Virada de Jogo – Parte 1

Tempos superficiais
28/09/2020
Está faltando água? 1a Parte
05/10/2020

Emoção e suspense são duas combinações poderosas para prender a atenção em disputas de corridas e títulos. Só que muitas vezes, a combinação particular de piloto e carro superiores esmaga a concorrência a tal ponto que o sucesso dessas combinações torna o resultado final uma conclusão previsível do resultado das corridas e na conquista dos títulos.

O melhor dos mundos para nós torcedores seria aquele em que até no último minuto, na última curva, os postulantes disputassem cada ponto na pista e que nós tivéssemos essa dose de suspense prendendo nossas respirações.

Em busca de situações que chegassem próximo, pesquisando as setenta temporadas disputadas até 2019, encontramos uma questão ainda mais peculiar, os campeonatos que tiveram uma virada na rodada final onde o piloto líder até então perdeu o título para quem vinha em segundo ou terceiro na tabela classificatória até então

Foram dez, as temporadas onde aconteceram essa virada de resultado na última prova, são elas:

-Campeonato de 1950 com a conquista de Nino Farina

-Campeonato de 1964 com a conquista de John Surtees

-Campeonato de 1976 com a famosa conquista de James Hunt

-Campeonato de 1981 com a conquista de Nelson Piquet

-Campeonato de 1983 com anova conquista de Nelson Piquet

-Campeonato de 1986 com a conquista de Alain Prost

-Campeonato de 1997 com a conquista de Jacques Villeneuve

-Campeonato de 1999 com a conquista de Mika Hakkinen

-Campeonato de 2007 com a conquista de Kimi Raikkonen

-Campeonato de 2010 com a conquista de Sebastian Vettel

Desses campeonatos listados, apontamos três deles onde o piloto que entrou na última prova em terceiro na tabela de pontos e conseguiu virar o jogo para conquistar o título. Falamos dos campeonatos de: 1950, 2007 e 2010.

Começando pela temporada de 1950, que foi a primeira estabelecida oficialmente como campeonato mundial, foi dominada pela equipe Alfa Romeo, que além de contar com o melhor carro, contava também com o trio mais forte de pilotos do grid, Juan Manuel Fangio, Giuseppe Farina e Luigi Fagioli. Foram disputadas sete provas naquele ano e apenas quatro seriam consideradas para a contagem de pontos

Parecia um campeonato fadado ao marasmo dada a superioridade das Alfas e, ao final do certame a supremacia seria confirmada: venceram seis dos sete GPs, perdendo só a Indy 500, da qual não participou. Farina e Fangio ficaram cada um com três vitórias e pontuaram em quatro corridas. Farina levou o título, tendo conquistado 30 pontos contra 27 de Fangio.

O que é pouco comentado é que após a disputa do GP da França, penúltima prova daquele mundial, a tabela de pontos apontava: 1. Fangio com 26 pontos, 2. Fagioli com 24 e 3. Farina com 22.

A última prova foi disputada no templo de Monza. Fangio emergia como favorito. Ele havia sido mais regular e bastaria comboiar Farina caso o italiano vencesse a prova para levar o título. Mesmo um terceiro lugar lhe daria o campeonato. Para Farina e Fagioli a situação era mais difícil: precisariam vencer e torcer para um resultado de Fangio abaixo da terceira posição.

Fagioli apesar de estar em segundo no mundial era considerado azarão. Ele conquistara quatro segundos lugares e era o terceiro piloto, a sua pontuação só mudaria com a vitória, já que até Monza ele já havia pontuado em quatro provas.

Farina conhecia Monza intimamente. Na manhã de 3 de setembro, o Doutor Farina como era tratado, e sua esposa Else foram à igreja em Monza para assistir a uma missa especial. Ele ostentava uma aparência de calma e foi lá em busca de forças, um lugar para se recompor para a disputa da tarde.

Sobre Farina, o autor britânico Anthony Pritchard escreveu em seu livro The World Champions: “Muito pouco do que Farina sentia sobre as corridas se tornou conhecido, não havia explicação para sua direção dura e enérgica, que às vezes beirava a irresponsabilidade, ou para seu humor que era oscilante. Ele podia perfeitamente desistir de uma corrida no meio da disputa sem motivos aparentes. Isso dificultava muito a vida de seus chefes de equipe.

