim, eles receberam o OK da chefia para seguir adiante com o plano.

Só que no final do ano de 1954, Stirling Moss foi confirmado como novo piloto da Mercedes e se juntou a essa turma. A equipe decidiu que não seria possível para Fitch pilotar para eles na Mille Miglia, embora ele estivesse confirmado na equipe para Le Mans. Assim, todos os planos entre o americano e Jenkinson pareciam não ter nenhum proveito.

Então, pouco antes do Natal, com uma chamada telefônica, Moss convidou Jenkinson para ser seu passageiro na Mille Miglia em uma Mercedes-Benz 300 SLR, um convite que ele aceitou prontamente. John Fitch foi um verdadeiro desportista, tendo de comum acordo aceitado que era uma ótima estratégia da Mercedes usar Moss como o piloto a tentar bater os italianos na prova.

Jenkinson conta como foi o seu primeiro encontro com Moss após essa decisão:

Quando encontrei Moss, logo no início do ano para discutir o evento, eu já tinha um plano definido de ação. Durante o almoço verifiquei que ele tinha planos muito semelhantes ao meu, de usar o passageiro como um segundo cérebro que deveria cuidar da navegação, e quando juntamos nossas ideias e conhecimento acumulado uma grande quantidade de trabalho estava feito, o que permitiu um avanço extraordinário nas nossas atividades.

Das quatro edições anteriores da Mille Miglia, onde Moss havia participado, ele havia feito muitas anotações sobre o circuito, sobre passagens de nível instáveis, colina e pontos cegos, curvas perigosas e assim por diante, e como eu também sabia por ter anotado certas seções do percurso, todo esse conhecimento somado nos trouxe um mapa de cerca de 25% do circuito.

No início de fevereiro, a equipe Mercedes-Benz estava pronta para começar a testar, sendo o primeiro teste para o protótipo 300 SLR e um reconhecimento da pista em duas voltas que nós completamos. Esse primeiro teste terminou com um pequeno acidente que danificou bastante o protótipo.

Continuando a sua descrição sobre aquela época, Jenkinson falou:

Ao fazer este teste eu fiz anotações. Algumas delas ficaram bastante garranchadas devido a minha tentativa de escrever a 240 km/h, mas quando parávamos para o almoço, ou para a noite, passávamos o tempo todo discutindo as estradas, o que tínhamos coberto e eu transcrevia todas as minhas anotações.

Nossa maior atenção eram em lugares onde nós poderíamos quebrar o carro, tais como passagens por ferrovias, locais muito acidentados, súbitos aclives ou declives que fariam o carro mergulhar na estrada, superfícies ruins e assim por diante. Então nós classificamos todos os cantos difíceis com códigos e nomes que só nós entenderíamos, nomes como “atrevidos”, “desonestos”, “muito perigosos” e “pista escorregadia”, sendo um sinal de mão diferente para indicar cada tipo.

Cada situação era devidamente catalogada e, criado o código de mão para sinalizar, como nós fomos juntos, Moss me indicava sua interpretação das condições, enquanto eu anotava onde e alguma referência como uma pedra e qual o quilômetro, mais ou menos. Nossa tarefa foi facilitada grandemente pelo fato de que há uma pedra em cada quilômetro nas estradas italianas, e eles são numeradas em grandes figuras.

Ao longo de todo este trabalho preliminar, Moss ficou impressionado com todo o detalhamento que Jenkinson estava fazendo. Ele sabia da importância de não cometer erros, e que haveria uma boa vantagem se ele pudesse acelerar de forma plena sem medo de sofrer um acidente ou uma quebra.

Jenkinson disse-lhe que ele não precisa se preocupar, afinal, ele estaria ao seu lado e caberia a ele prezar pelo bem estar da dupla acima de tudo. Eles concluíram o trabalho com uma descrição da pista onde finalmente 100% do percurso havia sido mapeado.

O desafio seguinte foi o de organizar e estruturar todo esse material. Com 17 páginas de notas, havia de fato muita coisa para orientá-los no percurso, mas num carro que alcançava 300 km/h, era muita coisa a ser levada.

Todos os detalhes da rota foram aprimorados e Jenkinson escreveu tudo numa folha especial de papel com cinco metros e meio de comprimento. Moss teve a ideia de projetar uma caixa com um sistema de mapa-rolo e no último treino eles usaram esta máquina, com enrolamento do papel do rolo inferior para o superior, as notas iam sendo lidas através de um visor. A máquina era selada com acrílico para preservar o papel no caso da corrida na chuva.
Era, sem sobra de dúvidas, o primeiro Waze ou GPS da era moderna. E tudo arranjado pela astúcia e criatividade do homem.

