Wing Wars – Parte 7

Bottas na Turquia
Bottas, o retorno!
11/10/2021
Como nossos pais
18/10/2021

Chegamos a 1981, ano em que pela primeira vez em que o campeonato foi nomeado como FIA Formula One World Championship. Havia no ar um aparente clima de continuidade. Mas, como acabei de mencionar, tudo não passa de aparência, ainda mais quando observamos como as equipes estavam evoluindo e como o mundo político da Fórmula 1 estava turbulento.

Falemos na turbulência primeiro. Sem me alongar muito, a F1 movimentava cada vez mais cifras e poder e duas esferas começaram a entrar em conflito. Um grupo era da FOCA, a associação dos construtores, liderado por Bernie Ecclestone junto às equipes inglesas. O outro grupo era a FISA, órgão regulamentador da F1, liderado por Jean-Marie Balestre e apoiado por equipes de fábrica como Ferrari, Alfa Romeo e Renault.

Ainda não havia uma fronteira clara entre as atribuições de cada esfera e atitudes de ambos os lados tornavam-se cada vez mais hostis. Isso levou a boicotes e a corridas declaradas ilegais, como o GP da Espanha de 1980, que só rolou de maneira extracampeonato com times da FOCA e por insistência do então rei Juan Carlos.

FOCA (Ecclestone) e FISA (Balestre) chegaram a um acordo, o Pacto de Concórdia, intermediado por Enzo Ferrari

Em fevereiro, o GP da África do Sul de 1981 também foi declarado ilegal. Disputado fora de regulamento, acabou chamado de “Formula Libre”. Nesse interim, o GP da Argentina, tradicionalmente disputado em janeiro, foi empurrado para Abril e a Goodyear, de saco cheio dessas picuinhas, deixou da F1, com a Michelin assumindo os contratos de pneus.

A questão principal era que a FISA, atendendo o lobby das equipes de fábrica, havia banido na virada do ano as saias móveis do carro-asa, elemento que era crucial para melhor geração de downforce. Agora, as laterais dos carros teriam que estar a pelo menos 6cm do chão – anulando boa parte da vantagem aerodinâmica, exatamente o que as grandes marcas queriam.

A intervenção de Enzo Ferrari para juntar os dois lados (Ecclestone e Balestre) resultou ainda no começo de 1981 na primeira edição do famigerado Pacto de Concordia. A FOCA se ocuparia da parte promotora e comercial, enquanto a FISA seria estritamente focada na parte técnica e esportiva. Deste modo, na primeira rodada oficial (Long Beach, 15 de março) todos tiveram que acatar a regra dos 6cm.

O documentário da BBC “Gentlemen: Lift Your Skirts” (o duplo sentido é ótimo) explica bem o que os times precisariam fazer para a adequação à nova regra. Mas esta aparente vitória da FISA se tornaria derrota na prancheta do meu projetista favorito, Gordon Murray, não apenas genial em projetar como em interpretar os regulamentos.

 

Muito simples: em movimento, a altura do carro vai sempre variar, pelo natural funcionamento das suspensões e até pela flexão dos pneus. Deste modo, tal medição só pode, óbvio, ser feita com o carro parado – adoraria ver um fiscal de pista correndo bestamente atrás de um carro com um gabarito na mão!

Isso quer dizer que, se fosse criado um sistema autônomo pra baixar o carro em movimento, isso recuperaria grande parte do downforce perdido pelo fim das saias. E foi exatamente isso que Gordon fez ao criar a suspensão hidropneumática. Tratava-se de um pequeno pistão instalado em cada tirante da suspensão, que baixava de altura com o movimento natural do carro, que era empurrado contra o solo pelas asas. Assim que o carro parava, o líquido dos pistões voltava a colocar o carro em 6 cm, obedecendo rigorosamente o regulamento imposto. Para que o líquido voltasse aos pistões de modo suave, foram instalados microfiltros, como os de diálise.

Reproduzo aqui um trecho da genial coluna do não menos genial Manuel Blanco, no texto sabiamente nomeado como “Ridículos 6 centímetros”:

 

Inicialmente, as equipes amparadas pela FISA invocavam a ilegalidade do sistema. Mas a FISA não tinha argumentos para atuar, pois o sistema funcionava de forma autônoma e sem interferências induzidas externamente. Tudo era “natural”. Murray havia deixado o pessoal da FISA no mais completo ridículo. Do único que podia ser acusado era de ser mais inteligente que os técnicos da FISA, mas isso não era culpa sua.

Logo as outras escuderias começaram a copiar o sistema de Murray. Na Bélgica, todas já o tinham e a maioria nem se preocupou em instalar os microfiltros: recorreram a um sistema que permitia ao piloto, mediante um botão, bloquear o fluxo do fluido entre os pistões e o depósito. Isto era algo que Murray tinha procurado evitar com seus microfiltros, pois representava uma violação do regulamento. Porém, a FISA, talvez sentindo-se já bastante humilhada, preferiu fazer a vista grossa. O próprio Murray começou a usar o tal botão a partir da Holanda.