Farina dirigiu para a Alfa Romeo imediatamente após a guerra, mas saiu em 1946 quando pensou que, como piloto número um, deveria ter sido autorizado a vencer uma corrida, mas a Alfa não o fez. Casou-se tarde e sua esposa, dona de uma famosa casa de moda, era tão refinada e elegante quanto ele. Em 1949, dirigindo um Maserati em Monza, Farina retirou-se desmotivado porque seu carro não conseguiu alcançar os dois Ferrari à sua frente.

Com um histórico desse havia uma certa preocupação nos boxes da equipe Alfa: o que um homem assim pode fazer caso sinta que um argentino vai derrotá-lo em sua casa?

Enquanto Farina e Else oravam, 100 mil pessoas se moviam em direção à Monza. A temperatura da disputa havia esquentado semanas antes, durante uma corrida fora do campeonato em Bari, no sul do país.  Ferrari não tinha ido e Farina e Fangio eram os grandes favoritos com os Alfa. Eles tiveram uma corrida fácil, ficaram se alternando na liderança até a penúltima volta, quando Farina conseguiu livrar uma boa vantagem e ganhar a corrida.

Porém, nas palavras de Fangio, após a corrida havia um certo ceticismo quanto a isenção da equipe: “Naquele momento, eu tive a descoberta irritante de encontrar meu tanque secando enquanto Farina tinha gasolina suficiente para continuar. Tive de parar nos boxes, meu motor tossindo. Eu retornei e cheguei em segundo lugar. Estava furioso e me perguntei: foi negligência da equipe?  Prefiro não procurar nenhuma outra explicação para aquele pequeno episódio. Prefiro pensar que, na pressa de reabastecer, alguém pensou que meu tanque estava cheio quando tinha apenas três quartos ou menos”.

Depois da corrida, Fangio examinou seu carro e disse a alguém que estava por perto: “Não, não há vazamento no tanque” como se quisesse se prevenir de eventuais desculpas da equipe Alfa. Seja como for, a Alfa Romeo era italiana, Farina era italiano e Monza era o coração da Itália.

A paz de espírito de Fangio também não foi melhorada por várias falhas mecânicas em outras corridas antes de Bari. Ele desconfiava e tentou entendê-los, mas não conseguiu. Sobre Bari, ele perguntaria a um mecânico, que diria que era um problema com o carburador, perguntaria a outro que diria o contrário.

A decisão de 1950 foi uma guerra de nervos nos bastidores

A Ferrari, por sua vez, começava a ter carros mais competitivos e podia fazer frente aos Alfa em Monza. Seu projetista, Aurélio Lampredi, se convenceu de que um carro sem superalimentação era o futuro. Houve corridas difíceis em seu início, mas no GP da Suíça fizeram uma boa prova, tendo Ascari liderado algumas voltas antes de quebrar. Lampredi persistiu no conceito e para Monza, tinha dois carros novos desenvolvendo 330 cv a 7.000 rotações e, como eles não estavam sobrealimentados, precisariam de um único pit stop.

Os Alfas, por sua vez, consumindo muito combustível, precisariam de alguns pits stops durante a corrida de 502 Kms. Com cada pit stop durando cerca de meio minuto, a Ferrari seria uma ameaça real às pretensões de Farina.

E agora é domingo, Farina está saindo da igreja, esse homem com um rosto sombrio e digno, que veio de uma família rica e que começou a competir em 1927.

Dele Enzo Ferrari diria: “era um grande piloto, mas eu nunca pude deixar de ficar apreensivo com ele, especialmente no início de uma corrida ou a uma ou duas voltas do final. Ele sempre carregava o semblante de um puro-sangue altamente tenso, capaz de largar antes em sua ansiedade, ou perto do fim da corrida, capaz de cometer as loucuras mais surpreendentes”

A tarde em Monza estava quente e quando a multidão viu Farina gritou “Viva Nino, Viva Nino!”, enquanto poucos gritaram “Viva Fangio!”. Um comentarista se preparou para transmitir a corrida ao vivo para a Argentina, onde os jornais já haviam feito algum aquecimento por conta própria, insistindo que Fangio era “o único campeão possível”. Os argentinos ficariam de olho em qualquer falha mecânica que afetasse Fangio, mas não Farina.

