São exatos 45 anos contando histórias vitoriosas no circuito de La Sarthe.
Prólogo 1, 13 de junho de 1970:
Hans Herrmann, piloto alemão, vivia um dilema em sua cabeça. Com todos os perigos daquela época, e perda de amigos como o conterrâneo e vizinho Gerard Mitter, Hans tinha 42 anos nas costas e vinha de uma longeva carreira de duas décadas. Mas apesar do bom destaque internacional, não tinha na prateleira nenhuma vitória realmente expressiva. Em 1969, o troféu de Le Mans lhe escapou por miseráveis 120 metros, quando perdeu no último instante para o Ford GT40 de Jacky Ickx.
Nesse contexto, Herrmann põe-se nas 24 Horas de Le Mans a pilotar um Porsche 917 número 23, da equipe satélite Porsche Salzburg, junto a Dick Attwood, um piloto mediano. Dizia à esposa, em parte jocosamente, que se vencesse, iria poder encerrar a carreira em paz, finalmente com uma grande conquista.
Prólogo 2, 13 de junho de 2015:
Nico Hülkenberg, igualmente alemão, é bem mais novo que Herrmann. Tem apenas 27 e está longe de pensar em se aposentar, ainda mais num tempo de corridas muito mais seguras. Mas também é daqueles que é muito talentoso, mas que não teve até agora chances de pegar um carro competitivo para obter vitórias ou títulos expressivos. Muitos na Fórmula 1 dizem que ele merece um grande carro. Mas esse carro nunca vem.
Neste contexto, Hülkenberg aceita pilotar o terceiro carro da Porsche, número 19, em sua primeira visita a Le Mans. Como parceiros, dois nomes praticamente desconhecidos: o britânico Nick Tandy e o neozelandês Earl Bamber, ambos oriundos da Porsche Cup e “presenteados” com uma chance em La Sarthe pela marca de Stuttgart.
As 24 Horas de Le Mans 2015 representam a volta da Porsche ao topo do mundo das corridas de resistência – de onde nunca deveria ter saído. É especialmente gostoso quando juntamos novamente duas instituições tão fortes como Le Mans e Porsche numa frase sobre o tema vitória. Foi, por sinal, a 17ª da marca, aumentando ainda mais um recorde que a Audi vem buscando vertiginosamente nessas duas últimas décadas. Como se não bastasse vencer, a Porsche vence justamente a poderosa Audi.
Quando pensamos em uma grande marca na F1, o nome Ferrari vem automaticamente. Da mesma forma, quando pensamos numa grande marca em Le Mans, é pela Porsche que devemos começar a lista. O modelo 919 se junta a modelos lendários, como o 917, o 936 e o imbatível 956/962C.
Junto com muitos amigos, fui testemunha da primeira vitória do 919, nas 6 Horas de São Paulo, última etapa do WEC do ano passado. Eles haviam introduzido um pacote de atualização, já visando 2015. Finalmente estavam em pé de igualdade com a campeã do ano, Toyota, e à frente da Audi, que terminava aquele ano apenas com o terceiro melhor carro, ainda que tenha vencido Le Mans.
Este é um ponto a considerar: todas as demais etapas do WEC são corridas de apenas 6 horas, e em pistas que demandam asas com muito mais arrasto, ao contrário de La Sarthe, onde você precisa ter em 24 horas o carro muito limpo para aproveitar as longas retas, e uma aderência mecânica porreta.
Apesar das duas vitórias da Audi este ano, em Silverstone e Spa, foi a Porsche quem teve o melhor carro em Le Mans. Claro que não da mesma forma como mostrou nos treinos, quando fez com certa facilidade 1-2-3 no grid, deixando a Audi com 4-5-6. Ainda assim, em ritmo de corrida, eles estiveram ligeiramente melhor.
A campeã Toyota, já desde os treinos, soube que não teria fôlego para acompanhar os dois rivais alemães. A atualização 2015 do TS040 era de 3 a 5 segundos mais lenta por volta, o que mostra a tremenda evolução de Porsche e Audi para este ano, justamente em cima do time campeão.
Para se ter uma ideia do salto evolutivo, André Lotterer (hoje o melhor piloto de endurance do mundo) marcou com o Audi #7 a melhor volta, em média horária de 248.459 Km/h. Foi a mais rápida volta da história de Le Mans, superando os tempos de quando a Mulsanne não era cortada por chicanes.
