#Senna30 – A temporada de 1988

#Senna30 – As três faces de um tricampeão
24/10/2018
Hi five!
29/10/2018

por Márcio Madeira

Passados 30 anos, muitas pessoas de profundo conhecimento automobilístico reservam a 1988 lugar de destaque entre as piores temporadas em toda a história de Fórmula 1, enumerando uma série de corridas “extremamente chatas”, e o grande distanciamento existente entre os conjuntos McLaren-Honda, com Prost e Senna ao volante, e o restante do grid. De minha parte, reconheço a materialidade de tais argumentos, mas não posso concordar, de modo algum, com tal avaliação a respeito do que foi aquela temporada.

É fato, sim, que os McLaren-Honda eram, de forma destacada, o melhor conjunto para a imensa maioria das pistas, embora não todas. Há que se reconhecer, no entanto, que poucas vezes na história uma equipe foi capaz de explorar com tanta competência, e de forma tão coordenada entre todos os seus departamentos e fornecedores, as potencialidades de um regulamento técnico. Porque, afinal, quando foi anunciada a drástica redução no volume dos tanques de combustível, de 195 para 150 litros em carros com sobrealimentação, bem como a redução de 4.0 para 2.5 bares na pressão máxima dos turbos, muita gente parou para se perguntar se a balança não teria, de fato, pendido em favor dos conjuntos aspirados. Some a isso o fato de que qualquer investimento nos turbos teria de ser descartado ao fim de um ano, quando todos os motores voltariam a ser atmosféricos, e o que temos é um cenário no qual não havia muitos estímulos para que uma equipe investisse de forma pesada num projeto turbinado para 1988.

Mas ainda havia um campeonato a ser disputado, e tanto a McLaren quanto a Honda estavam mais do que dispostas a pagar o preço para vencê-lo. Houve méritos técnicos e gerenciais, portanto, no domínio que se observou.

Eu certamente concordaria com os críticos de 1988 se as equipes, por qualquer motivo, tivessem mantido os mesmos pilotos da temporada anterior. De fato, entregar o fabuloso MP4/4 para que Alain Prost pudesse correr “sozinho” e somar mais do que as 11 vitórias computáveis pelo sistema de melhores resultados teria redundado num ano a ser esquecido, que o destino felizmente cuidou para que não chegasse a acontecer.

Mas, afinal, haveria no grid algum piloto capaz de bater – ou ao menos enfrentar – o bicampeão mundial Alain Prost dentro da equipe que girava ao seu redor? Pior: seria possível alguém conseguir isso num ano em que não haveria pneus de classificação e no qual o ritmo das corridas seria fortemente limitado pelo consumo, dando peso muito maior a inteligência, refinamento, estratégia e posicionamento do que a velocidade pura?

A pergunta, feita com três décadas de atraso, parece mais fácil de ser respondida do que efetivamente era. Com frequência a eficiência, a reserva técnica e a inteligência de Prost são subestimadas, mesmo entre quem se esforçou por decorar uma infinidade de estatísticas e pormenores a respeito da história deste esporte. Basta ver a forma como ele derrotou René Arnoux no auge de sua velocidade dentro da Renault, como se transferiu à McLaren e superou Lauda em desempenho ao longo da maior parte de 1984 (ainda que tenha perdido o campeonato por meio ponto), e como a partir de então reinou absoluto na equipe sobre o mesmo Lauda, sobre Rosberg e sobre Johansson nos três anos seguintes. Ou então lembrar o GP da África do Sul de 1982 para ver o tipo de ritmo que era capaz de imprimir, se isso fosse necessário. Sabemos, hoje, que Prost voltaria a repetir o mesmo feito em 1990, quando substituiu Berger na Ferrari e não deu a menor chance a Nigel Mansell, que havia chegado à equipe um ano antes. Ora, levando tudo isso em consideração, fica muito mais difícil responder à pergunta proposta.

E 1988 foi essencialmente isso, a busca por responder a essa pergunta.

