Piorou porque melhorou

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Recentemente, assisti “Chico: Um Artista Brasileiro“, documentário que celebra a arte e a vida de Francisco Buarque de Hollanda, para muitos o maior compositor brasileiro. O material não é recente, é de 2015, e por isso algumas das frases e posicionamentos de Chico podem soar estranhas hoje em dia. Porém, me chamou muita atenção uma afirmação feita por Buarque: “muitas coisas pioraram porque melhoraram”, ele diz. Buarque ilustra a definição com dois exemplos: antigamente, viajar de avião era muito chique, as pessoas iam de terno, era todo um protocolo, você, com sorte, experienciava aquilo algumas vezes na sua vida e, por isso, tinha memórias afetivas como passageiro do veículo. Acontece, porém, diz Chico, que a grande maioria das pessoas não tinham, na verdade, condições de usufruir deste meio de transporte. Portanto, se hoje não há mais glamour em voar, é porque se tornou algo mais acessível e comum a mais pessoas. Em seguida, Chico surpreende ao falar de música, dizendo que a Bossa Nova nunca foi canção popular de fato, que era feita por e para uma elite, e que não representava nem o gosto nem a realidade do Brasil, nem mesmo à sua época, e afirma que a “qualidade” da música atual aparentemente piorou, mas é porque oportunizou mais, deu mais voz e mais liberdade à cara do Brasil virar música, gostemos ou não.

Todo esse introito para falar da Fórmula 1 de hoje: ela piorou porque melhorou. Quanto de nós não nos revoltamos com a série de mudanças que vêm atacando o esporte? Eu mesmo não canso de repetir a afirmação de que a Fórmula 1 não é mais o mesmo esporte, e resulta inútil, numa conversa mais séria, comparar os feitos dos grandes nomes atuais aos dos maiores craques do passado, até mesmo aos de Schumacher. Com isso, não estou afirmando que Hamilton (e também Vettel) seja inferior a Fangio, Senna, Clark, Schumi ou quem seja: simplesmente não se pode comparar, praticamente já não há mais nada — como no Basquete, Futebol, Tênis e outros esportes, em que, apesar de MUITOS acintes desportivos e da franca evolução da fisiologia, certos alicerces nunca foram quebrados — que coloque em pé de igualdade os desafios, as dificuldades e as métricas de lá e cá  (e, de novo, não afirmo aqui que o recente/atual seja inferior): é incomparável.

O mais recente GP da Bélgica foi absolutamente frustrante: uma “corrida” que teve duração de pouquíssimas voltas – e todas atrás do Safety Car. Adiamentos até o limite do horário de tempo. E, por fim, o cancelamento.

É óbvio que quem sintoniza na corrida não está interessado em justificativas: quer o espetáculo. Quem pagou para estar no autódromo, nem se fala.

O meme não resiste: em 1998 tivemos uma largada que mais parecia boliche. Antes de chegar na Eau Rouge, quase todo o grid bateu após Coulthar escapar. 7 carros ficaram inutilizados. Outros ainda conseguiram retornar, depois de ajustes. Pneus voaram. Um deles “passeou” pela proteção. Outros seguiram seu rumo monociclo pela pista. Ninguém se feriu, por milagre.

Em 2021, preferiram não arriscar. Mas já foi dito que haverá uma análise no que pode ser modificado, eventualmente.

Ora, piorou porque melhorou.

No GP da Itália, vimos Max Verstappen e Lewis Hamilton adotando o velho estilo Senna-Mansell de guerra: não se tira o pé. Ou um dos dois desistem, ou os dois batem. Voto “Incidente de corrida” a batida entre ambos ao final da reta.

Mas o destaque aqui é a impressionante imagem do carro de Max por cima de Hamilton: como muito bem destacou meu querido amigo João em sua última coluna, “em menos de um ano, o Halo salvou a vida de dois pilotos de F1.”

João relembra que continua achando o aparato feio — sandália Havaiana –, mas é por causa dele que vidas estão sendo salvas.

Ora, piorou porque melhorou.

E a tal “minicorrida” aos sábados, a sprint race, com distância de 100km (1/3 da prova normal)? Segundo os organizadores do campeonato que vieram com essa ideia, será necessário pensar em mudanças no formato. Mas não pensam em aboli-lo, não: dá mais “graça” às sextas-feiras, no sábado o público se diverte mais, inflama a disputa no campeonato (afinal, um piloto pode acabar marcando 29 pontos num único GP!), “bagunça” o grid do domingo e ajuda a ver os favoritos com mais dificuldades — por consequência, possibilita vencedores novos. Contudo, a mim não me agrada por ser um atentado contra alguns dos princípios do esporte.

Ora… piorou porque melhorou.

E finalmente estreou o documentário sobre Schumacher, disponível na Netflix. Não tenho aqui objetivo de resenhar o material — provavelmente o façam aqui no site, em breve –, mas de dar minha impressão pessoal. Acredito que teria pouco ou nada acrescentar ao texto que publiquei 7 anos atrás, no aniversário de 45 anos do piloto, então já sofrendo havia dias após o terrível acidente de esqui.

Como defino no texto, muito da minha paixão por Fórmula 1 tem a ver com Schumacher. Acompanhar seus feitos era como ver Mike Tyson lutando no final dos anos 80/início dos 90, ou então como acompanhar Novak Djokovic de uns 6 anos pra cá: a certeza de estar diante de alguém que, quando não vence, era zebra. Isso acaba gerando uma “antipatia” natural das pessoas — não estou passando pano pra nada do que Schumacher tenha feito e, aliás, o documentário tem esse mérito –, que querem vê-los destronados ao mesmo tempo em que sabem estar testemunhando algo raro, se não único.

No entanto (e acredito que o documentário também poderá atingir os “não fãs de F1”), o que mais me marcou na película – e me levou às lágrimas em alguns momentos – foi poder ver os depoimentos de Mick, Gina-Marie e Corina. Em tons confessionais ao mesmo tempo que serenos, pouco lhes importa que/se Schumacher tenha sido o melhor de todos os tempos ou tenha lhes proporcionado o maior conforto que o dinheiro possa trazer: era o pai, o marido, o amigo, o herói, o protetor, o brincalhão, o homem com um propósito.

Quando me lembro de Schumacher na Fórmula 1 (antes da Mercedes GP, claro — e o documentário também aborda de forma natural o retorno aquém do esperado), me lembro de mim mesmo: tudo que busquei entender da história da categoria nasceu com ele e seus domínios. As revistas, os fóruns de debate virtuais, o Forix… e o GPTotal. Tão difícil quanto ver Schumacher perdendo era conseguir ter acesso aos materiais históricos da F1 por completo. Hoje, temos acesso a tudo, e muito mais gente vai poder conhecer sobre o alemão recordista e sua história através do documentário. E, caso se interessem, terão tudo no youtube e um momento de estatísticas e análises em quase todas as línguas.

Como disse Chico Buarque…

Abraços,

Marcel Pilatti

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

2 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Marcel,

    um texto bem reflexivo
    fruto do politicamente correto
    que faz do mundo como bem diz o Chico…

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Mauro Santana disse:

    Concordo com tudo que disse neste belíssimo texto, amigo Marcel!

    Grande abraço!

    Mauro Santana

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