Sem piedade

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A fascinante saga de Gerhard Mitter.

Com a primeira guerra mundial já iniciada, nasceria no dia 21 de dezembro de 1914, na pequena cidade de Muhlhein, situada no oeste da Alemanha, Theodor Weissemberger. Filho de um humilde jardineiro, Theo (como viria a ser conhecido Weissemberger) parecia estar destinado a seguir os passos do pai, ainda que seu sonho eram os aviões. Assim, com esse sonho em mente, em 1936 Theo se alista na Luftwaffe e obtém o titulo de instrutor de voo sendo logo depois enviado para casa como reservista.

No fim de 1939 se deflagra a segunda guerra mundial e quando a Alemanha lança sua ofensiva sobre a URSS em 1941, Theo é chamado para se integrar num esquadrão de caças pesados Messerschmitt BF110C que operava na frente russa. Apesar de pouco manobráveis, Theo conseguiria 23 vitórias com aquele caça, além de numerosas missões bem sucedidas que lhe fizeram merecedor da cruz germânica até que, em setembro de 1942, é transferido para a esquadra JG5 que operava os ligeiros BF109F.

Com este caça, Theo inicia uma série de vitórias e, após abater outros 15 inimigos, seria condecorado em 1942 com a cruz de ferro, para conseguir as folhas de carvalho em 1943. Em 1944, Theo seria transferido à frente ocidental, onde participaria em 26 missões, durante as quais a bateria 25 aviões inimigos. Mais da metade de todas as vitórias de sua esquadra!

Em 1945, já com o grau de comodoro, Theo seria promovido a comandante da esquadra I./JG 7 recém formada para operar os revolucionários Messerschmitt ME262 de propulsão a jato, com a desesperada missão de neutralizar os bombardeios aliados já em território alemão e que castigavam grandes centros industriais como Stuttgart, onde Daimler- Benz fabricava os motores dos BF110 e BF109 que tantas satisfações lhe haviam dado, ou Leonberg, onde se fabricava boa parte dos ME262. Precisamente, com este avião Theo conseguiria outras 8 vitórias e ganharia as espadas da cruz de cavaleiro, condecoração que não receberia devido ao fim da guerra pouco depois. Enviado a prisão pelos aliados, Theo possuía uma impressionante caderneta de voo com mais de 500 missões, durante as quais conseguiu abater a mais de 200 inimigos (segundo o livro “AN ILLUSTRATED DICTIONARY OF THE 3rd REICH” teriam sido 238).

O fim da guerra também teve como consequência que cerca de 3 milhões de habitantes de origem germana, residentes na região tchecoslovaca dos Sudetes, fronteiriça com o sul da Alemanha, foram expulsados. Assim, August Mitter, um modesto açougueiro, teve que abandonar sua região natal e única que havia conhecido em sua vida, e se mudou com a família para uma pequena vila no oeste da Alemanha: Leonberg. Ali, com grande sacrifício, conseguiria montar uma oficina concessionária da DKW, onde seu filho Gerhard, então com apenas 10 anos de idade, começaria a aprender a profissão de mecânico.

A oficina estava bem perto do circuito de Solitude, o que despertou em Gerhard sua afeição pela competição. Em 1946, Theo é finalmente liberado pelos aliados, mas sob a condição de não voltar a pilotar aviões. Para suprir a falta da emoção de pilotar um avião, Theo busca essa emoção no automobilismo. Então, as competições automobilísticas estavam proibidas na Alemanha mas, mesmo assim, se celebravam burlando a proibição sendo promovidas como “testes de veículos experimentais”.

Essa definição não estava muito longe da realidade pois, devido à escassez de praticamente tudo naqueles anos, os carros usados eram adaptações de antigos modelos da pré-guerra, ou construídos e preparados pelos próprios participantes. A primeira participação da que se tem constância de Theo ocorreria na prova de montanha de Ruhestein, em Julho de 1946, com um Bugatti T37.

Com esse mesmo modelo, Theo, conseguiria o segundo lugar na prova de Eggberg, em agosto de 1947. Dedicado às provas de montanha, seu nome apareceria novamente na prova disputada em setembro de 1949 em Saarbrücken, onde acabaria em 5ª lugar com um BMW 328 preparado por ele mesmo, carro muito popular naquela época e com o que correria outras duas provas de circuito esse ano: em Sachsenring e em Colônia Em 1950, Theo inicia a temporada em Hockenhein, com um 11º lugar e, em agosto, decide participar na mítica Eifelrennen, a mais emblemática prova do automobilismo germano da época, que se disputava nas estradas próximas à cidade de Nurburg desde 1922, e que em 1927 passariam a se constituir no circuito do mesmo nome.