Ainda que fosse amplamente reconhecido como um top driver, Ayrton Senna ainda era visto com ressalvas por algumas das figuras mais proeminentes do circo, quer fosse entre seus pares ou na imprensa. E isso se dava justamente pela ausência de uma referência conhecida contra a qual ele pudesse ser medido dentro da Lotus. Tanto Johnny Dumfries, em 1986, quanto Satoru Nakajima, em 1987, eram estreantes que haviam acumulado performances e resultados decentes em categorias menores, mas que evidentemente não faziam parte da elite da F1, nem muito menos dispunham de condições equivalentes às de Ayrton dentro da própria equipe. Quando a diferença de tempo entre eles chegava a patamares absurdos, como três ou quatro segundos por volta em classificações, isso parecia demonstrar muito mais que havia algo de errado com a equipe do que atestar que o brasileiro era sim um dos pilotos mais rápidos de todos os tempos.

Essa desconfiança era naturalmente maior junto à imprensa inglesa, desde que Ayrton havia vetado a contratação de Derek Warwick pela Lotus em 1986. Um caso que evidentemente ganhou contornos históricos desproporcionais, até mesmo porque quase ninguém se perguntou como o brasileiro havia conquistado poder de barganha tão alto junto à equipe ao fim de apenas um ano. Ora, a resposta era evidente: a Lotus sabia muito bem o quanto Senna vinha tirando do equipamento que lhe era entregue.

Ocorre que Ayrton também sabia, e logo no início de 1987 havia se tornado evidente que não havia mais futuro na Lotus. Se queria ser campeão do mundo – ou muito mais do que isso, se queria se posicionar entre os grandes de todos os tempos –, então havia chegado a hora de se lançar a desafios superiores e nadar em meio aos tubarões. A esse respeito, Senna sabia que dividir a McLaren com Prost seria o jeito mais fácil de arranhar a própria reputação, ou, se fosse bom o bastante, o caminho mais curto para se consolidar entre os melhores da história.

Parece evidente, a essa altura, que ele era o primeiro a querer respostas para a grande pergunta proposta naquele ano.

No entanto, para que a disputa tivesse a necessária credibilidade, sem contaminações de natureza esportiva, era importante que ela ocorresse em “campo neutro”. Ayrton sabia da importância de dispor não apenas de igualdade de equipamento, mas também de tratamento, por parte de uma equipe que, naturalmente, já tinha dono antes mesmo de sua chegada. E para conseguir tal respaldo ele precisou dar vazão a uma compreensão mais ampla do esporte, indo muito além da atenção a tudo aquilo que seria necessário para aumentar sua própria performance quando ao volante.

A rigor tudo começou em 1986, quando o brasileiro iniciou conversas com os japoneses da Honda e deu início a uma relação construída sobre confiança e admiração mútuas. Ao fim de 1987 tal interação já havia se consolidado a ponto de Ayrton se tornar uma peça chave para a costura da parceria McLaren-Honda, que todas as partes envolvidas desejavam concretizar – inclusive Prost. E foi assim, com o poder de barganha representado pelos melhores motores disponíveis no mercado, que ele conseguiu alcançar a indispensável paridade dentro da equipe que passava a integrar.

É importante notar, portanto, que reduzir 1988 a uma temporada de uma só equipe é dar voz a apenas metade da verdade. Porque o que tivemos dentro desta equipe neste e no ano seguinte foi, possivelmente, o maior (e melhor) confronto entre companheiros de equipe na história da Fórmula 1.

Olhando em perspectiva, fica evidente que nem Prost, nem muito menos Senna, estavam preparados para o que viria pela frente.

Jacarepaguá e Imola não disseram muita coisa. Senna cravou duas poles impressionantes, tendo enfiado sete décimos no Rio e quase oito na Itália, mas um problema de câmbio o tirou da disputa diante de sua torcida, ao passo que carros mais lentos atrasaram Prost na pista em que, seis anos mais tarde, Senna encontraria seu destino. Até então, os dois pareciam ter a situação sob controle: Senna se sentia mais rápido, mas Alain liderava a tabela de pontos. Ao deixarem Mônaco, no entanto, os dois teriam bons motivos para se sentirem amedrontados.

Ayrton baixou as cartas primeiro, na forma daquela que muitos consideram a atuação mais assustadora de um piloto num treino de classificação, desde que o grid passou a ser definido por tomada de tempo. Durante a maior parte da sessão de sábado o brasileiro manteve a absurda distância de três segundos em relação ao francês, numa pista de pouco mais de três quilômetros, ambos usando pneus de corrida. Prost precisou dar inúmeras voltas até conseguir cortar essa distância pela metade, beneficiado pelo fato de que Ayrton, assustado com o que considerou uma experiência noutro nível de consciência, não retornou à pista na segunda metade do treino.

