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Pioneira, tresloucada, visionária, transviada, corajosa, luxuriante... Adjetivos para descrever Hellé Nice, ícone do automobilismo dos anos 30

Há algumas semanas*, uma declaração do piloto Jenson Button correu o mundo por conta de seu conteúdo machista. Também aqui, no GPTotal, a polêmica rendeu, como tema da minha última coluna (“Homens pequeninos que têm medo de mulher”, publicada em 03/11/2005). Ganhei manifestações de todos os lados – contra e a favor do meu protesto feminista. Ganhei, também, uma bela instigação da escritora e compositora Vange Leonel, que me sugeriu escrever sobre Hellé Nice. Se você não conhece Hellé Nice, não se preocupe: embora tenha sido um ícone dos anos 30, no século passado, ela morreu idosa e anônima, transformando-se num fantasma para a própria família.

Pioneira, tresloucada, visionária, transviada, corajosa, luxuriante… Adjetivos para descrever essa mulher, nascida Mariette Hélène Delangle, teriam origens e nuances variadas, de acordo com o juízo de valor que se queira imprimir a tão intensa existência. Hellé Nice nasceu em 1900, em uma pequena cidade francesa, não muito distante de Paris, e com dezesseis anos se aventurou pela capital. Arranjou emprego como dançarina em um teatro e consolidou carreira em poucos anos, já adotando o nome com o qual se notabilizou. Ficou famosa a ponto de excursionar por toda a Europa. E tão rica que tinha até iate, além da casa que comprou com o dinheiro ganho nos cabarés mundo afora.

Naqueles tempos, começo da década de 1920, Paris era a mais efervescente metrópole do mundo. Tudo e todos de importante estavam lá, inclusive a nascente indústria automotiva, que aproveitava o foco na capital francesa para promover eventos, como corridas de carro. A já consagrada dançarina e modelo Hellé Nice encantou-se com a ideia de correr de automóvel. Por essa mesma época, jovem e atlética, também se dedicou a esquiar na neve. Um acidente ao descer uma montanha rendeu-lhe uma fratura no joelho, encerrando sua carreira de dançarina profissional. Joelho quebrado, desempregada, a paixão pelos carros: Hellé Nice jogou-se de corpo e alma nas corridas e fez delas sua nova profissão.

A primeira corrida foi em 1929, em Montlhéry, uma prova só para mulheres, e Hellé Nice venceu. Apoiada na grande fama que já a cercava antes de se tornar piloto, excursionou pelos Estados Unidos no ano seguinte, participando de várias corridas em solo norte-americano. De volta à Europa, conheceu o barão Philippe de Rothschild, com quem iniciou um relacionamento amoroso. Ele também já havia corrido de carro e a apresentou a Ettore Bugatti, que a essa altura já tinha sua equipe vitoriosa no circuito Grand Prix. Bugatti achou interessante acrescentar uma mulher ao time e convidou Hellé Nice, que fez sua estreia em 1931, competindo contra as maiores estrelas da época, todos homens.

No primeiro ano, foram cinco corridas. Foi um furor tremendo. Hellé Nice fazia questão de portar-se com toda feminilidade naquele mundo predominantemente masculino. Atraía a atenção da imprensa e dos espectadores por onde passasse o “circo” do Grand Prix. Não, não venceu nenhuma corrida nem neste nem nos anos seguintes, mas competiu de igual para igual contra os grandes pilotos do período entre guerras, como Tazio Nuvolari, Robert Benoist, Rudolf Caracciola, Louis Chiron, Bernd Rosemeyer, Luigi Fagioli e Jean-Pierre Wimille, terminando à frente de muitos deles em várias ocasiões.

Como era comum naquela época, os pilotos do circuito Grand Prix corriam também em outras categorias, inclusive fora da Europa e dos Estados Unidos. Foi nessa circunstância que Hellé Nice veio parar no Brasil, em 1936, para disputar duas corridas, uma no Rio (Circuito da Gávea) e outra em São Paulo (Circuito do Jardim América). Pausa.

Estamos falando de um longínquo e provinciano país, setenta anos atrás. Se o Brasil se escandalizou com a atriz Leila Diniz, no final dos anos 60, qual deve ter sido a sensação da sociedade local ao ver desembarcar, trinta anos antes, uma mulher que pilotava carros, fumava em público, usava biquíni e trocava de amantes ao sabor de suas paixões fulminantes? Foi um assombro absoluto. Minha avó materna Elza, que morreu em 2000, com 80 anos, lembrava-se vividamente de Hellé Nice. A mãe da Vange Leonel, que tinha só seis anos na época, também se recorda. E, do espanto à admiração, um pequeno passo: você já reparou como há senhoras nascidas no final dos anos 30, começo dos 40, aqui no Brasil, chamadas Helenice?

De fato, o que Hellé Nice viveu por aqui não foi pouca coisa. Durante a prova do Jardim América, em São Paulo, ela se envolveu no mais grave acidente de sua carreira. As versões para o fato são numerosas e contraditórias quanto às razões. Alguns dizem que um soldado atravessou a pista na frente de seu Alfa Romeo, fazendo-a perder o controle do carro. Outros afirmam que ela foi desviar de alguma coisa atirada no trajeto, perdeu o controle e saiu da pista a mais de 160 km/h. Certo é que seu carro voou sobre o público, provocou a morte de quatro pessoas e feriu outras trinta.