Eu estava particularmente esperançoso que a Nissan pudesse reestrear bem. Era a quarta grande marca a chegar e disputar as endurances mundiais. Em 1990, apesar de não vencer Le Mans, haviam vivido um momento especial com a insana pole de Mark Blundell. O carro #21 até ganhou pintura azul, igual ao ancestral.
Quando apresentaram o “Mutante” de tração dianteira e aerodinâmica revolucionária, torci para que essa concepção fosse uma tremenda sacada. Que o carro, mesmo novo e que a Nissan não tenha injetado a mesma grana que uma Audi da vida, pudesse estar lá, incomodando. E, fundamentalmente, que botasse fogo na cabeça dos engenheiros rivais, que teriam que repensar se aquela concepção era realmente o futuro.
Todo meu entusiasmo foi dinamitado ainda nos treinos oficiais. Os carros na Nissan jamais viraram abaixo de 3min35s8, o que é quase 20s mais lento que a melhor volta do Audi #7, em 3min17s4. Os GT-R LM classificaram muito mal (o terceiro carro chegou a andar pior que um LMP2) e foram punidos por isso, largando do fundo do pelotão.
Enfrentaram uma miríade de problemas em seus três carros, e os dois que sobreviveram ficaram boa parte estacionados na garagem. Saíram dos boxes, receberam a quadriculada mas, como não completaram 75% do percurso, foram considerados não-classificados.
Agora é possível reafirmar convictamente que não é por acaso que colocam motor e tração na traseira. A revolução de Jonh Cooper — que com uma oficina mixuruca produziu um carro que superava a poderosa Ferrari — deve ser respeitada.
Não acredito que um carro possa evoluir a ponto de ser 15s mais rápido por volta em Le Mans. Eu reverencio a ousadia da Nissan e o engenheiro Ben Bowlby, mas penso que criaram um carro que parece condenado a não ter um futuro vencedor. Uma pena.
O resumo da prova, portanto, foi a Audi fazendo de tudo pra caçar a Porsches, a Toyota conformada por não poder participar da briga, e a Nissan muito longe de tudo isso, com um fim de semana realmente de pesadelo.
Por estar um pequeno degrau à frente, a Porsche foi caçada pelos três carros da Audi. Mas os três tiveram problemas e pits fora da programação. O #7 de André Lotterer, Benoît Tréluyer e Marcel Fassler teve um furo quando liderava e ainda perdeu tempo quando teve que voltar aos boxes quando parte da carenagem se soltou, e também para checagem do motor, que estava consumindo bastante óleo. Ao menos terminaram num honroso terceiro lugar.
O Audi #8 de Loïc Duval, Lucas di Grassi e Oliver Jarvis sofreu um acidente quando Duval não freou a tempo numa slow-zone em bandeira amarela, o que exigiu pesados reparos. Caíram para 8º, mas se recuperaram para figurar em 4º na bandeirada.
E o Audi #9 de Marco Bonanomi, Filipe Albuquerque e René Rast teve uma pane no sistema híbrido, perdendo várias voltas e terminando apenas em 7º, entre as apagadas Toyotas.
Enquanto o pole #18 da Porsche (Marc Lieb / Romain Dumas / Neel Jani) teve um furo e duas saídas de pistas idênticas. A briga ficou entre os carros #17 e #19, dois carros trouble-free, prevalecendo aquele em que menos se apostava entre os seis carros que podiam vencer a corrida em cima do trio mais experiente, formada por Brendon Hartley, Mark Webber e Timo Bernhard.
Como de costume, Le Mans é uma guerra disputada por distintos cavalheiros. Assim que a vitória da Porsche era iminente, o Dr. Wolfgang Ullrich fez questão de ir aos boxes do time triunfante para não apenas cumprimentar, mas dar um abraço sincero.
Assim que a bandeirada foi agitada no zerar do relógio Rolex, todo o box da Audi aplaudiu o trunfo dos rivais.
Epílogo 1, 14 de Junho de 1970:
Em uma prova complicada pela chuva, entre quebras e acidente, os favoritos 917 da Gulf Porsche e da Ferrari, com seu famoso modelo 512, iam ficando pelo caminho. Com uma pilotagem finíssima, Herrmann e Attwood assumem a ponta na 18ª hora, quando o outro carro da Porsche Salsburg, com motor 4.9 (o de Herrmann era 4.5) e carroceria longa, abandona com falha mecânica.