A prova teria lugar no dia 11 de junho e, logo na primeira volta, Theo perderia o controle de seu BMW nas curvas de Adenauer-Forst, ali deixando sua vida. Segundo alguns assistentes que presenciaram o acidente, Theo, muito possivelmente, teria sido deslumbrado pelo sol que, naquele ponto, se encontrava justo à frente dos pilotos. Ironicamente, Isto sempre foi algo que Theo, como bom piloto de combate, sempre havia sabido evitar. Em 1952, Gerhard Mitter, já com exímios conhecimentos de mecânica, se inicia na competição, ainda que sem dizer nada ao pai, pois este não queria que o filho se dedicasse a uma atividade tão perigosa. Seus inicios são no motociclismo onde, com uma NSU de 125cc, preparada por ele mesmo, se proclamaria campeão nacional junior em 1955.

Após 5 anos no motociclismo, Mitter passaria à sua verdadeira paixão : o automobilismo. Com o titulo de mestria em mecânica obtido em 1958, Mitter começa a participar na formula junior em 1959 e, já com a ajuda de seu pai, constrói seus próprios carros com motor DKW. Na subida de Gainsberg, Mitter vence derrotando os Porsche oficiais. Em 1960, Gerhard vence o campeonato junior, repetindo titulo em 1962, conseguindo naqueles anos mais de 40 vitórias e convertendo-se no piloto mais bem sucedido da história da categoria. Nesse mesmo ano, Mitter participaria em sua primeira corrida de formula 1, no circuito vizinho de Solitude, com um Lotus-Climax, terminando em 6º lugar.

Ainda que fosse uma prova extra campeonato, contava com as máximas estrelas da época como Dan Gurney (o vencedor), Jo Siffert, Jim Clark ou John Surtees. Em 1963, Mitter venceria a prova da Eifelrennen em Nurburgring e logo sería chamado pela Porsche para atuar como piloto e como engenheiro de desenvolvimento. Essa mesma temporada, Mitter debuta no campeonato de formula 1 no GP da Holanda com a equipe de Carel Godin de Beaufort, que dispunha de carros Porsche 718, mas deve abandonar por rotura da embreagem. Entao viria o GP da Alemanha, em Nurburgring onde Mitter, apesar da pouca competitividade daquele carro, consegue um meritório 4º lugar.

Sua melhor classificação na formula 1. A partir dessa mesma temporada de 1963, Mitter se concentraria nos SportsCar, sempre como piloto oficial Porsche e sua primeira vitória chegaria em 1964, quando ganhou a Flugplatzrennen en Trier com um Porsche 904 GTS, e pouco depois seria 6º nas 12 horas de Reims. Em 1965, termina 9º nas 12 horas de Sebring e nos 1000 km de Nurburgring, após haver sido 2º na Targa Florio disputada apenas 2 semanas antes. Venceria a Internationales Norisring Rennen, a Rennen Solitude de Stuttgart e a Flugplatzrennen en Wien- Aspern, todas com um Porsche 904 Bergspyder. Esse ano participaria no GP da Alemanha em Nurburgring com um Lotus 25 acabando no 9º lugar.

Nos anos seguintes, as vitórias se sucederiam com regularidade e Mitter conseguiria vencer o popular campeonato europeu de montanha em 1966. Precisamente, apenas duas semanas antes do inicio do campeonato em Berchtesgaden, Mitter sofre um sério acidente em Spa que lhe provoca a rotura de um pé e diversas contusões. Então, seu amigo e também piloto Hans Herrmann, sem conhecimento dos médicos, o retira do hospital e o leva consigo a Stuttgart onde a Porsche prepara um carro tendo em contas as limitações do piloto.

Apesar do pé engessado e das fortes dores, Mitter venceria aquela primeira prova, o que lhe abriria o caminho ao titulo, titulo que repetiria em 1967 e 1968. Naqueles anos, Mitter tambem participava no campeonato de SportsCar, onde conseguiria varias vitórias, entre elas o GP de Hockenhein, a Norisring, os 500 km de Zeltweg ou GP de Mugello, além de outras boas colocações como 3º nos 1000km de Monza, 4º nos 1000km de Nurburgring, 3º nas 12 horas de Sebring, 4º nos 1000km de Nurburgring ou 2º nos 1000km de Spa. Em algumas ocasiões formando equipe com ilustres pilotos da época como Rindt, Siffert ou Elford. Apesar de seu sucesso como piloto, Mitter nunca abandonou o negocio familiar e inclusive chegou a construir um motor para a formula 2. Tambem era muito apreciado como preparador de motores e, na época, entre seus clientes estava um tal Niki Lauda.

httpv://youtu.be/vy_9QNtrjko

Na temporada de 1969 de SportsCar, Mitter formaria dupla con Udo Schutz, amigo com quem havia vencido o GP de Mugello em 1967. Para então, a BMW tinha intenção de entrar no campeonato de formula 2 e lança um convite a Mitter para que, com sua grande experiência como piloto e mecânico, lhes ajude a desenvolver seu carro. Gerhard, aceita sem duvidar. Após conseguir o 3º lugar nos 500 km de Brands Hatch, Mitter estreia o BMW F269 na Eifelrennen em Nurbugring do dia 27 de abril.

