Red Bull e o controle de tração

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Participação especial no GPTotal, falando sobre as possibilidades de a Red Bull ter de fato utilizado o controle de tração na temporada 2013.

A segunda metade da temporada de 2013 foi marcada pelo domínio absoluto de Sebastian Vettel e sua Red Bull. Foram 9 vitórias seguidas entre os GPs da Bélgica e do Brasil (igualando a mítica marca de Alberto Ascari, entre 1952 e 53), e um novo recorde de vitórias consecutivas em uma única temporada! No entanto, muitos alegam que tal domínio só foi possível pois o carro de Vettel possuía algum tipo de sistema ilegal para controle de tração. Será?

A desconfiança já existia desde a primeira metade do campeonato, mas foi depois do GP de Cingapura (e do depoimento de Giancarlo Minardi a respeito do “som” do motor de Vettel naquele GP) que as suspeitas passaram a tomar conta dos noticiários. Os dois vídeos na sequência ilustram o comentário de Minardi. Primeiro, um F1 com controle de tração (Honda, 2007). Depois, imagens (e sons) do GP de Cingapura em 2013.

VIDEO 1: carro com controle de tração

httpv://youtu.be/IERMHCRNB5w

VIDEO 2 : GP de Cingapura

httpv://youtu.be/Rj8I83A1hiw

Vettel dominou este GP de forma tão absurda que até os mais céticos ficaram com a pulga atrás da orelha.

Ainda assim, é necessário lembrar que desde a última proibição deste auxílio de pilotagem a FIA padronizou e controla a distribuição das ECUs dos motores de todas as equipes (as famigeradas “centralinas”). Desta forma, tornou-se impossível para as equipes aplicar um controle de tração sem que a FIA descobrisse. Como seria possível, então, a Red Bull utilizar um controle de tração por baixo dos panos? Para responder essa pergunta, precisamos entender mais a fundo este tipo de sistema, bem como algumas tecnologias presentes nos carros atuais.

Como funciona o controle de tração?

Seu princípio físico de funcionamento é simples, e se baseia nos conceitos de atrito estático e dinâmico. De maneira simplificada, quanto mais rápido gira a roda, mais velocidade o carro adquire. Isso ocorre até um certo limite, a partir do qual as rodas trativas “patinam” e a potência deixa de ser transferida integralmente ao solo.

Sendo assim, de maneira ideal, o controle de tração pode limitar instantaneamente a velocidade das rodas, de modo a evitar o escorregamento do pneu. Na prática, pode ser feito de diversas formas: corte de injeção de combustível,  fechamento automático da borboleta (restringindo a quantidade de ar), controle da faísca das velas (impedindo uma combustão de boa qualidade). Utilizar o freio de forma ativa também é uma possibilidade (utilizada pela McLaren no passado), mas igualmente banida do regulamento da F1.

Como se pode imaginar, todos estes sistemas são eletromecânicos, de modo que precisam de três pilares fundamentais para funcionarem:

1) Dados de entrada – velocidade angular das rodas, inclinação do chassi, rotação do motor, pressão de óleo, vazão de ar, vazão de combustível, velocidade linear do veículo, entre outros, todos eles aquisitados via sensores eletrônicos;

2) Processamento dos dados – os dados aquisitados são utilizados pela ECU do motor que, através de modelos matemáticos, determina qual a velocidade ideal da roda para evitar o escorregamento do pneu e quais os parâmetros do motor devem ser modificados para que isto aconteça;

3) Atuadores – após determinar o valor ideal para a velocidade da roda, é necessário que esta informação se torne realidade e a roda passe realmente a girar na velocidade calculada. É aí que entram em ação os atuadores (injetores de combustível, bobina de acionamento de vela, motor de passo do corpo borboleta, circuito hidráulico dos freios) que limitam a velocidade angular da roda.

Os dados de entrada e os atuadores já existem nos carros de hoje e, apesar de limitados em alguns aspectos, não são controlados de forma draconiana pela FIA. Por outro lado, a central de processamento (ECU), é! Sem essa base para realização dos cálculos matemáticos, o tripé cai e o controle de tração não funciona. Se em 1994 a ECU já fosse padronizada como é hoje, talvez diversos episódios nebulosos teriam sido evitados naquela temporada.

Como funciona o KERS?

Na F1, o KERS é uma máquina elétrica que pode assumir tanto o papel de motor quanto o de gerador. Quando assume o papel de motor, a energia acumulada na bateria é entregue às rodas. Quando assume papel de gerador, recupera energia da frenagem do carro e armazena de volta na bateria.

O detalhe é que o KERS utilizado na F1 pode ser carregado não somente pela regeneração da energia durante a frenagem, mas também pelo próprio motor a combustão! Nos carros de rua, o dispositivo que utiliza a energia do motor para recarregar a bateria é chamado de alternador. Ora bolas, então o KERS é somente um alternador metido à besta? Quase isso.

Isso nos leva a uma pergunta: os problemas de alternador apresentados pela Red Bull em 2012 eram realmente do alternador? Ou eram problemas no “alternador metido à besta”?

Como o KERS poderia virar um “controle de tração”?

Para gerenciar o fluxo de energia entre os diversos elementos envolvidos, o KERS possui uma pequena ECU. Porém esta, ao contrário daquela utilizada no motor, não é padronizada e controlada pela FIA. Logo, ao menos em teoria, seria possível utilizar esta ECU para fazer o trabalho de cálculo e então levar o sinal aos atuadores presentes no veículo. Porém, como a ECU do KERS não está fisicamente ligada aos sensores e atuadores normalmente utilizados para o controle de tração, se faz necessário encontrar outras formas de determinar: I) quando a roda começa a deslizar; e II) qual a melhor maneira de limitar este escorregamento.

O primeiro problema pode ser resolvido utilizando-se acelerômetros ligados à suspensão, que detectariam as flutuações da força de contato entre pneu e solo durante as curvas. Já o segundo é facilmente resolvível pelo fato de que o KERS pode aceitar energia do motor a qualquer momento, ou seja, quando a potência entregue pelo motor for muito mais alta do que o pneu pode aguentar, o fluxo de energia passa a ser entregue ao KERS (e por tabela à bateria).

Em resumo, um controle de tração dentro do regulamento da F1 atual poderia funcionar da seguinte forma:

# Sensores: acelerômetros na suspensão traseira, determinando as flutuações das forças de contato entre pneu e solo

# Central de processamento: ECU do KERS, que não é controlada pela FIA e serve inicialmente para controlar o fluxo de energia pelo sistema, podendo ser utilizada para calcular o torque máximo permitido nas rodas em um dado momento.

# Atuadores: o próprio KERS, que passa a atuar como um alternador quando a potência do motor a combustão é alta demais para o limite de escorregamento do pneu.

Portanto, amigos, seria possível sim a Red Bull (ou qualquer outra equipe) utilizar controle de tração e ainda assim respeitar as limitações eletrônicas impostas pela FIA. O que não prova que realmente tenham utilizado.

Com isso, agradeço a oportunidade dada pelos amigos do GPTOTAL para escrever neste espaço, e convido os nobres leitores a darem suas opiniões a respeito de uma das principais polêmicas da última temporada.

Abraços

Cassio Yared

Cassio Yared
Cassio Yared
Engenheiro Mecânico, acompanha a F1 desde o milagre da sexta marcha. Possui especial interesse pelas tecnologias desenvolvidas na categoria.

13 Comments

  1. Renan disse:

    Excelente artigo!! Parabéns

  2. Mauro Santana disse:

    Em 2003 quando eu trabalhava na fabrica da Renault em São José dos Pinhais, um amigo meu que trabalhava na mesma época na fábrica de motores do complexo e era preparador dos motores de uma equipe da Copa Clio me convidou para ir com ele ao autódromo aqui de Curitiba no final de uma sexta feira que naquele final de semana estava recebendo uma etapa do Renault Speed Show.

    Quando chegamos no box da tal equipe que disputava a temporada com dois Clios, observei os motores cheios de lacres que era o regulamento da época.

    Já no caminho pra casa de carona com este meu amigo, perguntei a ele se era possível burlar ou não o regulamento, e ele me respondeu, Mauro, todas as equipes de alguma maneira ou outra burlam o regulamento, é fato.

    Jamais esquecerei tal relato e o que vi fazerem naqueles Clios no box do autódromo aqui de Curitiba.

    Abraço!