Hans conquista sua ansiada grande vitória na carreira e se aposenta das pistas para comparecer até hoje, aos 87 anos, a vários eventos históricos do esporte a motor. É a primeira vitória da Porsche em Le Mans.
Epílogo 2, 14 de junho de 2015:
Com seis carros voadores em busca da vitória, as provas de endurance viraram uma imensa sprint race, em que você não alivia pra poupar o carro: você pisa fundo, porque a tecnologia de hoje afirma que se você pilotá-lo como um fórmula, ele aguenta os mais de 5 mil quilômetros do desafio.
Junto a seus companheiros Bamber e Tandy, Hülkenberg realiza uma pilotagem perfeita, sem erro algum, o trio entrega um carro vencedor após 24 horas sem um arranhão sequer na pintura. Vencem com uma volta à frente do carro irmão, na cor vermelha – pintura esta em alusão ao carro de Herrmann, de 1970. Finalmente com um boa chance, Hülk mostrou grande capacidade. É a mais recente vitória da Porsche em Le Mans.
São exatos 45 anos contando histórias vitoriosas no Circuit de la Sarthe.
Aquele abraço!
7 Comments
Como comentei em outra publicação, os Porsches estão imbatíveis esse ano e a Audi só teria chances se tivesse uma corrida “trouble-free”, como teve em Silverstone e Spa.
Por falar nisso, apenas uma correção: o Porsche #19 foi o único “trouble-free” da equipe. Na parte da noite/madrugada o #17 sofreu um Drive Through, não me lembro exatamente o porquê, enquanto liderava.
Depois dessa, creio que a Audi deveria considerar aposentar o R18 e trazer alguma novidade para 2016 ou 2017. Pois já ficou claro que esse carro já deu tudo o que tinha que dar e que não é mais tão dominador como outrora.
O Domínio da Porsche e da Audi em Le Mans é tão grande, que até onde eu sei, somente ambas conseguiram vitórias fazendo 1, 2, 3 na respectiva ordem numérica dos carros, sendo primeiramente com a Porsche em 1982, e depois a Audi em 2002.
Um show!!
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Considerando que a Audi venceu 13 das ultimas 16 edições , considerando que a Audi venha a vencer a edição de 2016 … considero que mesmo com esta vitoria da Porsche, a Audi ainda é a marca a ser batida na Endurance …
Fernando Marques
Apenas para registro: A Audi conquistou a sua 1ª vitoria em 2000 e de lá pra cá só não venceu as edições de:
– 2003 – Bentley
– 2009 – Peageot
– 2015 – Porsche
Fernando Marques
Lucas,
show de bola!!!
A edição das 24 Horas de Le Mans de 2015 foi uma bela briga de cachorro grande nas pistas.
Pude acompanhar um pouco da corrida no sabado ( as 3 primeiras horas) pela Fox. E lamentei a bobagem que o companheiro do Lucas di Grassi fez ao colidir seu carro em bandeira amarela. Praticamente ficaram aniquilados de conseguir ao menos um pódio. No domingo tive compromissos e não pude ver a chegada.
Fiz um levantamento de todas as edições da prova:
– A Audi ganhou a sua primeira prova em 2000. Daí até 2105 venceu 13 das 16 edições.
– Desde a 1ª prova em 1923 foram disputadas 83 edições da corrida
– Maiores vencedores: Porsche – 17 x
Audi – 13 x
Ferrari – 9 x
Jaguar – 7 x
Bentley – 6 x
Alfa Romeu – 4 x
Ford – 4 x
Matra~Simca – 3 x
Peagout – 3 x
– Vale registrar que a Mclaren e a Sauber já conseguiram vencer a corrida
– A Renault (1x), Bugatti (2x), Austin Martin (1x), BMW (1x), Mazda (1x) e Mercedes Bens (2x) são alguns dos fabriovantes famosos também vencedores da prova
Fernando MArques
Niterói RJ
Linda coluna, amigo Lucas!!
Realmente, é impressionante, exatamente a mesma data entre a primeira e a última vitória da Porsche no solo sagrado de Le Mans.
Foi uma edição super especial.
E fiquei super feliz pelo Hulkenberg, pois o garoto é fera, e merecia uma vitória assim faz tempo.
Só quem perde com isso, é a F1, que com tanta “merda” que vem fazendo nos ultimos anos, vem morrendo a cada dia que passa.
E a FOX sport esta de parabéns, tenho certeza que se um dia os caras quiserem transmitir a prova inteira, a audiência vai ser histórica.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR