Wing Wars – Parte 1

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“A gênese de um carro de corridas é a roda; a origem do voo é a asa. Levou milhões de anos para que uma fosse apresentada à outra. Quando foram, evolução se transformou evolução”.  

Estas são as primeiras palavras do excelente documentário The Shape of Things to Come, e nos chamam atenção para esse componente que mudaria dramaticamente o automobilismo: a asa.

Não se sabe ao certo quem foi o primeiríssimo a ter essa ideia, mas as primeiras pesquisas sérias nasceram nos anos 60 com a Chaparral, construtora vanguardista americana que foi relembrada com propriedade aqui no GPTo pelo meu amigo Carlos Chiesa.

Primeiramente, Jim Hall e seus engenheiros projetaram uma dianteira que visava sanar o recorrente problema da frente se levantar em velocidades altas, o temível e famigerado lift. E para compensar essa pressão na dianteira, instalaram generosos flaps na traseira para equilibrar o conjunto. Perceberam então que, quanto mais carga colocavam, mais o carro fazia curvas, perdendo muito pouco nas retas.

Não demoraria muito para que a Chaparral colocasse asas enormes naqueles protótipos brancos, a fim de empurrar os pneus contra o solo, aumentando em muito a aderência, sem aumentar o peso do veículo.

Até então, o automobilismo vinha de décadas e décadas do mesmo conceito: o streamline, que surgiu muito antes, na longínqua década de 1930. As linhas dos carros de competição deveriam ser suaves, torneadas, para fazer o ar simplesmente deslizar gentilmente pela carroceria, encontrando o mínimo possível de barreiras. Ou seja, a ideia era “furar” o ar da maneira mais eficiente, até que descobriram que usar asas para empurrar o carro contra o solo era uma excelente ideia. Era uma nova força vetorial a ser explorada, a força pra baixo. Downforce.

Na Fórmula 1, claro, não foi diferente. Desde 1950 não havíamos assistido revoluções aerodinâmicas em parte alguma. O primeiro grande impacto de mudanças havia acontecido no campo da mecânica na Revolução de Cooper, que jogou o conjunto mecânico motor + câmbio para trás do piloto, criando carros mais compactos, com melhor distribuição de peso, que gastavam menos pneus e freios e eram mais fáceis de serem conduzidos.

Passamos dos charutinhos para as baratinhas, que sim, ficaram mais baixas, mas apenas porque isso ajudava a baixar o centro de gravidade, de modo a garantir mais aderência mecânica. Os avanços aerodinâmicos, entretanto, praticamente não foram dignos de nota.

As asas chegariam à Fórmula 1 em meados de 1968 para começar a mudar esse panorama. Mister Mônaco, Graham Hill vence o GP do Principado numa versão aprimorada da Lotus 49. Havia pequenas aletas na dianteira, uma de cada lado da tomada do radiador, e havia uma tampa traseira esculpida em forma de flap traseiro, pra empurrar a porção final do carro contra o solo.

Nos GPs seguintes, times começaram a também surgir com asas diversas, produzidas e instaladas tão somente pelo feeling dos projetistas. Era quase que por tentativa e erro.

Sempre um passo à frente, a Lotus teve uma ótima ideia. Já que a ideia era, basicamente, empurrar o carro pra baixo, era muito mais lógico fixar as asas não nos elementos suspensos (corpo do carro), mas sim nas próprias extremidades das suspensões. Surgiam então aquelas horrorosas bandejas altas, cada vez maiores, que transformavam os carros em guilhotinas móveis.

Claro que ia dar merda. E deu. Os suportes dessas asas eram tão fortes quanto palito de sorvete, e quebraram nas Lotus de Jochen Rindt e Graham Hill no GP da Espanha de 1969, no circuito urbano de Montjuïch.

Asas frágeis: Hill bateu forte, mas o acidente de Rindt foi ainda mais grave

A CSI, embrião da FISA, não podia deixar aquela insanidade continuar, e proibiu já para o GP seguinte a fixação de asas nas suspensões. Dali em diante, componentes de geração de downforce, só no corpo do carro. E por falar em corpo de carro, ele continuava daquele mesmo jeito: cilindrão com um buraco na extremidade para ventilar o radiador.

