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Pesquise a respeito do GP da Rússia de 2018 na internet e verá que a maior parte das abordagens irá focar na ordem de equipe levada adiante pela Mercedes, que transformou, ao menos no papel, o que em condições normais teria sido uma vitória de Valteri Bottas em mais um triunfo de Lewis Hamilton. Esta foi, para a comunidade leiga, a grande notícia relacionada à corrida.

E é compreensível, cá entre nós. Diante das circunstâncias, o mais provável é que o episódio ocorrido neste domingo entre para o rol das “ordens de equipe desnecessárias”, usando o termo entre aspas porque me parece oportuno questionar – certamente de maneira idealista – se seria possível considerar necessário um expediente que fere o espírito e o mérito esportivo, na busca por uma vitória que passa assim a ter um cunho muito mais comercial. Com um detalhe importante: muito daquilo que justifica o investimento de grandes montadoras no automobilismo esportivo (aura, imagem corporativa, associação a valores…) também sai arranhado de episódios desta natureza, tornando questionável se, sob qualquer aspecto, eles se justificam. O fato, no entanto, é que existem. E não é de hoje.

Minha tendência natural, todavia, seria avaliar a corrida sob outro prisma, buscando seu significado dentro do contexto esportivo do campeonato, por uma razão muito simples, mas potencialmente significativa: em Sochi a hierarquia das equipes que disputam o campeonato se alterou sensivelmente em relação às provas anteriores. A Ferrari, que vinha demonstrando ligeira vantagem, ficou a algo como 0,5s nos treinos. E, mesmo em ritmo de corrida, jamais chegou a verdadeiramente ameaçar. Ora, parece imperioso tentar responder se o que vimos na Rússia foi um episódio isolado, devido à combinação pista-meteorologia, ou se a introdução de atualizações desequilibrou de fato a balança em favor dos tedescos.

Até mesmo porque não faltaram atualizações em vermelho ou em prateado na Rússia.

De acordo com o veterano Giorgio Piola, a Ferrari apresentou uma de suas maiores atualizações da temporada neste fim de semana, com uma reformulação radical de sua asa dianteira e alguns experimentos para 2019 também.

Na avaliação do jornalista italiano a asa dianteira é totalmente nova e apresenta uma combinação de ideias que foram vistas anteriormente em outras equipes, como Red Bull e McLaren. Em particular, existe uma versão revisada semelhante à da Red Bull, que foi testada no teste pós-GP da Hungria. A Ferrari acrescentou um slot vertical na placa final que parece ter rendido bons frutos à rival.

Ainda de acordo com Piola, uma das mudanças mais interessantes na Ferrari é a palheta de direcionamento que, apesar de ser vista como uma atualização de desempenho imediato, também foi introduzida com um olho nas mudanças nas regras de 2019. O design é muito mais agressivo do que aquele que a equipe utilizou até este ponto, e pode permanecer no carro se ficar comprovado que melhorou o desempenho geral.

A Mercedes, por sua vez, também não ficou parada e buscou inspiração na Ferrari para um novo design de asa traseira, ao substituir seu único pilar central por dois suportes de pescoço de cisne mais finos. Tudo indica que a mudança buscou muito mais a redução de peso e o gerenciamento da estabilidade da asa traseira em alta velocidade do que uma redução do arrasto. Paralelamente a equipe também optou por montar um winglet entre os pilares, ajustando a trajetória da pluma de escape e sua interação subsequente com o fluxo de ar sob a asa traseira.

Por fim, a Mercedes também introduziu algumas mudanças em sua asa dianteira, com um novo par de canards no interior da placa terminal. Agora, a cascata principal não é mais empurrada para longe de sua borda.

É evidente que os engenheiros de ambas as equipes conhecem bem a regra matemática segundo a qual um sistema somente será resolvido se o número de termos desconhecidos for igual ao número das equações que o integram. Assim, certamente cada uma das atualizações terá sido testada de maneira individual, de modo a que se possa avaliar os resultados de forma individualizada, e sem contaminação.

