Sacrifícios

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Uma reflexão sobre a situação cada vez mais lamentável da Scuderia Ferrari.

No dia 17 de janeiro de 1912, o capitão Robert Falcon Scott e 4 de seus homens (Bowers, Evans, Oates e Wilson), após uma expedição de duríssimas semanas através do eterno gelo antártico, alcançavam o polo sul. Porém, para sua decepção, ali encontram a bandeira Noruega e uma nota de Roald Amundsen, seu competidor por ser o primeiro homem em pôr o pé no lugar mais inóspito da terra. Roald havia chegado lá 33 dias antes, privando-lhes, assim, da honra ansiada.

Profundamente abatidos e fisicamente exaustos, os 5 homens empreendem o caminho de retorno que, nessas terríveis condições, resultaria ainda mais difícil. Tanto, que na manha de 17 de fevereiro, Scott encontraria seu amigo Evans sem vida. Durante o duro e penoso caminho, as inclemências do clima não tinham piedade daqueles pobres homens, principalmente de Oates, que se encontrava num estado físico lamentável, pois uma velha ferida de guerra e diversas congelações dificultavam muito seus movimentos. Então, no dia 17 de março, quando os 4 homens se haviam refugiado na tenda para passar a noite, Oates lhe diz a Scott: “Vou sair e pode ser que tarde!

Consciente de que se havia convertido numa pesada carga para seus colegas e visando aumentar suas chances de voltar com vida, Oates havia tomado a decisão de se sacrificar por eles. No entanto, seus companheiros também morreriam duas semanas depois. A expedição de Scott havia sido mal planejada, os homens estavam mal preparados e o equipamento era inadequado e deficiente. Naquelas condições, o sacrifício de Oates, embora muito nobre, havia sido em vão.

Após o pobre rendimento dos carros do cavalinho rampante, durante o passado GP do Bahrein, Stefano Domenicalli apresentava sua demissão, dizendo que essa decisão havia sido tomada pelo bem de todos, e esperando que isto pudesse ajudar a equipe a reverter a má situação na que se encontrava. Designado por Luca de Montezemolo para a direção da equipe em 2008, Domenicalli encerrava assim 6 anos dirigindo a escuderia mais emblemática da formula 1.

Nesse mesmo ano de 2008, Ferrari conquistaria o campeonato de construtores. Porém, os pontos perdidos por Massa na Singapura, devido a um deficiente reabastecimento, lhe privariam do titulo de pilotos. Naquele pit stop, a Massa se lhe dá a largada prematuramente e o brasileiro acaba arrancando a mangueira do combustível, levando-a consigo ao longo do pitlane como um animal decrépito que arrasta seu rabo flácido pelo chão. Aquilo… até parecia ser um mal presságio.

httpv://youtu.be/4sQkz0pnQYE

Nas temporadas seguintes, se inicia um jejum de títulos que dura até hoje. Em 2009, Ferrari não consegue nenhum ponto nas 3 primeiras corridas (na 5ª e na 6ª etapas apenas um sexto lugar de Räikkönen e Massa, respectivamente) e, em nenhum momento, esteve em condições de disputar algum titulo. Luca Baldisseri é despedido no fim da temporada, assim como o engenheiro de motores Gilles Simon (agora o motor Ferrari é o pior do grid!). Também abandona a equipe o aerodinamicista John Iley.

Em 2010, Fernando Alonso estaria lutando pelo titulo até o ultimo GP, e que perderia por uma má estratégia da equipe nessa corrida (seu engenheiro Chris Dyer, seria despedido). No entanto, aquele famoso “Alonso is faster than you” dito a Massa na Alemanha, ofuscaria um pouco a boa temporada, pois Ferrari seria punida com 100.000 dólares pela ordem dada por Domenicalli a Massa de deixar passar o espanhol. Então, Montezemolo reafirmou sua confiança em Domenicalli.

Em 2011, o modelo F150º fica a 1,5″ da RedBull em Melbourne, acabando com qualquer esperança de fazer algo importante naquela temporada. Em maio, Montezemolo decide despedir os engenheiros Aldo Costa, autor do carro, e Marco Fainello (ambos agora triunfam na Mercedes!). Em 2012, Alonso, novamente, perde o titulo na última corrida. Para então, transcende que problemas no túnel de vento vinham limitando o desenvolvimento do carro já havia vários meses. Após trabalhos de recondicionamento e atualização, o túnel só voltaria a ser operativo em outubro de 2013.

Na temporada de 2013 e, apesar dos problemas no túnel de vento, Alonso, uma vez mais, acaba segundo, mas a grande distância de Vettel. No meio da temporada, o espanhol, já ao limite de sua paciência, se queixa publicamente de que não lhe entregam um carro que lhe permita lutar em igualdade de condições com os RedBull, e deixa transparecer que há problemas de organização e liderança na equipe, algo que o espanhol vinha dizendo em privado desde alguns meses antes. Montezemolo, furioso, critica o espanhol e reitera, outra vez, seu apoio incondicional a Domenicalli.

Nesses momentos, já havia uma opinião generalizada de que sem Fernando Alonso, os resultados da equipe ainda seriam mais pobres, e os engenheiros contratados por Montezemolo (Nick Fry, Luca Marmorini, James Allison, Dirk de Beer, James Dove, Steve Clarke, etc.), não conseguem melhorar o rendimento dos carros vermelhos. Assim, Montezemolo, toma a mais polêmica de suas decisões: contratar Kimi Raikonnen.

Talvez Montezemolo, com isso, pretendia mostrar a Alonso que outro bom piloto também podia conseguir os mesmos, ou até melhores, resultados do que ele, minguando, assim, de fundamento as suas queixas. Talvez Montezemolo, com isso, pretendia mostrar a Alonso que ele não era imprescindível e que outro piloto podia ocupar seu lugar de primeiro piloto da equipe.

httpv://youtu.be/9VcN7GoxUTQ

Contudo… Montezemolo se enganou e, nesta temporada, Alonso, ainda mais do que antes, parece ser o único homem capaz de manter a cabeça erguida na equipe. Assim, esta decisão de Montezemolo, acabou sendo como um tiro que lhe saiu pela culatra! Com Alonso constantemente batendo a Raikonnen, todo um campeão, e ainda assim lutando apenas por posições intermediárias, não há lugar a dúvidas de que o problema não é Alonso. Com esta situação, chegamos até o fatídico GP do Bahrein, onde se apresenta Montezemolo para, segundo ele mesmo disse, dar apoio à equipe com sua presença.

No entanto, e perante o paupérrimo rendimento de seus carros, o chefão, visivelmente contrariado, decide abandonar o circuito antes mesmo do fim da corrida, dizendo que: “ver a Ferrari assim era penoso!“.

A decisão de se ausentar de Montezemolo me pareceu totalmente indigna, inaceitável e imprópria de um verdadeiro líder. A autoridade de um líder não apenas emana de sua posiçao hierárquica mas, principalmente, de sua condição moral e atitude pessoal nos momentos difíceis e ante as adversidades. Um líder deve infundir respeito, inspirar confiança e promover entusiasmo entre seus homens.

Um líder deve, em todo momento e, ainda mais em situações difíceis, erigir-se na referência e o exemplo a seguir por seus subordinados. Montezemolo tinha motivos para sentir-se decepcionado, disso não há dúvida, mas seu comportamento não foi nada exemplar e temo que só acabou gerando desconfiança e uma sensação de abandono em seus homens. A meu ver, algo imperdoável!

Creio que ninguém duvida de que se a Ferrari estivesse ganhando, Montezemolo se apresentaria nos circuitos sorridente, ufano e cheio de orgulho pelo conseguido. Se exibiria pelo paddock como um pavão em época de acasalamento e fazendo questão de que todos o vissem. Mas, como as coisas não são assim… saiu correndo para tentar eludir situações comprometidas ou embaraçosas, confirmando as palavras ditas pelo presidente John Kennedy: “O sucesso tem muitos pais, mas o fracasso é órfão!“.

Como no caso de Oates, Domenicalli não era responsável pelas más decisões de seu chefe, nem pela avaria que manteve o túnel de vento fora de serviço durante meses. Esperemos que, ao contrario do caso de Oates, seu “sacrifício” não seja em vão.

Boas férias e até a próxima.

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

10 Comments

  1. Alexandre disse:

    Ola,
    Sou torcedor da Ferrari, equipe, há muitos anos e torço pra que Alonso saia e entre um outro grande piloto. É um casamento que nao deu certo. O egodo espanhol é grande demais pra escuderia e a recente declaracao de Aldo Costa (“Alonso é um enigma, é indecifrável”) apenas me traz a confirmacao de que ele nao é o líder que a equipe precisa. Quem já trabalhou em equipe sabe que nao basta apenas ser talentoso naquilo que faz, é preciso jogar pro time. E Alonso, sem duvida, está mais preocupado com a própria reputação e imagem, embora tenha dado declaracao recente de que nao quer respeito, e sim títulos. Sei…
    Alem disso, o carro desse ano foi feito pra ele, e nao pro K. Raikkonen. Que Alonso é um grande piloto, ninguém duvida, mas me surpreende que Mercedes nem Red Bull nao o tenham contratado ainda assim. Talvez eles saibam mais do que nós. Vettel na Ferrari!

