Um novo mutante

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A história do esporte a motor é como a da natureza: feita de evoluções.

O esporte a motor, assim como na natureza explicada pela ciência, evolui sob a égide do only the strong survive. E há duas maneiras deste processo acontecer. O primeiro método é a seleção natural, em que os mais adaptados garantem sua sobrevivência: milhares de anos atrás, os lobos menos ferozes entraram em contato não-agressivo com o homem e se transformariam no cachorro que hoje conhecemos, após diversas gerações que foram moldando essas características de domesticação.

O segundo método é a mutação. Ursos que sofreram mutação para uma pelagem branca (albina) se adaptaram muito melhor em terras nevadas, pois se confundem com o ambiente e caçam com mais eficácia. Desnecessário dizer o quanto a mutação é mais radical e muito mais impactante. Anos e gerações inteiras de seleção natural são simplesmente engolidos por mutações eficazes.

Estamos acostumados a ver no esporte a motor esses dois tipos de evolução darem certo. No hall das evoluções naturais, o projeto de longo prazo com a BMW deu o título a Piquet e Brabham, criando o mais potente motor que a F1 já viu. O motor flat-12 da Ferrari projetado por Mauro Forghieri foi evoluindo e suas melhores gerações de carros alcançaram a glória nos anos 70.

Ron Dennis projetou a compra da McLaren, e a associação com pessoas e empresas certas (Marlboro, John Barnard, Mansour Ojjeh, TAG, Porsche, Alain Prost, Niki Lauda) para dominar a metade dos aos 80, e depois fazer novas parcerias (Honda, Ayrton Senna, Gordon Murray) para continuar ganhando.

Por outro lado, temos John Cooper, o primeiro grande mutador da F1 a colocar o motor na traseira do veículo, por conveniência – uma história deliciosamente contada pelo amigo Mário Salustiano. A F1 e o esporte a motor em si jamais seriam os mesmos.

Cooper seria sucedido por Colin Chapman, este sim, o grande disseminador das mutações da F1 – praticamente um Professor Xavier. Construção monocoque, radiadores laterais, corpo aerodinâmico, aerofólios, efeito solo… Todas dramáticas mutações que renderam títulos para a Lotus. Colin, isso é consenso, não queria apenas ganhar. Ele sempre estava procurando destas mutações em forma de vantagens radicais. Não queria apenas vencer, queria humilhar a concorrência.

No hall da fama dos disseminadores de mutações na F1 também temos o Brabham-Ventilador de Gordon Murray, o primeiro Renault Turbo, a Tyrrell de 6 rodas… Não são necessariamente vencedores de primeiro momento. Mas são importantes quebras de paradigma, que surpreendem e fazem todo o mundo em volta rever conceitos. Do mesmo modo que a natureza cria condições para que as mutações ocorram, os regulamentos, quando estudados por mentes criativas, também possibilitam isso.

Após anos sem vermos dessas mutações radicais, eis que surge o Nissan GT-R LM Nismo.

O GT-R LM foi criado para fazer frente aos poderosos carros da Toyota, Audi e Porsche no Campeonato Mundial de Endurance. Como boa parte dos mutantes, causou enorme estranhamento. Motor dianteiro, e, pasmem, tração também dianteira, com direito a pneus mais finos atrás do que na frente. Nenhum carro de alta performance desafia as pistas mundiais com motor dianteiro desde o Panoz Evo no começo da década passada, e com tração dianteira desde o lendário Miller Straight Eight em Indianápolis… na década de 1920!

Nunca na história do esporte a motor houve um carro com tamanho poder e performance com essa configuração. O pico de potência do GT-R LM é de mais de 1230 cavalos, quando despejada a força extra dos sistemas de recuperação de energia junto a um refinado V6 de 3.0 litros biturbo. Como colocar todo esse torque no eixo dianteiro é um desperdício – não há pneu que segure isso -, parte da energia elétrica é transferida para o eixo traseiro, deixando o carro com tração parcialmente integral.

Tive a oportunidade de conversar por meia hora, via Skype, com Ricardo Divila, um nome que dispensa apresentações. Ele está profundamente envolvido com o projeto, fazendo a ponte de engenharia entre os três polos de operação: a Nismo (Japão), a Ben Bowlby Racing (EUA), que projetou e construiu o carro, e os fornecedores de peças na Inglaterra. Ricardo, que, vocês lembram, chegou a escrever colunas pro GPTotal, também vai ser engenheiro de pista de um dos três carros (#21, #22 e #23) que a marca japonesa colocará nas etapas do WEC, incluindo a grande meta do time: vencer as 24 Horas de Le Mans.

“Eu estava semi-aposentado. Mas quando surgiu o projeto do LMP1, voltei full time”, disse Ricardo, que se interessou justamente pelo regulamento permissivo do WEC. É possível usar praticamente qualquer motor, qualquer arranjo mecânico, quaisquer sistemas de recuperação de energia.

O que importa na WEC é usar apenas uma quantidade limitada de combustível e de energia por volta, e uma quantidade limitada de pneus para o fim de semana de corrida. Ou seja, o carro, para ser o mais rápido, tem que ser energeticamente o mais eficiente. Não há receita de bolo, como a F1, que Divila classifica atualmente como “chata” – o que, quando falamos de regulamento técnico, não temos como discordar.