Tínhamos praticamente as mesmas baratinhas de sempre, agora dotadas de asas. Mais uma vez quem deu um passo à frente foi Chapman e sua Lotus 72. Entre os principais conceitos do carro, radiadores nas laterais, o que vale para os F1 até hoje, mas num conceito aerodinâmico revolucionário que eu particularmente acho péssimo: o formato de cunha. Sempre que me deparo com os carros de Fórmula 1 do começo da década de 1970, sou tomado por um leve sentimento de aflição.

OK, é um formato até elegante e a Lotus 72 é um modelo elegante. Mas fico impressionado o quanto os projetistas da época se preocupavam na penetração do ar esquecendo-se totalmente de como esse ar seria escoado do carro. Era uma negligência absurda! Frentes pontudas acabavam em verdadeiros paredões nas traseiras, que constantemente ainda levavam radiadores de água e óleo pra provocar ainda mais arrasto embaixo da asa traseira!

Se levarmos em conta que a forma maciça mais perfeita aerodinamicamente é a gota, com coeficiente de arrasto de apenas 0.04, o que tínhamos estava muuuuito longe disso. Basta observarmos o formato dos F1 atuais vistos de cima e perceber que eles são praticamente uma gota entre duas asas – a dianteira e a traseira. Os engenheiros se matam pra escoar esse ar que acabou de aderir ao carro.

O jogo começaria a mudar ainda em meados da década. Em 1976, por exemplo, a McLaren percebeu que, se removesse os pequenos radiadores de óleo da extrema traseira do carro e os colocasse nas laterais, junto aos radiadores de água, a asa traseira funcionava muito melhor e o carro ganhava desempenho e estabilidade. Essa realocação está diretamente ligada à competitividade do carro, e, em último caso, foi um ingrediente essencial para que James Hunt conquistasse seu título.

Aos poucos, aqueles paredões traseiros foram sumindo, dando lugar a desenhos mais harmônicos e que todos conseguem reconhecer até mesmo se todos pintados de zebra. O escoamento de ar, entretanto, ainda era bastante deficitário. Projetistas insistiam em pensar no ar que passava por cima das asas, esquecendo-se do que passava por baixo.

Isso até, mais uma vez, a Lotus sair na frente e passar a pensar no ar que passa por baixo do carro, o que levou também, às primeiras preocupações com o escoamento de ar. Tal filosofia daria origem ao que conhecemos hoje como carro-asa.

O primeiro deles seria a Lotus 78, que realizou sua estreia em 1977. Não, Colin Chapman não trabalhou sozinho, nem foi o pai da ideia. A ideia foi desenvolvida com outros quatro engenheiros: Ralph Bellamy, Martin Ogilvie, Tony Rudd e Peter Wright.

Eles haviam sido desafiados por Chapman a encontrar uma solução que colocasse a Lotus novamente no topo. A ideia era basicamente usar as laterais do carro como perfis de asa invertida para criar uma zona de baixa pressão embaixo delas, e que isso gerasse pressão para baixo, com um mínimo de arrasto. Bernoulli não poderia ficar mais orgulhoso de como estavam aplicando sua teoria.

Não apenas o ar seria escoado de maneira mais eficiente, como a pressão aerodinâmica conseguida era farta. O elemento que faltava, também fundamental, eram as saias de vedação laterais. Diz a história que, no túnel de vento com piso móvel do Imperial College britânico, em Londres, ainda em 1976, as primeiras maquetes da Lotus, feitas em madeira, massa de modelar e papelão, geravam tanto downforce que começaram a envergar no meio com o tempo. E quando as laterais tocavam o piso móvel, o nível de downforce disparava ainda mais.

Uma era absolutamente apaixonante nascia a partir da temporada 1977, a Era do Carro-Asa. Vamos relembrar nas próximas colunas tudo o que ocorreu no período até 1982, quando elas foram abruptamente extintas.

Até a próxima! Abração!

Lucas Giavoni

Leia também:

Wing Wars – Parte 2

Wing Wars – Parte 3

Wing Wars – Parte 4

Wing Wars – Parte 5

Wing Wars – Parte 6

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

7 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!

    Tema Fantástico, e como disse o Fernando, também estou sedento pelas próximas partes.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  2. Fabiano Bastos das Neves disse:

    Tema muito bom, mas pensando na moda do momento, eu rebatizaria a coluna de “Game of Wings”.
    O uso das asas representou um enorme avanço na dinâmica das corridas, porém acredito que atualmente perdeu-se o caminho.
    Equipes torram milhões em utilização de túneis de vento, mas se recusam a gastar uma pequena parte disso no fornecimento de um bom motor.
    Ano que vem a Indy fará o caminho inverso da F1 e reduzirá a importância da aerodinâmica adotando kits padronizados que possuem menos downforce e geram menos turbulência, permitindo que os carros possam correr mais próximos uns dos outros nas curvas, proporcionando (teoricamente) mais ultrapassagens. Vamos ver se a aposta será certa.
    Acredito que a F1 deveria adotar caminho semelhante. Gostei quando alargaram os carros e pneus, mas o aumento da carga aerodinâmica não era necessário. Com menos downforce, quem sabe seria possível abrir mão da famigerada asa móvel como artifício para ultrapassagens.

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Fabiano!

      É bacana sua sugestão de Game of Wings, mas como se trata de um flashback com recorte temporal de 1977 a 1982, nada mais adequado que promover uma guerra ‘estelar’ pela aerodinâmica perfeita. Não custa lembrar que “Uma Nova Esperança” foi lançado em 1977, e o Retorno de Jedi virou Retorno do Fundo plano em 1983, hehehe.

      Penso que sim, os regulamentos são tão restritivos que praticamente não há mais espaços para grandes sacadas aerodinâmicas. Ao mesmo, tempo, a área é uma das únicas que ainda permite ganho de desempenho, já que também não há como ganhar desempenho por melhorias consideráveis no motor.

      Também é certo o que a Indy está fazendo – até esteticamente, já que os chassis atuais são mais feios que o Pastor Maldonado com prisão de ventre. A F1 deu um tiro no pé, jogando fora uma grande chance de possibilitar apenas mais aderência mecânica: eles permitiram ganhos de downforce muito grandes, que anularam os benefícios.

      Eu penso que a F1 poderia recriar o carro-asa. Não como eram anteriormente, com laterais inteiramente designadas para isso, mas com um uso de fundo esculpido de modo a tirar um pouco das asas dianteiras a tarefa de geração de downforce para o eixo dianteiro. Isso permitiria os carros ficarem menos sensíveis à turbulência, pra andarem mais colados.

      Com o regulamento certo, acredito que a F1 pode se livrar de um dos expedientes mais execráveis que surgiram recentemente: o DRS, esse atendado à isonomia esportiva.

      Abração!

      Lucas

  3. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    excelente texto, ótimo tema … já estou sedento pelas próximas partes …
    O que eu acho interessante nisso tudo é tentar compreender como os projetistas pensavam naquela época em termos de aerodinâmica, velocidade e estabilidade já que no próprio texto, pelos conhecimentos atuais, são feitas “criticas” de forma positiva que demonstra a principio que os conceitos estavam “errados” … mas que mesmo assim representavam uma revolução técnica na Formula 1 e trouxeram grandes resultados. E não poderia ser diferente já que existia uma equipe chamada Lotus e um revolucionário chamado Colin Chapmam que neste aspecto não fica sossegado..
    Desde que acompanho a Formula 1, isso já desde 1968 ou 69 nada me encantou mais em termos de revolução que o conceito do chamado efeito solo criado pelos carros asas da Lotus. Pena que o domínio da Lotus na Formula 1 com este conceito tenha durado pouco e já em 1979 praticamente todas as demais equipes já adotavam e copiavam este conceito e fazendo o jogo a ficar novamente equilibrado.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Fernando!

      Sim, a intenção é mostrar a evolução, e como os conceitos vão mudando e evoluindo. E o mote dessa série de textos é exatamente essa: mostrar que a Lotus introduziu um conceito aerodinâmico que levou a uma grande guerra pelo refinamento, e que resultou numa gangorra pouco vista na história da categoria de equilíbrio de forças entre as equipes.

      E que o resultado dessa guerra foi um dramático aumento da velocidade dos carros em curva. Falarei bastante de como foram caindo os tempos de volta, e como essa era de 77 a 82 foi de muita diversidade de vencedores também.

      Abração!

      Lucas

  4. Manuel disse:

    Bom relembrar a história !

    Se nao me engano, o M23 teve seus radiadores de ólea recolocados no lateral devido a uma mudança no regulamente que proibia qualquer radiador ou depósito de fluidos por trás do eixo traseiro, coisa habitaual até entao.

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