    • Manuel disse:

      Alexandre,
      segundo esse raciocinio, deveriamos tambem pensar que o RedBull foi desenhado para Vettel e nao para Ricciardo. No entanto é Ricciardo quem esta rendendo mais com ele.
      Os carros sao desenhados para serem o mais rapidos possíveis, segundo as indicaçoes dos computadores, e deixando apenas alguns ajustes ao gosto do piloto. Alem do mais, a Ferrari conhecia perfeitamente o estilo de Raikonnen ( imagino que guardan toda a informaçao dos anos em que ele esteve na escuderia ), portanto fazer um carro que nao fosse bem com seu estilo nao tinha sentido ( ou contratar um piloto que nao fosse bem com esse carro, tampouco )
      Com o novo regulamento, os carros sao completamente diferentes e os pilotos tiveram que adaptar-se a eles. Alonso e Ricciardo, se adaptaram melhor do que Raikonnen e Vettel ( no mesmo caso que Raikonnen esta Hamilton, mas o britânico se adaptou muito bem )

      • Alexandre disse:

        Manuel,
        O meu raciocínio é apenas o de quem já leu isso inumeras vezes, inclusive ano passado, quando Hamilton afirmou “ano que vem piloto um carro feito pra mim, enquanto que esse ano guiei um feito pro Michael”. Acho que a equipe gira em torno dele, Alonso, e isso faz diferenca numa esporte de décimos. Raikkonen vem reclamando que a frente simplesmente nao se comporta como ele quer, por ex.
        Talvez o RedBull tenha sido desenhado pra Vettel e ambos tenham um estilo similar. Mas desde a Espanha ele ja vem num ritmo de corrida superior (ao de Ricciardo) ao meu ver. É apenas uma daquelas fases onde as coisas nao se encaixam. Ou é uma quebra ou é uma estratégia que nao deu certo… O mérito do australiano foi ter aproveitado – como um verdadeiro campeao, diga-se – as chances que surgiram em Montreal e Budapeste. Nessas corridas, Vettel ficou encaixotado atras de uma FI e na outra teve o safety car. Os inumeros problemas de confiabilidade tb nao o vem ajudando – e isso conta numa era de poucos treinos, acredito, e com tantas coisas diferentes a se entender no carro.
        Obrigado pela resposta.
        Abraços.

        • Manuel disse:

          Oi Alexandre,
          Hamilton, talvez se arrependa de ter dito isso. Se o ano passado o carro da mercedes havia sido feito para Michael, tanto ele quanto Rosberg, nao tinham um carro ao seu gosto. Se este ano, o carro foi feito para Hamilton, Rosberg continua sem ter um carro ao seu gosto. Se, Rosberg consegue o titúlo, que desculpa terá Hamilton ? Se, Hamilton consegue o titulo, nao terá este menor mérito ao ser conseguido com um carro feito para si ?
          A reclamaçao de Raikonnen respeito à dianteria tem sua lógica : este ano o regulamento mudou o equilibrio do carro. De 50% de peso em cada eixo, passou a ser de 46% na frente e 54% atrás. Mas isso é para todos os pilotos !

          um abraço.

  2. Os textos do amigo Manuel, sempre expondo um ponto de vista sólido através de paralelos que presenteiam a todos com um pouco mais de conhecimento.

    • Lucas Giavoni disse:

      Obrigado, amigão Márcio, por expressar tudo o que sinto sobre os textos do nosso querido Manuel de maneira tão sucinta. Só preciso assinar embaixo.

      Lucas Giavoni

  3. Bruno Wenson disse:

    E Montezemolo sempre assiste as corridas na fábrica pois se acha pé frio. Com a analogia, podemos dizer que ele estava com o pé congelado naquela etapa do Barhein.
    Trazer um piloto que com bom carro é excelente e um médio carro faz o que dá não foi boa idéia. Ainda mais que ele parece não se esforçar para ir além. Ou… Alonso é um monstro que consegue o que raros são capazes.

  4. Mauro Santana disse:

    Belíssimo texto Manuel!!

    Realmente, para uma equipe de trabalho ver o seu líder máximo abandonar o barco, é uma sensação muito ruim.

    Fico imaginando como deve estar o clima na Ferrari nestas férias…

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  5. Fernando Marques disse:

    Grande MAnuel Blanco,

    a história da Ferrari na Formula 1 se repete por várias vezes nessa situação contada em sua coluna … com toda tecnologia e parafernália eletrônica disponíveis na categoria, a Ferrari num todo como equipe ainda se deixa dominar pela passionalidade das emoções … ainda mais por ser uma equipe grande e com obrigação de vitorias … e muito do estado de espirito italiano dela ser … bem diferente da frieza dos times ingleses …
    A Ferrari sempre foi assim … sempre uma panela de pressão prestes a explodir mas que nunca explode

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Carlos Chiesa disse:

      Creio que a Ferrari em muito se assemelha à gestão da nossa seleção. Quando conseguem aproveitar ao máximo seus pontos fortes, é vitoriosa. Quando se atrapalha, a pressão vai a níveis estratosféricos. O que não consegui entender, até o momento, é porque o insigne “sainte” Luca Marmorini não conseguiu fazer o melhor motor da categoria, uma vez que este departamento sempre foi o forte da Scuderia. Não sei se é o pior motor, o conjunto todo é deficiente. Fico com a impressão de que se concentraram tanto na confiabilidade, supondo que os concorrentes iriam quebrar mais, que deixaram o desempenho para segundo plano. Subestimaram a Mercedes…
      Muito bem lembrada a epopéia fracassada de Scott, Blanco. Uma tragédia anunciada, de tão mal planejada foi a expedição. A analogia é cruel.

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