O francês, todavia, daria o troco em grande estilo no domingo, ao expor diante dos olhos do mundo o quanto seu jovem adversário era previsível e carente de anticorpos para sobreviver a um nível mais complexo e estratégico de disputa. Com atraso superior a 50 segundos faltando poucas voltas para o fim, a Prost só restava blefar. Logo após superar a Ferrari de Berger ele emula uma tentativa de perseguição a Senna, ciente de que o companheiro de equipe iria morder a isca e alterar o próprio ritmo, como forma de indicar que tinha a situação sob controle. Dito e feito. Ao enviar essas “ondas de pressão” acabou induzindo Ayrton a um dos erros mais embaraçosos de sua vida nas pistas.

A partir do México Prost entende e aceita que, em condições normais, irá largar sempre atrás do companheiro de equipe. Senna, por sua vez, está com a confiança abalada e, limitado por problemas na válvula pop-off, jamais chega a ameaçar a terceira vitória do rival, apesar de ter conquistado nova pole position, desta vez com seis décimos de vantagem.

No Canadá a disputa nos treinos é bem mais apertada, a vantagem de Ayrton caindo para pouco menos de dois décimos. Na corrida o francês pula melhor, e pela primeira vez em sua carreira Senna é colocado em xeque. Uma quarta vitória em cinco corridas cristalizaria a crença geral no favoritismo do bicampeão e representaria um quadro complicado demais para ser revertido. Para piorar, Prost guiava no limite do que o consumo permitia, tornando uma ultrapassagem algo extremamente improvável. Senna, no entanto, não tinha alternativa que não fosse partir para o ataque, e abre uma perseguição implacável até conseguir aquela que possivelmente terá sido a ultrapassagem mais importante de sua carreira, aproveitando-se pela primeira vez neste confronto da presença de um retardatário. A vitória recuperou a confiança do brasileiro, que em Detroit, na etapa seguinte, voltou a ser 1,4s mais rápido que Prost, e partiu da pole para uma vitória segura.

Diante da torcida, em Paul Ricard, Prost se mostra sempre superior. Nos treinos quebra pela primeira vez a sequência de poles do brasileiro, sendo quase meio segundo mais rápido. E na corrida devolve a manobra do Canadá, também fazendo uso da negociação com retardatários. Senna tinha problemas de câmbio, mas em nenhum momento pareceu ter forças para vencer na casa do adversário.

O equilíbrio de forças parecia ter virado novamente, mas então choveu na Inglaterra. Enquanto Senna partiu para o ataque em relação às Ferraris, as quais haviam monopolizado a primeira fila, Prost seguiu perdendo posições até tomar uma volta do companheiro de equipe e concluir que não fazia o menor sentido permanecer na pista, numa altura em que todos já sabiam que o campeonato seria decidido pelo número de vitórias. Senna voltaria a vencer na Alemanha, de novo com pista molhada, superando o rival pela primeira vez no somatório de triunfos: 5 a 4.

O placar se ampliaria ainda mais na Hungria, mas não sem altas doses de drama. Incorporando à perfeição seus respectivos perfis descendente e ascendente, Senna e Prost tomaram caminhos distintos até o inevitável encontro na parte final da corrida. Enquanto o brasileiro agarrou-se à liderança a partir de uma pole espetacular, Prost chegou a cair para a nona posição antes de iniciar uma aguda corrida de recuperação que lhe levou a assumir a ponta por alguns metros, antes de tomar um X cirúrgico do brasileiro no qual os carros não se tocaram por questão de milímetros. Nova vitória de Senna na Bélgica, a partir de uma atuação de regularidade impressionante, parecia dar a fatura por liquidada. Prost, no entanto, ainda tinha uma grande lição a dar.