Ainda assim, a forma como a Ferrari, nessa altura do campeonato, partiu para uma ruptura radical em relação aos conceitos que vinha aplicando à componente mais importante da aerodinâmica do carro – posto que é a primeira a ter contato com o ar e, por isso mesmo, direciona o fluxo para todos os demais aparatos – deve nos dizer algo a respeito do nervosismo com que a equipe vem sendo conduzida, não apenas nas pistas, mas também nos bastidores.

Venho dizendo isso desde o primeiro quarto desta temporada: o fator decisivo, ao menos até aqui, para a liderança do conjunto Hamilton-Mercedes em 2018 é a confiança. Os seguidos anos de vitórias tiveram o inevitável efeito de dar tranquilidade e confiança à toda a cadeia de trabalho, desde o setor de projetos até o piloto principal, que vive na atual temporada seu melhor momento. Da mesma forma, a sequência de derrotas sofridas pelos adversários, em especial a sanguínea Ferrari, fez com que os prateados verdadeiramente entrassem em suas cabeças.

E isso, igualmente, se nota nos bastidores e na pilotagem de Vettel, que tem se mostrado frágil e reativa, bem abaixo do que ele próprio já demonstrou dezenas de vezes ser capaz de fazer. A Ferrari tem se portado como zebra, como um time que joga dia após dia na casa do adversário, e se fecha na retranca, amedrontado, se consegue marcar um gol nos primeiros minutos da partida, e entra em pânico quando está empatando ou perdendo.

Sobre a corrida, houve detalhes interessantes.

Os pilotos da McLaren, Stoffel Vandoorne e Fernando Alonso, marcaram exatamente o mesmo tempo na classificação. Fez lembrar Satoru Nakajima e Nelson Piquet no GP do Japão de 1988, pela Lotus, e Jacques Villenuve e Heinz-Harald Frentzen pela Williams, em Jerez, 1997, entre outros casos.

Na largada Bottas exerceu papel decisivo ao buscar a linha de dentro, à direita, tendo notado pelos retrovisores que Vettel estava sendo favorecido pelo vácuo de seu carro. É notório, pelas câmeras onboard, o quanto a progressão relativa entre Hamilton e Vettel – naquela altura disputando uma drag race rumo à primeira curva de fato – se alterou a partir deste ponto em favor do inglês, tendo sido decisiva para lhe permitir consolidar a vice-liderança da corrida. Certamente a estratégia deve ter sido previamente discutida com os pilotos, dada a distância entre a largada e o primeiro ponto de frenagem.

Igualmente interessante – viva a internet! – ver as primeiras voltas da corrida a partir da câmera onboard do carro de Verstappen. Seu início de prova fez lembrar Ayrton Senna no Canadá em 1993: uma série de ultrapassagens muito decididas, mas sem excessos, por parte de alguém que não tinha carro para aquilo tudo. Em apenas oito voltas ele já havia alcançado a quinta posição, tendo largado em 19º! O garoto é realmente um talento de primeira grandeza, que ainda há de protagonizar lances de muito brilho a partir do momento em que a maturidade e a confiança o ajudarem a alcançar o seu próprio auge. Notem que Hamilton precisou de 12 temporadas para atingir este ápice…

https://youtu.be/mnalgxiDVYQ

O domínio psicológico de Hamilton-Mercedes sobre Vettel-Ferrari ganhou mais um gatilho em Sochi. Tendo parado uma volta antes do rival, Vettel teve velocidade o bastante para ganhar sua posição quando o inglês tentou marcá-lo, indo aos pits na volta seguinte. Estar à frente de Hamilton, no entanto, é algo que nitidamente tem deixado Vettel nervoso, traindo todo o complexo de zebra que se instalou em sua mente. Tenso e reativo, Sebastian parecia guiar de olhos nos retrovisores quando errou uma freada logo na volta seguinte, ficando ao alcance do bote de Lewis. A ultrapassagem teria acontecido ao fim da grande reta, não fosse pela fechada perigosa e atabalhoada do ferrarista. A confiança de Hamilton, no entanto, está tão em alta que a manobra terminou por ser concretizada na oportunidade seguinte, de forma um tanto desmoralizante.

A Ferrari, hoje, parece precisar mais de um bom psicólogo do que de uma boa asa dianteira.

Sobre a decisão da Mercedes de inverter a posição de seus pilotos em favor de Hamilton, e depois toda a forma patética como tal decisão foi tratada pelos próprios pilotos, cabe a cada um se posicionar.

