O dia em que me vi frente a frente com o maior piloto de motos de todos os tempos Geraldo Tite Simões |
Nascendo numa família que tinha um avô fanático por corridas – genes transmitidos à minha mãe – eu imeditamente me contaminei e desde pequeno passava horas olhando fotos de corridas nas revistas brasileiras e, principalmente, italianas. Enquanto os adolescentes da minha idade subornavam o jornaleiro para conseguiruns catecismos do Carlos Zéfiro (quem tem mais de 35 anos sabe do que se trata…), eu só juntava dinheiro para comprar Tuttomoto. Foi numa destas revistas que li o perfil de Giacomo Agostini, um verdadeiro semideus do motociclismo, com 122 vitórias em GP e 15 títulos mundiais. Foi em 1975, se não me falha a memória, que Agostini tinha acabado de conquistar o 15º título mundial, correndo pela Yamaha, depois de milênios na MV Agusta.
Aquele perfil começava com o jornalista narrando algo curioso que nunca mais saiu da minha cabeça. A esposa de Agostini fazia questão que as visitas tirassem os sapatos antes de entrar. O jornalista ainda mencionava que o rei Agostini era impotente diante daquela decisão e apenas fez um aceno de cabeça, do tipo “vá, Dio santo, tira logo estes sapatos e entra”.
Alguns anos depois eu iria virar jornalista, por força de outro fanático, Wagner Beegola Gonzalez e nem nos meus sonhos mais delirantespoderia imaginar que fosse cair, de cara, dentro do autódromo de Interlagos para fotografar nada menos que o GP do Brasil de F1. A partir daí virei jornalista mesmo, com vírus de velocidade se espalhando pelo corpo. Apadrinhado por outro fanático, Ronaldo Leme, acompanhei e fotografei todos os GPs do Brasil de F1 de 1977 a 1991. Como nunca fui idólatra, no começo entrevistava os pilotos com a maior naturalidade do mundo. De preferência usando a única língua estrangeira que dominava na época, o italiano.
Foi assim que conversei e dei até boas risadas com figuras como Clay Regazzoni, Gilles Villeneuve, Alain Prost, Elio de Angelis, Andrea de Cesaris, Riccardo Patrese, Michele Alboreto e muitos outros que nem lembro. O legal desta época é que não havia esta encheção de saco chamada assessor de imprensa, que faz de qualquer piloto, por mais medíocre que seja, dar entrevistas apenas “agendada pelo meu assessor, please”.
Nos anos 70 e 80 a gente encostava no piloto, pedia I’m sorry, e mandava o gravador na fuça do sujeito, que não via outra alternativa senão começar a falar. E ainda deixava o cara falando enquanto ajeitava a máquina para tirar foto. E tudo dava certo.
Nos anos 90 começou a pentelhação. De cara, a regulagem com o credenciamento chegou num ponto que eu decididamente perdia a paciência com gente inocente. Depois, na pista, fotógrafo tinha lugar certo pra ficar, e entrevistas, nem pensar: o piloto entrava nas catacumbas dos boxes e não saía mais lá de dentro. E lá ia eu atrás do tal press-officer, ou correr para as monótonas entrevistas coletivas.
Deixei a F 1 de lado porque, mais ou menos na mesma época chegava ao Brasil o mundial de Motovelocidade. No primeiro GP, em Goiânia (1987), EU era o assessor de imprensa da prova, junto com o padrinho Ronaldo Leme. Conversava com os pilotos como se fôssemos amigos de infância: Randy Mamola, Kevin Schwantz, Eddie Lawson, Wayne Gardner e até fiz amizades com alguns menos conhecidos, como o belga Stephane Mertens.
Mas foi em 1992 que eu tremi nas bases. Novamente fui assessor de imprensa do evento, desta vez em Interlagos. Para nossa falta de sorte o circuito de Interlagos era tão ruim para motos quanto uma sala encerada para patins inline. Ainda por cima choveu e fez frio todo o final de semana. O mundial poderia ser decidido no Brasil, porque Mike Doohan voltava às pistas depois de quase perder a perna direita num acidente e Wayne Rainey teria de vencer. Nem mesmo isso fez o público comparecer a Interlagos, que ficou às moscas.
Durante os treinos de sexta-feira o jornalista e grande amigo Livio Oricchio soltou a bomba: “Vamos entrevistar o Giacomo Agostini?”. E eu: “Ma que, Livio, tá louco, o cara deve ser inacessível…” e antes de terminar a frase lá foi o Livio, carregando um pusta gravador, com um microfone gigantesco, e eu fui atrás.
Encontramos Agostini, o rei da motovelocidade, sentado numa caixa de alumínio, atrás dos boxes da Cagiva, sozinho, descascando uma laranja. Eu jamais chegaria perto dele, mas o experiente Livio sentou-se ao lado e começou a fazer perguntas meio óbvias e ouviu respostas igualmente óbvias. Eu só olhava aquilo tudo e pensava: “pô, esse tiozinho é o melhor piloto de moto de todos os tempos, e está aqui bem na minha frente e ainda me cumprimentou de mão estendida e tudo”.
Foi quando o Lívio apontou o microfone na minha cara e disparou, em italiano: “você quer fazer uma pergunta pro Agostini?” Eu nem estava prestando atenção e o rei ali, me olhando, segurando metade de uma laranja, esperando eu falar. Falei: “Sr Agostini, como vai sua esposa, ela continua proibindo de entrar de sapatos na sala?”. Tive a impressão de ver uns dois caroços voando em direção ao microfone, enquanto o Livio, alheio a tudo, nem se ligou. E o campeão perguntou: “Como você sabe disso?” e eu falei da entrevista na revista italiana. Ele ria muito e intrigado perguntou novamente: “Mas por que isso te marcou tanto?” E eu expliquei: “Sr Agostini, eu também tenho uma mãe italiana”.
* Geraldo Tite Simões, jornalista, escreve quinzenalmente sobre motociclismo esportivo no GPtotal. Tite correu de kart nos anos 70 e disputou várias corridas de motovelocidade. Em 1999, foi vice-campeão brasileiro da categoria 125 Especial, disputada com motos idênticas às que disputam o Campeonato Mundial para motos com motor de 125 cm³. No ano seguinte, fez um curso de aperfeiçoamento de pilotagem nos Estados Unidos, tendo como instrutor o norte-americano Freddie Spencer, três vezes campeão mundial. Atualmente, atua como free-lancer, colaborando para diversas publicações, e mantém o curso de pilotagem de motos SpeedMaster (www.speedmaster.com.br) em Interlagos.