HISTÓRIAS DO ALFRAN

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A história do Brasil na Fórmula 1 é freqüentemente contada tendo como ponto central algum dos 27 pilotos do país. Mas vários brasileiros mostraram sua competência em outras funções. Nosso colunista Ricardo Divila – o primeiro sul-americano a projetar um Fórmula 1 – é um deles. Pode-se citar ainda engenheiros como José Avallone Neto (que trabalhou para a Jordan durante algum tempo), Otávio Guazelli e Fernando Paiva (sócios de uma empresa de informática, a NGD, que prestou serviços para a Minardi entre o final da década de 1980 e o começo da década de 1990) e, atualmente, o pessoal da Petrobras, fornecedora de combustível da Williams, liderado por Rogério Gonçalves.

Um desses brasileiros, o potiguar João Alfran,chegou à equipe Coloni no segundo semestre de 1989, indicado por Roberto Moreno. A dedicação e a criatividade de Alfran logo se destacaram, especialmente em uma equipe carente de recursos. No final daquela temporada, Moreno se transferiu para a Eurobrun, mas Alfran permaneceu na Coloni. Eu o conheci no começo de 1990 por intermédio de Luiz Carlos Lima, dono da Interlagos Editora, onde eu trabalhava. Lima, autor de livros como “José Carlos Pace, o campeão mundial sem título” e “Nelson Piquet – A trajetória de um grande campeão”, pretendia lançar uma revista sobre automobilismo, chamada “Veloz”, e desejava incluir no primeiro número uma entrevista com Alfran.

Eu e Alfran imediatamente nos entendemos bem. Simpático e bem-humorado, Alfran contou muitos detalhes interessantes sobre seu trabalho na Coloni. Poucas semanas depois de chegar à equipe, ofereceu-se para montar um carro “boneco” (ou seja, sem motor) usando peças avulsas que estavam jogadas em um canto da oficina. “Não vai dar porque faltam componentes”, respondeu Enzo Coloni, o dono da equipe. “Posso ao menos tentar?”, insistiu Alfran. Dias depois, o carro estava montado, para surpresa geral. Dali em diante, o brasileiro ganhou a confiança de Enzo Coloni e passou a ser um dos principais mecânicos da equipe.

Alfran relatou ainda o drama da Coloni no GP de Portugal de 1989. Moreno conseguiu o 15º lugar no grid (a melhor posição de largada da história da Coloni), após várias corridas sem conseguir ficar entre os 26 pilotos que, na época, largavam a cada GP. O resultado foi possível, principalmente, graças a um novo bico que melhorou muito a aerodinâmica do Coloni C4. No final do treino de sábado, quando tentava melhorar ainda mais seu tempo, Moreno se envolveu em um acidente com Eddie Cheever, da Arrows, e o tal bico foi destruído. “Era o único que a equipe havia construído e não havia dinheiro para fazer outro”, contou Alfran. Na corrida, Moreno deu 11 voltas e abandonou por causa de uma pane no sistema elétrico.

Escrevi a matéria, mas a revista “Veloz” nunca saiu. A situação financeira da Interlagos Editora nunca foi das mais tranqüilas e o confisco do dinheiro guardado em bancos (uma das medidas do infame e inútil Plano Collor) obrigou Luiz Carlos Lima a abandonar de vez o sonho de publicar sua revista de automobilismo. No final daquele mesmo ano, encontrei-me novamente com Alfran. Conversamos sobre vários assuntos, fiz mil perguntas sobre corridas e, de repente, ele disse: “Cara, já vi que você gosta demais do assunto. Você vai gostar do que eu vou trazer para você”. No dia seguinte, Alfran passou na sede da Five Star Marketing, onde eu trabalhava, e me deu uma camisa vermelha oficial da Ferrari. “Essa é a que os mecânicos usam nos testes”, explicou. “A camisa que eles usam em corridas é amarela.”

Poucos meses depois, entrei no “Jornal da Tarde” e fui um dos repórteres escalados para cobrir o GP do Brasil de 1991. Evidentemente, uma das minhas primeiras providências foi procurar Alfran. Por intermédio dele, consegui várias informações interessantes sobre o que rolava na Coloni e até em outras equipes. Nada que rendesse manchete de página, mas muitos detalhes de bastidor que acrescentaram um colorido especial às matérias.

Só reencontrei Alfran um ano depois, no GP do Brasil de 1992, quando a Coloni já havia sido comprada pelo fabricante italiano de sapatos Andrea Sassetti e transformada em Andrea Moda. Desta vez, porém, tivemos muito pouco tempo para conversar. Alfran foi o responsável pelo recrutamento de mecânicos brasileiros que pudessem ajudar na montagem dos carros da equipe. Trocamos vários cumprimentos à distância, mas só conseguimos conversar uma vez. “Estamos trabalhando dia e noite na montagem do carro”, disse-me, com o cansaço visível em seu rosto e as olheiras denunciando muitas horas de sono atrasadas. Tanto esforço para nada. Moreno, de volta à antiga equipe depois de passar pela Benetton e pela Jordan, conseguiu dar apenas duas voltas e marcou um tempo na casa de 1min38s – cerca de 2 segundos mais lento que o pole position da última corrida de F 3 realizada em Interlagos no final de 1991.

Depois disso, fiquei alguns anos sem ver Alfran. Ele passou boa parte desse tempo trabalhando nos Estados Unidos, principalmente com Moreno. Nos reencontramos em 2002, quando Alfran já havia voltado ao Brasil e aberto uma oficina de preparação de carros de corrida. Em novembro de 2004, conversamos longamente durante o Porsche Racing Festival, em Interlagos. Empolgado, Alfran descreveu o esporte-protótipo com motor Chevrolet V8 que estava construindo para o piloto e empresário Urubatan Helou disputar a Mil Milhas.

Nessa ocasião, Alfran relembrou algumas histórias dos tempos da F 1, como as peças que pregava nos mecânicos europeus – os ingleses eram suas vítimas preferidas. Certa vez, durante um intervalo entre os GPs do Japão e da Austrália, Alfran viajou com um grupo para a ilha de Bali, na Indonésia. Foi para uma praia, comprou um coco verde e, quando a água estava pela metade, resolveu misturá-la com a cachaça de uma garrafinha que havia levado consigo. “Uns três mecânicos ingleses chegaram logo depois, e resolvi oferecer o coco para que eles provassem a bebida. Eles adoraram e perguntaram aonde poderiam conseguir um igual. Apontei um coqueiro ali perto e disse: ‘Tem que subir na árvore e pegar’. E lá foram eles pegar os cocos lá no alto. Mas aí eu não consegui mais segurar a risada e eles perceberam que eu estava de sacanagem…”.

Outra: “No final de semana de um GP de Portugal, a cozinheira da Coloni chegou para mim e disse: ‘Você vai gostar do café de amanhã. Comprei uns papayas deste tamanho”, contou Alfran, abrindo as mãos como quem mostra um objeto com meio metro de comprimento. “Estranhei: papayas daquele tamanho? No dia seguinte, quando cheguei no trailer, a cozinheira me mostrou os ‘papayas gigantes’. Eram abóboras! E todo mundo estava comendo abóbora, pensando que eram papayas…” Mais algumas histórias e nos despedimos. “Eu preciso colocar essas histórias em um livro”, disse Alfran. “Se você quiser, eu escrevo esse livro”, respondi.

No dia 4 de janeiro passado, de volta a São Paulo após uma semana de férias na praia, recebi uma ligação de Ivo Sznelwar, engenheiro bastante conhecido nos meios automobilísticos e que de vez em quando dá uma força aqui no GPtotal. Trocamos votos de feliz ano novo e Ivo me deu a notícia: João Alfran havia morrido no dia anterior, aos 48 anos, devido a complicações cardíacas. Cerca de dez dias antes, havia realizado seu maior sonho: viu o carro projetado por ele andar em Interlagos pela primeira vez, pilotado por Urubatan Helou Júnior.

Luiz Alberto Pandini
GPTotal
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

1 Comments

  1. Tucho disse:

    Conheci o João alfran nos anos 80 em Cascavel fui o primeiro vencedor da hot dog em 1982 com umas dicas dele tenho muitas lembranças dele um abraço

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