 

Com a proliferação do sistema, a Brabham perderia sua vantagem inicial. Piquet, porém, acumularia pontos e vitórias importantes – fundamentais na construção de seu primeiro título, como veremos mais adiante.

Patrese e a Arrows A3 empolgaram no começo da temporada e depois… sumiram

Mas é sempre bom relembrar desde o começo “oficial”, a etapa de Long Beach. Já tivemos, logo de cara uma surpresa: Riccardo Patrese pole-position com… Arrows. O time que nasceu de uma dissidência da Shadow (que encerrou atividades ao fim de 1980) havia sofrido muito em 1979 com o radical A2, primeiro carro-asa do time, que tinha saias de comprimento total, motor “arrebitado” e um monte de soluções furadas. Apesar do visual impressionante, realçado pelo dourado da breja Warsteiner, a competitividade passou longe.

No modelo seguinte, o time fez a lição de casa e se inspirou fortemente na Williams e o vencedor modelo FW07. Com o A3, Patrese já havia feito um segundo lugar em Long Beach em 1980 – sim, da primeira vitória de Piquet. E o A3 sem saias, calçado com Michelin, apareceu muito competitivo no começo de 1981. Patrese liderou em Long Beach com propriedade até seu motor falhar, mas conseguiu um terceiro lugar no Brasil e, dois rounds depois, um segundo lugar em San Marino.

A partir disso, a Arrows simplesmente desapareceu. Não tinha dinheiro para desenvolver seu próprio sistema hidropneumático e, para piorar o que já era ruim, assinou um contrato de pneus com a Pirelli, que tinha compostos claramente inferiores aos Michelin – que, gulosa, havia se sobrecarregado. Não pontuariam mais no restante da temporada!

Ainda sobre Long Beach, destaque para a Williams, que começou (oficialmente) o ano com dobradinha. Alan Jones venceu ao superar o colega Carlos Reutemann após este bobear quando dava volta em Marc Surer. Piquet, já de hidropneumática, completou o pódio. Apenas 8 carros receberam a bandeirada.

Hierarquias à parte, Reutemann realmente estava em melhor forma que Jones no começo de 1981

Jacarepaguá voltou a sediar o GP do Brasil, pelo natural envelhecimento de Interlagos e porque a Rede Globo assim o quis, já que havia pago um caminhão de dinheiro para voltar a ter os direitos de transmissão, que no ano anterior havia sido assumido pela Bandeirantes a preços bem suaves.

Não preciso me estender muito nessa etapa, tão famosa. Foi o palco do famigerado clash Jones-Reut. Claro que aquilo azedou o clima dentro da Williams, mas não parece claro o quanto isso influenciaria na derrota de Reutemann, de saudosa memória, ao fim da temporada. De qualquer forma, a chuva que caiu por toda prova não possibilitou sabermos como estavam os conjuntos.

O pole Piquet errou na escolha de pneus e largou com slicks. Anos mais tarde, soubemos que ele permaneceu na pista, sem trocar pneus, por receio de ser desqualificado. Sua suspensão hidropneumática ainda em projeto primitivo podia não levantar o carro a tempo de atingir os 6 cm durante uma parada para pneus. Isso minou suas chances de vitória, que seriam consideráveis nos pneus certos.

Só tivemos uma noção da competitividade da Brabham e seu sistema pneumático na etapa seguinte. Se o argentino Reutemann ganhava no Brasil, o brasileiro Piquet ganhava na Argentina. A pole veio com relativa facilidade, com vitória de ponta a ponta. O carro estava tão bom que até mesmo seu companheiro, o mexicano Hector Rebaque, fingia ser um piloto de ponta, assumindo a segunda posição a partir do giro 23. Só não rolou dobradinha porque além de mediano, Rebaque era azarado. Uma pane elétrica resultou em abandono, deixando o segundo lugar para Reutemann.

Mesmo com o carro antigo, o ainda novato Alain Prost já começava a mostrar seu talento pela Renault

Alain Prost, em seu terceiro GP pela Renault, completou o pódio. Ele correu a bordo do carro de 1980 atualizado, RE20B. O futuro RE30 não daria as caras antes de Mônaco. Como tratava-se de uma evolução simples do carro que já havia estreado em 1979, era um projeto datado e sem fôlego. Ainda assim, teve esse lampejo de competitividade (e confiabilidade) em Buenos Aires. Não apenas Prost fez pódio, como René Arnoux recebeu a bandeirada em 5º com o outro carro.

Entre os dois carros da Renault, estava Jones, que tomou nada menos que 41s de Reutemann na prova. A boa forma do argentino, contrastando com essa queda de performance do campeão vigente estava diretamente relacionado a dois fatores. Primeiramente, a Williams estava calçada com Michelin, pneu com construção radial com o qual Reutemann já havia pilotado em 1978 pela Ferrari. O composto francês acabava casando melhor com o estilo mais “arredondado” de Reutemann.

Outro fator é que a Williams havia endurecido bastante a suspensão do carro de 1981 para compensar o fim das saias flexíveis. A ideia era diminuir as oscilações do carro (movimentos de rolagem, mergulho e empinada), a fim de estabilizar a criação de downforce por baixo do carro. Jones simplesmente odiou a atualização. Ele tinha uma tocada mais visceral, que dependia da permissividade do carro em explorar os limites de curva. Essa permissividade diminuía muito com as suspensões mais rígidas, obrigando o australiano a revisar sua pilotagem.

Na etapa seguinte, em Imola (na primeira vez que ganha o nome de GP de San Marino), nova vitória de Piquet. Riccardo Patrese deu o último bom resultado para a Arrows em segundo, com Reutemann em terceiro, enquanto Jones teve o bico danificado e nem chegou aos pontos. Hector Rebaque desta vez levou o outro carro Brabham aos pontos, na quarta posição.

A suspensão hidropneumática era uma realidade, os times já haviam despertado para isso e a partir da Bélgica, todos tinham seus sistemas. As corridas seguintes não seriam fáceis na jornada de Nelson Piquet.

É o assunto do próximo capítulo das Wing Wars, que não tem data pra sair…

 

Abração!

 

Lucas Giavoni

Leia também:

Wing Wars – Parte 1

Wing Wars – Parte 2

Wing Wars – Parte 3

Wing Wars – Parte 4

Wing Wars – Parte 5

Wing Wars – Parte 6

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. wladimir disse:

    Bom dia, Lucas.
    Se demorar mais a publicar a parte 8 vai ter que criar “Wing wars 2022” ou “Wing wars séc. XXI”. Um abraço.

  2. wladimir disse:

    Continuando de onde parei: Patrese deve ser magnânimo por nunca ter processado James Hunt em todas as instâncias possíveis por calúnia, difamação e falsa acusação! No lugar dele eu arrancaria até o couro do Hunt e dos herdeiros dele por todos os danos morais e materiais causados por aquela falsa acusação.

  3. wladimir disse:

    E Patrese também sofreu, em 1978, a caça às bruxas liderada por James Hunt pela fatalidade que vitimou Ronnie Peterson em Monza. Não me importa se era campeão e homem de opiniões e ideias fortes. Agiu como um imoral e mau caráter neste caso pois, sendo o único culpado pela tragédia, não assumiu a responsabilidade, como faria um homem de verdade, e ainda usou um então novato de bucha e bode expiatório! Patrese deve ser magnânimo para nunca ter processado James h

  4. wladimir disse:

    Boa tarde, Lucas.
    Retorno triunfal da saga “Wing Wars”!! Mesmo sem data para a próxima aguardo ansiosamente. Evocar a lembrança da conluna “ridículos seis centímetros” de Manuel Blanco foi fantástico!! Não sei se aconteceu mas adoraria ver a cara de idiota do Ballestre ao ser enganado pelo brilhantismo de Gordon Murray!!! Os novos detalhes que você expôs sobre as dificuldades que Jones passou com o novo ajuste das suspensões e o background que Reutemann tinha dos pneus Michelin realmente me surpreenderam. Prova que havia mais do que apenas o argentino estar “andando melhor” conforme os depoimentos de Piquet a Quatro Rodas. E ainda havia o detalhe da nova regra de descartes em que não mais havia primeira e segunda metades do campeonato e os pilotos somente descartavam os cinco piores resultados. Vou querer mais detalhes quando chegar a temporada de 1982 e o algo mais por trás das tragédias, porque custo a acreditar que a única causa daqueles acidentes foi a velocidade crescente dos carros-asa. Haviam muitos erros de construção dos chassis que, acredito, poderiam ser sanados. Mas estou sempre aberto a réplicas.

    Um abraço a todos. Firme para a conclusão da saga mas não deixe de escrever outras colunas, Lucas.

  5. Fernando marques disse:

    Lucas,

    Wing Wars parte sete está no capricho.
    Me trazendo muitas lembranças. Eu estava lá em Jacarepaguá torcendo pro Piquet. Choveu muita coisa. Reutman deu passeio e não deu chances pra ninguém, nem pro Alan Jones.
    Nelson jogou errado na escolha dos pneus. Achou que a chuva ia parar, o que não aconteceu. Elas durou por toda a corrida.
    Mas o bacana na coluna, são os detalhes técnicos de tudo que envolveu a fórmula 1 em 1981. FISA x FOCA foi umas briga boa. Gordon Murray deu um nó tático nsas favoritas Williams de Reutmann e Jones. Um temporada inesquecível.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *