Geraldo Tite Simões |
Existem basicamente dois tipos de piloto de moto: aquele que já quebrou algum osso e aquele que ainda vai quebrar. É uma filosofia emprestada de Mario Andretti, que dizia existir apenas dois pilotos de F-Indy: os que chaparam o nariz no muro e os que ainda iriam se estampar no concreto.
Partindo desta lógica simplória posso garantir a vocês que dos 72 ossos encondidos dentro de minha mosquitulatura pelo menos uma dúzia já passou pela recauchutagem. Motociclistas têm a péssima mania de quebrar ossos, principalmente os que competem no fora-de-estrada, modalidade responsável pela minha coleção de radiografias. Posso garantir a vocês que conheço muito bem meu eu interior.
A coleção começa pelos dedos dos pés, passa pelos dedos das mãos e termina na clavícula, uma porcaria de ossinho que quase não tem função, a não ser enriquecer radiologistas e ortopedistas. O campeão de fraturas entre motocilistas é o escafóide, uma insignificância óssea que fica ali perto do punho e que quebra-se facilmente, sobretudo quando o piloto cai.
Passei um verdadeiro calvário por conta de uma ridícula clavícula esquerda – olhando no sentido orelha-nariz – esmigalhada durante uma prova do Campeonato Paulista de Enduro de Regularidade. Bastou um microsegundo de distração para ler a planilha (aquela droga de papelzinho que fica sacolejando no painel da moto) e acabei voando numa pedra para ficar encravado num barranco. Na hora já percebi que algo de muito errado estava acontecendo comigo, porque tinha nascido um cotovelo entre o pescoço e o ombro.
O diagnóstico foi fratura mútipla da clavícula, com perda de material e necessidade de enxerto. Senti-me como uma espécie rara de cerejeira, que necessita de um enxerto para dar frutos.
Feliz Jardim da Infância
Passei pela cirurgia mais demorada da minha vida e nem sequer ouvi a conversa entre os médicos porque a anestesia geral dá aquela sensação horrível de ter passado horas aberto sem poder participar de nada. Já tinha larga experiência em centros cirúrgicos por conta de uma fase esquisita da minha vida onde trabalhei como fotógrafo de gente aberta. Por isso eu adverti todo mundo: piadas, só quando eu estivesse anestesiado.
Um pino de aço especial atravessou este ossinho e ficava um pedaço saindo pelo ombro, numa condição que deixaria qualquer punk com inveja do meu body piercing. Uma enorme faixa de gesso envolvia toda a parte superior do meu corpo. Tudo isso em pleno verão, com temperaturas amenas oscilando entre 35 e 40 ºC.
Numa destas manhãs de calor minha filha mais nova voltou do jardim da infância com um aspecto estranho, cheio de pipocas no rosto. Era catapora, doença infantil que é tudo que um engessado não precisa na vida. Como minha infância começou aos 25 anos, acabei pegando a catapora, levando minha sanidade mental nos limites de praticar um hara-kiri com alicate de cutícula. Imagine o que é ter meio corpo coberto de gesso, que normalmente coça muito, e ainda ver sua pele coberta de bolinhas de catapora.
A catapora piorou muito a calcificação e acabei sendo obrigado a retirar o gesso e fazer nova cirurgia para enxertar o caule de roseira, digo, um pedaço da minha bacia. Sem entrar em detalhes técnico-nojentos, posso garantir que todo ser humano consegue recuperar uma clavícula quebrada em 20 dias. Mas um certo Tite precisou 90 dias mais 180 de fisioterapia. Mesmo assim terminei com um ombro menor que o outro e jamais poderei trabalhar de carteiro, além de sequelas na coluna cervical.
Depois disso nunca mais participei de uma prova de enduro na minha vida… por cinco anos, porque foi o tempo que minha memória levou para formatar a experiência e eu acabei me inscrevendo em provas de rali de velocidade. Depois decidi que estava perigoso demais e me dediquei exclusivamente às provas de motovelocidade, muito mais calmas, seguras e bondosas com meu esqueleto. Jamais quebrei qualquer osso na motovelocidade, bem, pelo menos os meus…