Eles fizeram uma volta completa em um carro de passeio, o famoso 300 SL Asa-de-Gaivota, como uma espécie de ensaio geral. Este carro era ideal para esse treino por ter uma boa velocidade (era o carro de rua mais rápido do mundo na época) e aceleração que dava para reproduzir quase que as condições da corrida, enquanto eles podiam falar entre si sempre que necessário, embora normalmente a conversa já fosse sendo feita à base dos códigos de mão.
Agora a Mille Miglia estava se aproximando e durante toda essa fase final de preparativos o entusiasmo na equipe Mercedes era crescente. Na primeira 300 SLR, número 658, correria o piloto número 1 da Mercedes, Juan Manuel Fangio, sozinho. Na outra, 702, a dupla Moss / Jenkinson. E a Mercedes ainda inscreveria sua 300 SL de rua, número 417, para John Fitch.

A corrida foi disputada nos dias 30 de abril e primeiro de maio. O sistema de sinalização e a caixa de informações de fato se traduziram numa vantagem importante para a dupla Moss / Jenkinson e eles terminaram a prova como grandes vencedores, com uma vantagem de quase 32 minutos sobre Fangio. Fitch ainda levaria sua 300 SL para uma honrosa quinta colocação, à frente de muitos carros de competição, completando a lavada da Mercedes na corrida.

De volta ao hotel após a prova, Jenkinson descreveu o seu sentimento:

Eu estava com um justificado sentimento de exaltação que deitei-me na banheira em um banho quente, de ter tido a experiência única de estar com Stirling Moss em toda a sua movimentação épica, sentado ao lado dele enquanto ele trabalhava como nunca vi ninguém trabalhar antes na minha vida e mais difícil e mais do que jamais pensei que seria possível para um ser humano fazer.

Foi realmente uma experiência única, a maior experiência em toda os 22 anos durante o qual estou interessado em corridas de motor, uma experiência que foi além da minha imaginação mais selvagem, com um resultado que alcançamos que até agora eu sinto que é extremamente difícil de acreditar.

[…] quem vence a Mille Miglia é um piloto, o carro que ele usa é um carro esportivo que está a seu dispor. Agora, repito com os conhecimentos que aprendi nessa corrida, eu sei o que estou falando e escrevendo quando, de fato, o piloto que está lá faz a diferença.

Me impressionou bastante tanto a criatividade como o relato de Jenkinson. Esse primeiro experimento, com o uso de uma estratégia bem mais elaborada, só confirmou que, mesmo com o melhor dos aparatos, a importância de o piloto ainda era fundamental ao volante de um carro.

Deixo a pergunta aos amigos leitores: será que podemos dizer o mesmo dos tempos atuais?

Um abraço,

Mário

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

4 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Grande texto Salu!

    E faço minhas as palavras dos amigos Chiesa e Fernando.

    Outros tempos de um outro mundo.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  2. Fernando Marques disse:

    Mario,

    com relação a sua pergunta o Chiesa disse tudo … mas fico aqui imaginando a coragem deste jornalista em participar da corrida como navegador … pensa bem sem cinto, sem capacete,velocidade de 240 Km/h … o cara foi cabra macho pra caramba … há pouco vimos na TV o Galvão Bueno dando uma volta de stock car com seu filho Cacá também a 240 km/h e pela cara dele na certa se borrou todo … e assim complementando as palavras do Chiesa, acho que hje não temos mais um jornalista como este Jenkinson, pelo menos no que se diz a coragem …
    Adorei o video … principalmente vendo aquela Mercedes saindo do avião … há pouco vi uma rodando aqui em Niterói, bem parecida, inclusive com teto solar similar passeando como se fosse um carro zero bala de tanto que brilhava …

    Fernando Marques
    Niterói

  3. Carlos Chiesa disse:

    Excelente, Mario. Sobre sua pergunta, acho que não, os pilotos não fazem mais tanta diferença. Os engenheiros são seus companheiros de bordo, e a telemetria seu Waze. Não há dúvida de que aqueles tempos eram muito mais perigosos, mas muito mais interessantes.

  4. Rubergil Jr disse:

    Que delícia de texto. Arrepiante imaginar como deve ter sido a experiência de Jenkinson!

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