Atirada para fora do veículo, Hellé Nice caiu em cima de um soldado, que também morreu com o impacto, enquanto a piloto saía do circuito em coma, estado em que permaneceu durante três dias. Ficou dois meses internada no Brasil, ganhando uma aura heroica junto à imprensa e à população. O acidente marcou-a tão profundamente que ela nunca mais falou publicamente sobre o trauma.

Voltou para a Europa, depois de recuperada, e tentou retornar às pistas, para correr a Mille Miglia italiana e o Grand Prix de Trípoli, que distribuía grande soma em prêmios. Sem conseguir a estrutura adequada, desistiu e foi participar de uma prova de endurance com outras quatro mulheres, que se alternavam ao volante durante dez dias e dez noites, estabelecendo um recorde de resistência que permaneceu durante muitos anos. Tinha esperança de voltar a pilotar os Bugatti, mas em 1939, dois fatos sepultaram seus planos: a morte de Bugatti, testando um dos carros da equipe, e o começo da Segunda Guerra.

Em 1943, em pleno período de ocupação nazista na França, mudou-se para o sul, para a Riviera Francesa, e lá ficou até o fim da guerra. A retomada das corridas aconteceria no final da década e, em 1949, Hellé Nice animou-se para correr o primeiro rali de Monte Carlo pós-guerra. Além do mais, a corrida aconteceria praticamente no quintal de sua casa, já que ela continuava morando no sul da França. Uma grande festa pré-evento marcou a volta da competição e lá estava a piloto sensação dos anos 30. No sofisticado ambiente, o monegasco Louis Chiron, piloto de fama e colecionador de títulos, irrompeu pelo salão falando em altos brados com Hellé Nice, acusando-a de ter se tornado colaboracionista do nazismo no período da guerra.

Naqueles tempos, isso era como ser acusado de comunista na Guerra Fria. Embora nem Chiron, nem ninguém, jamais tenha provado tal envolvimento, a carreira de Hellé Nice encerrou-se ali. Não me furto a uma análise histórico-feminista do fato: ao longo dos séculos, mulheres fortes, inteligentes, cultas, corajosas e/ou pouco convencionais sempre sofreram perseguição, até o confinamento ou sua eliminação do convívio social. Na Idade Média, eram acusadas de bruxaria, queimavam vivas na fogueira. No meio do século passado (o que é praticamente ontem, na história da humanidade), continuamos a alijá-las de seus direitos, ainda que sem fogueira.

A acusação de Chiron jogou Hellé Nice no ostracismo completo. Perdeu patrocinadores, nunca mais conseguiu correr e seu nome, durante várias décadas, sequer frequentou a história e as estatísticas do automobilismo do século 20. Sem fama, sem dinheiro, foi aos poucos abandonada pelos amigos e pelos amantes. Continuou morando em Nice, no sul da França, mas passou a viver sob outra identidade.

Algumas reconstituições de sua vida apontam que ela viveu o resto de seus dias chefiando uma “casa de tolerância”. No entanto, uma biografia lançada em 2004 (“The Bugatti Queen: In Search of a Motor Racing Legend”, de Miranda Seymour) aponta outro desfecho. Hellé Nice teria enfrentado a velhice a custa de uma pensão, destinada a antigos artistas parisienses por uma entidade local. No livro, após vasta pesquisa na França e na Alemanha, Seymour não encontrou nenhuma evidência do suposto colaboracionismo de Hellé Nice, durante a guerra.

O certo é que a pioneira das mulheres no automobilismo mundial de elite, tendo disputado mais de 70 corridas, morreu aos 84 anos, sozinha. Suas cinzas foram enviadas à família, que ainda morava perto de sua cidade natal, para que fossem depositadas junto ao túmulo de seus pais. Hoje, no entanto, o memorial da família sequer menciona o nome de Hellé Nice.

 *Trecho inicial da coluna publicada originalmente em 30/11/2005 

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

1 Comment

  1. wladimir duarte sales disse:

    Uma mulher vencendo homens nas corridas foi considerado escandaloso pelos ricos mimados ditos nobres da época. Até hoje não creio que Bia Figueiredo e/ou Danica Patrick tenham sequer ouvido falar em Helle Nice, mas ela foi uma desbravadora e uma inspiração para as mulheres que competem no automobilismo até hoje. Tivemos um caso igualmente grave envolvendo um dos mais talentosos artistas do Brasil: Wilson Simonal de Castro. Acusado de colaborador do regime militar provavelmente por ter se gabado de conhecer este ou aquele funcionário do dops. Mas a verdade é que era inconcebível para o etnocentrismo disfarçado da sociedade brasileira da época(creio que até de hoje) um cantor negro filho de doméstica ser o maior do país, estar a frente de programa de televisão, ter um contrato milionário de publicidade com a SHELL. Também temos Max Schmeling, lenda do pugilismo alemão, acusado por muitos de ser nazista apenas por defender seu país mas manteve até o fim sua amizade com seu maior rival Joe Louis (the brown bomber, o maior peso pesado da história do boxe) e teve melhor sorte sendo contratado como representante da Coca Cola no país assegurando uma aposentadoria tranquila e vivendo até beirar os 100 anos.

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