De minha parte, olho para minha vida pessoal e tenho a certeza de que, na posição de Toto Wolff, não teria ordenado a troca, por acreditar que vencer só faz sentido dentro de certos parâmetros. Mas não há qualquer desrespeito aqui a quem pensa diferente.

Uma ótima semana a todos!

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

5 Comments

  1. tassios disse:

    Final excelente.

  2. Mauro Santana disse:

    Belíssimo texto, amigo Márcio!

    Faço minhas as suas palavras.

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  3. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    ano passado, com um carro inferior ao deste ano, Vettel deu muito trabalho ao Hamilton. Mas a partir da segunda metade do campeonato Vettel e Ferrari não foram mais páreo para o ingles em face deles estarem no limite do uso de suas forças motrizes e tiveram que recuar para não tomarem punições. A Mercedes ao meu ver soube administrar melhor esta questão, e guardou gorduras para parte final do campeonato.
    Este ano me parece que acontece o mesmo, e a supremacia da Ferrari na 1ª metade do campeonato pode ter sido falsa pois a Mercedes voltou a crescer nesta reta final de campeonato. A Ferrari não pode estar usando todo o potencial que conseguiu de suas forças motrizes para poder terminar o campeonato sem quebras e sem maiores punições. Ao contrário da Mercedes que mais uma vez guardou seu excesso de gordura para usar agora e definir o campeonato a seu favor.
    Sei que em termos de pilotagem o Vettel de certa forma decepciona e que muito dos pontos que hoje separam ele do Hamilton vieram de erros dele. Mas mesmo assim acho que Hamilton estaria na frente no campeonato e deixando bem claro dele ser o mais forte candidato ao título deste ano.
    Com relação ao que Toto Wolf fez, já cansamos de ver isto na Formula 1. Faz parte do jogo e pelas regras é legal. Se reparar nenhuma equipe adversária o criticou por isso, pelo contrário disseram que fariam o mesmo.
    Infelizmente o Bottas sente na pele o que o Barrichello, Massa sentiram e por que não o Raikkonen sente também hoje na Ferrari por serem 2º pilotos de uma equipe grande. Em termos esportivos é chato e sem graça ver isso acontecer mas quem sabe o pode ganhar ou não com isso ($$$) são as equipes que precisam de um caminhão de dinheiro para bancar a brincadeira.
    Este papo de ser desnecessário tal decisão, sei lá, quem sabe são eles. E pode ter certeza que o Bottas será recompensado ao menos com uma vitoria ainda este ano pela sua obediência e lealdade a equipe.
    Foi assim com Barrichelo, e se não foi com Massa nos tempos de Alonso na Ferrari e nem está sendo com Raikkonen é por que a Ferrari não deu realmente um carro vencedor a eles.
    Não sou a favor deste tipo de situação, como voce bem disse fere o espírito esportivo da competição. Mas a Formula 1 é assim desde os seus primórdios e o que aconteceu em Soshi não será a ultima vez em que veremos esta situação se repetir. Nem todas as equipes bancaram o risco de não serem felizes como foi a Mclaren e a Williams neste sentido nos seus bons tempos. Hoje que manda na Formula 1 são as grandes montadoras. Por isso torço que a parceria RBR/Honda dê certo, pois ao contrário eles já avisaram que pulam fora do circo … e aí a o abismo que separa as grandes das pequenas equipes que já é enorme vai aumentar mais ainda.

    Fernando MArques
    Niterói RJ

    • Obrigado pelo retorno, Fernando.
      É, em alguma medida faz parte do jogo se impor ao companheiro de equipe, e se colocar em posição de vir a ser favorecido por situações como esta, não é?
      Os interesses acabam concentrando os números em torno dos top drivers, e quem olha somente as estatísticas acaba acreditando que eles eram absurdamente superiores à concorrência. Mas a verdade é que no momento devido eles bateram os respectivos companheiros, e por isso tiveram os times trabalhando para si.
      Acaba fazendo parte do jogo.
      Abraço, e escreva sempre.

  4. Calhiandro disse:

    O penta são favas contadas a favor da mercedez e de Hamilton. Vettel Ferrari é a cara da derrota, eles não são pareos para Ham mercedez.

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