A configuração básica de Monza era a mesma desde a sua inauguração e os nomes ecoantes de suas curvas: Curva Grande no final da reta, Curva di Lesmo, Curva di Vialone e a famosa Parabólica.

Dada a largada, os três Alfas superaram Ascari. Farina tirou a liderança de Fangio, mas Ascari era combativo. Ele era tão italiano quanto Farina e muitos naquela multidão o adoravam como haviam adorado seu pai.

Ele ultrapassou Fangio e quando cruzaram a linha para completar a primeira volta, já estava atacando Farina. Se ele conseguisse passar, se conseguisse segurar a liderança até o fim, Fangio seria o Campeão do Mundo.

Fangio estabeleceu a volta mais rápida na 7ª volta, garantindo um ponto extra, e então continuou jogando com sua melhor arma: a paciência.

Ao longo de 13 voltas, Ascari ataca e Farina resiste.  Na volta 14, Ascari parecia ter perdido velocidade e tentou levar Farina ao limite do carro, mas ele não caiu em seu jogo e não perdeu a paciência. Farina se controlou, o que levou Ascari ao limite e sua Ferrari quebrou, um problema com o eixo traseiro.

No final da volta 22, Fangio vai para os boxes. Um problema?  Uma catástrofe?  Não. Os mecânicos empurraram um macaco sob a traseira do carro, levantaram-no e martelaram as porcas do cubo para trocar as rodas traseiras. Durante essa parada, os mecânicos encheram seu tanque e Fangio saiu para caçar Farina. A caçada durou entre as voltas 23 e 24 e terminou com uma rapidez quase chocante.

A caixa de câmbio de Fangio emperrou. Ele depois relatou: “O carro me decepcionou de uma forma inexplicável. Eu poderia ter chorado de tristeza. O título de Campeão do Mundo escorregou por entre meus dedos sem nenhum motivo, exceto o azar”.

Fangio sabia que sua decepção era óbvia, visível e a direção da equipe Alfa não podia ficar sem nada fazer para não deixar no ar suas possíveis implicações de favorecimento a Farina. Eles tomaram uma decisão imediata.

Nesse momento deram a ordem para que Piero Taruffi, um italiano de 46 anos quando estreou em GPs, entrasse nos boxes. Imaginava que estava fazendo uma parada de rotina para pneus e combustível, mas logo entendeu a situação: desceu do carro e o ofereceu a Fangio.

Esse ato de cavalheirismo e a generosidade permaneceram com Fangio para sempre. Ele saltou para o cockpit e retomou a caçada a Farina, e  não estava sozinho: Ascari havia assumido a Ferrari de Dorino Serafini, um italiano que fazia seu primeiro e único GP.

Ascari estava dois minutos atrás de Farina, mas não era homem que se deixasse dissuadir por algo tão trivial, especialmente porque Farina precisou fazer sua segunda parada de combustível.

Tudo mudou na volta 35: o motor de Fangio quebrou quando caiu uma válvula e o destino selou ali o destino do título.

Ainda aconteceu mais uma parada de Farina, Ascari subiu para o segundo lugar, mas Farina não foi alcançado e venceu com 1m18 de vantagem, se sagrando o primeiro detentor do novo título, Campeão do Mundo de Fórmula 1. Festa em Monza, grande alegria da torcida e dos jornais italianos.

Farina sorriu com prazer inabalável pela maneira como o aparentemente impossível aconteceu: que virada de jogo ele conseguira impor!

Na próxima coluna vamos abordar a temporada de 2007.

Até lá

Mário Salustiano

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

3 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Grande Mario,

    histórias boas é para serem contadas … ainda mais quando voce acerta em cheio no tema …
    parabéns!!!

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Mauro Santana disse:

    Grande Salu!

    Show demais este seu novo tema, e que história incrível esta do título de Giuseppe Farina.

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *