Luis Fernando Ramos |
A Fórmula 1 se despediu, pelo menos temporariamente, do Grande Prêmio da Áustria. Na próxima temporada, os campos da Estíria cederão espaço aos petrodólares do Bahrein e ao colossal mercado consumidor chinês. Com raríssimas exceções, como o carismático diretor-técnico da Williams Patrick Head, ninguém vai sentir falta de Zeltweg. A Fórmula 1 é composta por seres urbanos, que prezam hotéis cinco estrelas e prostitutas de luxo. Ali dentro, ninguém jamais se sentiu à vontade na “Festa do Interior”.
O circuito de A1-Ring, ex-Österrerichring e futuro Red Bull Ring, fica no meio do nada. Não, perdoem-me o exagero, fica na verdade entre as minúsculas cidades de Spielberg e Zeltweg, perto da mirrada Knittelfeld. Na opinião humilde deste colunista, é uma das regiões mais charmosas do planeta, intercalando montanhas cobertas por coníferas com vastos campos verdes, para o pasto das inúmeras vaquinhas, ou de plantações de trigos e outros alimentos.
Não há muitos hotéis na região, mas diversas pensões e casas de família que recebem uma vez por ano a horda barulhenta que acompanha o circo da Fórmula 1. São típicas casas camponesas, com móveis rústicos e acomodações simples, mas invariavelmente é servida uma comida deliciosa. Seus donos são, de certo modo, caipiras e mesmo quem fala alemão razoavelmente bem não entende seu dialeto interiorano.
É um lugar onde os animais vivem em perfeita harmonia com os homens. Vacas, cavalos, cachorros, cervos fazem partem da paisagem e encantam qualquer paulistano como eu com a liberdade que circulam pelos campos e cruzam as estradas – uma liberdade natural que em São Paulo nos é retirada ao colocarmos o pé fora de casa, às vezes nem isso. Em Zeltweg, teve até um cervo mais desavisado que, em 1987, resolveu atravessar a pista no meio de um treino livre e foi atropelado pela McLaren de Stefan Johansson.
Na época, toda a entourage da Fórmula 1 ficou admirada com a sorte do piloto sueco em sair do incidente com vida. É óbvio que não soltaram nenhuma lágrima nem disseram palavras consternadas sobre a morte violenta do animal, que só estava ali passeando pelo seu habitat natural sem se incomodar com os barulhentos e velozes visitantes. Como convidados mal-educados, acham que são eles os donos do lugar.
Para os simpáticos habitantes da região, porém, o fim do GP da Áustria não significa um impacto negativo que beira os 40% na economia local. Ao contrário dos narizes empinados da Fórmula 1, eles não estão preocupados com isto porque têm suas vaquinhas, sua paisagem verde, sua paz absoluta e sua simplicidade.
Eles estão tristes porque não vai ter mais festa no ano que vem. Vai chegar o mês de maio e nada de torcedores alemães iniciando o dia com cerveja ao invés de pasta de dente. Nada de jornalistas brasileiros chamando a matriarca da pensão de vovó e arrumando credencial pro netinho adolescente. Nada de empresas austríacas promovendo jantares para seus empregados, que também foram convidados para a corrida e assistem à tudo com alegria e admiração.
Acabou a Festa do Interior. Vai restar uma pista vazia, com as vaquinhas em volta. E a paz costumeira, é claro.
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Voltando a um paddock de Fórmula 1 após duas temporadas de ausência, me assustei com o número de mulheres trabalhando nas equipes. Lembro-me muito bem de minha primeira corrida, quando havia apenas meia dúzia delas fazendo relações públicas e umas três trabalhando na cozinha. Hoje elas estão por toda a parte, aos montes, algumas até trabalhando em áreas que eram tabus como a engenharia. Ninguém soube me confirmar, mas isto me cheira uma ordem explícita do Bernie aos chefes de equipe. Porque, mesmo com mais espaço para elas, o chauvinismo daquele povo continua igual, senão pior.
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Não há muito o que comentar sobre a parte esportiva da corrida, já que o Edu falou praticamente tudo. Michael Schumacher tem o dom sobrenatural de continuar hipermotivado mesmo depois de tudo que já ganhou, e a F2003-GA está a anos-luz à frente de seus rivais. Vai se aposentar como heptacampeão e detentor de todos os recordes absolutos com marcas praticamente inigualáveis. E o pior é que ainda vai ter um montão de gente vendo defeitos nele.
Mas meu destaque vai para a renovação de contrato de Mark Webber com a Jaguar até o final de 2005. Eu colocaria esta decisão no top 5 da lista de “worst career moves” da história da F-1. Explico: nesta corrida da Áustria, muito mais que nos treinos para o GP do Brasil, Webber provou que é matéria de primeiríssima linha. A consistência dos seus tempos de volta, aproveitando a borracha do pneu de maneira perfeita, só é comparável às voltas de Michael Schumacher. E ainda fez sua melhor volta (a terceira mais rápida da corrida) na última passagem, com um tempo 0s8 mais rápido que sua segunda melhor volta. Que personalidade!
Então por que ele errou ao assinar com a Jaguar? Porque é uma equipe sem futuro. Enquanto temos David Coulthard balançando na McLaren e Ralf Schumacher em baixa na Williams, sem contar que a Ferrari ainda busca um sucessor para Schumacher, a decisão de Webber foi um tanto burra. Ele pode conseguir muito mais.
A postura de Mark Webber em se contentar com pouco explica parcialmente a diferença de desempenho dele para seu companheiro Antonio Pizzonia. O brasileiro veio da Williams, com uma experiência e uma expectativa de funcionamento de uma equipe de Fórmula 1 que ele jamais encontrou na Jaguar, onde mecânicos simplesmente se esquecem durante a corrida o que foi acordado com o engenheiro durante o briefing. E onde poucos trabalham para o bem da equipe e muitos para que a culpa dos problemas recaia sobre o outro, não sobre si mesmo. Uma verdadeira equipe “Hello, Goodbye”, funcionando da mesma maneira que o diálogo na letra dos Beatles.
E aí que entra a diferença na expectativa do piloto. Para Webber, está tudo ótimo, porque, afinal, na Minardi as coisas eram ainda mais confusas. Já Pizzonia parece que ainda não digeriu o fato de não estar mais numa equipe competente e que apoia seus pilotos nos momentos difíceis. Como o australiano, ele também merece um lugar muito melhor para trabalhar.