Divila estava num hotel em Indianápolis, cidade que está coberta pela neve. O horário local era 6:15 da manhã e ele acabava de terminar uma reunião com a Nismo no Japão, preparando-se para tomar café e encarar o dia junto à Ben Bowlby Racing, que usa a oficina da antiga equipe Forsythe da Indy – segundo Ricardo, uma ótima estrutura.

A ideia por trás do GT-R LM é explorar o regulamento da WEC com uma proposta mais ousada – uma vez que a estrutura e o orçamento são bastante inferiores quando comparados à Porsche, Toyota e Audi – esta última, com orçamento de 100 milhões de euros por ano.

Ben Bowlby já havia declarado que não queria construir “mais uma cópia de Audi”. Ele foi o criador do DeltaWing, carro que participou da concorrência a novo chassi para a Indy (a Dallara acabou vencendo com o atual DW12). A partir do monocoque do Aston Martin AMR-One, Bowlby criou o DeltaWing “biplace” para Le Mans, que participou da corrida em 2012.

Divila disse que participou com Bowlby das discussões sobre o regulamento, e a partir do DeltaWing com carroceria fechada, fizeram um arranjo para colocar o motor, câmbio e os sistemas de arrefecimento na dianteira. Nasce o mutante.

“Já testamos em várias pistas nos Estados Unidos. E vamos agora para Sebring, fazer testes de durabilidade. Basicamente vamos andar com o carro até ele quebrar”. Uma das pistas usadas foi a de Austin, onde ano passado a WEC fez uma das etapas. A Nissan, deste modo, teve como fazer comparativos com a performance dos rivais. “Temos parâmetro de tempos de volta, tempos em setor, velocidade máxima etc.”, disse Divila.

Com este projeto, Ricardo admite que podem existir dificuldades em circuitos mais travados. Mas que o carro se encaixa muito bem em Le Mans, que, segundo o próprio engenheiro, é o maior objetivo da Nissan. No momento, Divila enumera dois desafios para a engenharia: otimizar a utilização da energia dos sistemas de recuperação e calibrar o freio by wire.

Sobre o primeiro desafio, a questão é utilizar a energia recuperada da melhor maneira possível, e Ricardo aponta que o melhor momento de descarregá-la é nas saídas de curva, em retomadas de aceleração. Afinal, é mais eficiente embalar o carro do que aplicar essa energia para aumentar a velocidade final.

O freio é outra questão a ser explorada. Como ele é conjugado com o sistema de recuperação de energia, não é um arranjo mecânico, mas sim eletrônico. Não é apenas uma questão de eficiência de frenagem, mas sim de estabilidade do carro. De resto, Divila garante que o carro não tem grandes problemas para serem resolvidos. “Sistemas funcionando bem”.

Saberemos muito em breve como o mutante vai se comportar em meio às espécies mais refinadas que a seleção natural já produziu para as corridas de endurance. Em um mês, haverá testes coletivos em Paul Ricard e a primeira etapa da WEC será as 6 Horas de Silverstone, em 12 de abril.

Não sei vocês, caros leitores, mas eu costumo simpatizar com os mutantes do automobilismo. Costumamos reverenciar no esporte a motor conjuntos vencedores. Para mim, tão importante quanto isso é reverenciar a ousadia. E esta não deve estar apenas na pilotagem. Também deve estar presente na criação das máquinas.

Aquele abraço!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

3 Comments

  1. Fabiano Bastos disse:

    Grande texto!
    Também simpatizo com a ousadia e estou torcendo pelo sucesso desse “mutante”, dá pra chamar ele de X-Car.
    Na F1, mesmo com toda a limitação imposta pelo regulamento, parece que a McLaren/Honda está ousando colocando na pista o carro mais compacto que puderam construir.
    Vamos ver no que vai dar, mas já contam com minha torcida.
    Espero que os donos da F1 percebam a necessidade de ul regulamento mais aberto.

  2. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    de certa forma até me assusto com tantas inovações proposta pela no seu GT-R LM.
    É um bólido em tanto … a principio em termos de “beleza”, ele é bem comparável aos seus concorrentes diretos … não acho os carros da Endurance “bonitos” mas não nego que são carros de corrida … e por este lado sim acaba me impressionando …
    Vamos aguardar … bater as Toyotas parece algo impossivel, ao menos para os Audis e Porsches …
    Uma pergunta: quemserão os pilotos dos Nissans?

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!

    Olha, eu particularmente não curti muito esta história de pneus mais finos na traseira.

    Sei que é engenharia sendo aplicada, mas a aparência da máquina ficou estranha, pois ao meu gosto, carros de corrida tem que ser tração traseira e pneus mais largos que no eixo dianteiro.

    Bom, pelo menos no WEC podemos ver mudanças radicais, coisas que na F1 infelizmente não ocorre e que por isso a tem deixado “chata” como bem disso o Divila.

    Vamos aguardar, e sucesso ao novo mutante das pistas.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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