Em Monza, após ser superado de forma até humilhante nos primeiros metros, Prost percebe ainda nas primeiras voltas que seu motor tem problemas e dificilmente chegará até o fim. E, enquanto pilota atrás de Senna, traça uma estratégia brilhante para evitar que o rival vença sua quinta corrida seguida e coloque as mãos no título. De novo explorando a previsibilidade de Senna, Alain aumenta o ritmo para níveis insustentáveis, ciente de que Ayrton iria preferir ficar em débito com o consumo de combustível a se deixar ultrapassar. Quando, por fim, sua previsão se confirma e o motor vai pelos ares, Senna se vê vulnerável ao ataque das Ferraris, impulsionadas pelo espírito do Comendador, falecido poucos dias antes. Em meio a uma perseguição muito tensa Senna acaba se envolvendo num acidente de dinâmica complexa a duas voltas do fim, naquela que foi a única prova não vencida pela McLaren em todo o ano.

A reviravolta em Monza é a senha para duas corridas ainda hoje misteriosas, nas quais Ayrton se vê limitado por indicações extremamente severas no consumo de combustível. Em Portugal Prost faz uma volta magistral e sai do carro antes do fim dos treino, ciente de que não poderia ser batido. Na corrida, por sua vez, Senna trai todo o seu estresse ao espremer o rival de forma acintosa e injustificável contra o muro dos boxes, enquanto Prost partia para uma vitória dominante e ele dava início a uma prova sofrível, a qual iria terminar apenas na sexta posição. Mais quinze dias e a história iria se repetir em Jerez de la Frontera: nova vitória de Prost, com Senna lutando muito para conseguir uma estratégica quarta posição, que o deixava a uma vitória do título mundial, nas duas corridas que restavam.

https://www.youtube.com/watch?v=_GMJH4tN148

O momento era todo de Prost, e o quadro só se agravou quando Ayrton deixou o carro morrer na largada para o Grande Prêmio do Japão, caindo da pole para a 14 ª posição. Dessa vez, no entanto, seu desempenho havia voltado ao normal, e a recuperação até a terceira posição foi rápida e sem sustos. Ainda assim, alcançar Prost parecia impossível até que o clima interveio na forma de uma leve chuva. Alain perdeu tempo com um problema de câmbio em ao menos uma oportunidade, mas foi de novo através de presença de retardatários que as posições se inverteram. Logo em seguida Ayrton controlou uma assustadora saída de traseira ao fim da reta, segurou a pressão do adversário e tocou seguro para uma vitória emblemática, que lhe valeu um título que poucos teriam sido capazes de conquistar, bem como uma experiência mística que interpretou como uma visão de Deus.

O choro dentro do capacete, e nas entrevistas que se seguiram à corrida, mostrava as cicatrizes emocionais de uma batalha que havia sido muito mais dura e pesada do que ele havia imaginado. Apesar de todo aquele talento, o caminho até o primeiro título mundial havia sido extremamente difícil e sacrificante. E as coisas só iriam piorar ainda mais no ano seguinte.

A pergunta fundamental de 1988, todavia, havia sido respondida: Sim, Alain Prost poderia ser batido dentro da sua própria equipe, num contexto esportivo favorável a algumas de suas  maiores virtudes. A partir daquele momento o mundo inteiro, e o próprio Senna, passavam a ter uma dimensão muito mais nítida a respeito de sua estatura histórica.

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5 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Belíssimo texto, amigo Márcio!

    Esta temporada de 1988 foi mesmo mágica, algo que fez da nossa geração, um caso de amor automático pela F1.

    Que saudades…

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. CLEITON BASSO DARÉ disse:

    Mais uma coluna cirúrgica do amigo Márcio Madeira!
    Como foi bom voltar no tempo e relembrar a atmosfera daquela temporada, que teve, sim, muita emoção desde o início, com as alternâncias de momentos bons entre Senna e o Prost!
    Amanhã fará 30 anos daquela madrugada histórica, quando acompanhei o GP do Japão sentado no chão da sala, roendo todas as unhas até sair sangue de tão aflito…
    Abração.

  3. Grande amigo Márcio,

    Belíssima coluna, como sempre.

    Me coloco entre os que não gostam muito da temporada 1988. Olhando de um prisma diferente, levando-se em conta o que foi a década de 1980 na F1, 1988 foi a pior temporada da década e de longe. As corridas chatas superaram as boas pela primeira vez em anos. O que salvou foi, como você falou de forma espetacular, a fantástica briga entre Senna e Prost.

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