  3. Como diria o folclórico ditado espanhol ‘Hasta la ley, hasta la trapa’…
    Antes de se construir um F1, os projetistas se embrenham nos regulamentos e procuram essas ‘pequenas’ brechas para descobrir algo que muitas de suas rivais não tem e conseguir algum vantagem. Tudo o que meu colega engenheiro mecânico falou faz todo sentido. Na época, muito se falou que as equipes sabiam o segredo da Red Bull, mas não conseguia domina-lo. Este pode ser o segredo…

    • Manuel disse:

      Oi Joan Carlos,

      Deixe-me corregir : ” Hecha la ley, hecha la trampa ”

      um, abraço, Manuel

    • Cassio Yared disse:

      João Carlos, creio que as equipes tenham sim percebido e entendido a “trampa” da Red Bull. Provavelmente tentaram replicar a ideia, sem o mesmo grau de sucesso. E com o horizonte de mudanças significativas no powertrain para 2014, devem ter deixado a questão de lado.

      Abraços

      Cassio

  4. Fernando Marques disse:

    Aquele corte do motor no “S”, nos dois videos são idênticos …
    A Formula 1, por ser uma categoria de ponta principalmente em termos tecnológicos, vai ter sempre o regulamento “burlado” por todas as equipes … se FIA descobrir, proibe-se ou aprova tal inovação … ao contrário …
    Este bom texto me fez lembrar uma entrevista do Piquet, que percebendo que não havia no regulamento qualquer item ligado aos retrovisores, simplesmente propôs a Brabham na época instalar um retrovisor menor possível no seu carro e diz que ganhou algo em torno de 10 a 15 Km a mais de velocidade nas retas. Tomou esta decisão por dois motivos: um que os retrovisores eram grandes demais e o outro que quase nenhum piloto utilizava-os. E assim ganhou mais velocidade. Se a FIA depois achou ou não achou irregular “tal truque” eu não sei. Mas até então nada havia de errado em Piquet ter se utilizado de tal recurso.
    A RBR com certeza descobriu um modo de não ser pega ou então cabe a FIA agora se manifestar sobre tal ECU dos KERS …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Cassio Yared disse:

      Olá Fernando;

      A diferença entre os dois vídeos realmente é sutil, mas com um pouco de treino é possível perceber.

      E ótima essa história do retrovisor do Piquet. Desconhecia essa façanha!

      Quanto à FIA se manifestar a respeito da Red Bull, não creio que a investigação seja tão simples. Seria necessário que a Red Bull disponibilizasse o carro para isso, ou então que a FIA encontrasse caminhos judiciais para tal. Não é uma briga muito agradável de comprar. No mais, o principal objetivo dos “comandantes” da F1 é nivelar as equipes para aumentar a “emoção” da categoria. E o novo regulamento pra 2014 tem somente este objetivo: parar a Red Bull de Sebastian Vettel.

      Abraços

      Cassio

  5. Manuel disse:

    Caro Cassio, agradeço imensamente sua esclarecedora explicaçao !!!

    Como disse certa vez o fisico Theodore Maiman : ” Quando a ciência chega ao ponto de poder fazer algo… nada impede que se faça ! ”

    Portanto, tendo iiso em consideraçao…

    um abraço, Manuel

    • Cassio Yared disse:

      Olá Manuel, obrigado pelo retorno.

      E quanto à bela citação feita por você, vou além: a única barreira que segura o desenvolvimento tecnológico é a grana!!!

      Grande abraço

      Cassio

  6. Mauro Santana disse:

    Belo texto Cassio!

    Minha opinião é a seguinte:

    Em qualquer situação é possível burlar regulamentos, e duvido que alguma equipe na F1 não faça isso, seja da maneira que for e pra que for, e sendo assim, se a Red Bull conseguiu este feito e a FIA(tão rigorosa em punir pilotos em disputas na pista) não conseguiu pega-los, eu tiro o chapéu mais uma vez para a turma do energético.

    Quem dorme na F1 enquanto a farda seca no varal, acaba ficando despido!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Cassio Yared disse:

      Exatamente, Mauro. A evolução técnica da F1 passa muito pela interpretação diferenciada do regulamento por parte dos grandes projetistas. E a FIA sempre correndo atrás pra proibir ou liberar aquilo que crê necessário.

      Abraços

      Cassio

  7. Walter Augusto disse:

    Excelente artigo! Espero que você passe a fazer parte dos colunistas deste site.
    Dá gosto ser leitor deste site.

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