Apesar de levar 4 anos praticamente sem pilotar monopostos de formula, Gerhard consegue um meritório 8º lugar no grid, sendo superado apenas por gente como Siffert, Stewart, Rindt ou Hill, mas superando a outros como Regazzoni, Cévert ou Servoz.Gavin. Contudo, Mitter deve se retirar na 4ª volta. Na semana seguinte, Mitter e Schutz venceriam a mítica Targa Florio, mas nas 24 horas de Le Mans teriam que abandonar. Éra a quinta vez que Mitter corria lá e sempre havia abandonado, algo que o decepcionava bastante pois ele ainda abrigava o sonho de ganhar aquela prova.

httpv://youtu.be/s3v2dDpo7KY

A próxima aparição do F269 seria no GP da Alemanha, também em Nurburgring. A corrida seria no domingo dia 3 de agosto e na sexta feira dia 1, começam os treinamentos. Embora havendo afrontado alguns problemas durante a sessão matutina, Mitter pensava que as coisas iriam melhor à tarde. Contudo, logo no principio da sessão, Mitter sofre um terrível acidente na curva Flugplatz, abandonando sua vida ali mesmo.

Segundo parece, ao aterrissar após um salto, uma das supensões dianteiras do F269 teria sucumbido ao esforço, deixando o carro ingovernável. Assim, curiosamente, tanto Weissenberger quanto Mitter, dois garotos aos que a guerra impediu que, muito provavelmente, chegassem a ser jardineiro e açougueiro, mas que propiciou que se convertessem em autênticos ases, foram morrer no mesmo trecho do mesmo circuito e com a mesma marca de carro.

Curioso também que entre os dois pontos de seus acidentes, e presidindo todo aquele trecho, se encontra um pequeno monumento, erigido em 1638, que representa a Nosso Senhor crucificado. É muito habitual encontrar este tipo de cruzes à beira das estradas de toda a Europa pois, segundo uma antiga tradição da cristandade, estas se erigiam à memória de algum ser querido, assim como para servir de guia e abençoar a todos aqueles que circulam por essas estradas.

Infelizmente, em sua configuração de circuito, Nurburgring nao perdoava nem o mais mínimo erro ou falho. Tanto fazia que fossem ases ou sonhadores, Nurburgring sempre reclamava seu duro pedágio de sangue… sem piedade.

Um abraço e até a próxima!

P.S. Udo Schutz, logo que soube do triste fim de seu amigo Gerhard, tomou a decisão de abandonar o automobilismo de imediato, enquanto que Hans Herrmann, após vencer as 24 horas de Le Mans em 1970 e dedicar a vitória a Mitter, também abandonaria a competição.

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

5 Comments

  1. Ronaldo disse:

    Manoel, uma boa coluna como sempre. E já vou pedindo desculpas pela crítica, mas faltou um pouco de clareza em alguns pontos.

    • Manuel disse:

      Oi Robaldo,

      Nao se desculpe. Uma critica construtiva sempre é bem-vinda e, se com ela posso melhorar no futuro, ainda mais.
      Por favor, me diga quais sao esses pontos.

      abs. Manuel

  2. Carlos Chiesa disse:

    Adorável coluna, Manoel. Theo W. foi um dos grandes ases da Luftwaffe, um dos que ultrapassaram a barreira das 200 vitórias. Mas, como costumavam dizer os veteranos da 2a. Guerra, o maior feito foi terem sobrevivido ao conflito. O traço em comum entre os dois personagens é efetivamente a paixão pelo domínio de máquinas que permitem experimentar sensações únicas. E que, naquela época, cobravam um preço altíssimo por qualquer detalhe equivocado. Parabens.

  3. Fernando Marques disse:

    O que mais me encanta nesta historia é a ligação do passado com as 1ª e 2ª guerras mundiais. Sair vivo e inteiro das guerras já foi um feito em tanto.
    Mesmo assim, depois de findada as guerras, o espirito de aventura e do desafio até a própria morte destes pilotos continuaram.
    Uma época em que para ser um ás do volante não necessariamente o piloto precisa ser da Formula 1. Veja o tanto vitorias conquistadas pelo Gerhard Mitter.

    mais um show de bola do Manuel!!!

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  4. Mauro Santana disse:

    Belíssimo texto, Manuel, e belíssima história.

    Realmente o automobilismo nos anos 60 e 70, era algo cruel e cobrava um preço caro.

    E pistas como Nurburgring era um verdadeiro cemitério para os pilotos de corrida.

    Naqueles tempos prevaleciam, a coragem, o juízo e a sorte.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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