ESCÂNDALOS!!!

A PRIMEIRA DO LEÃO
14/04/2004
Os bastidores da entrevista
19/04/2004
Escrevo esta coluna com uns dois anos de atraso. Mencionei por alto o tema em alguma oportunidade prometendo voltar ao assunto “em breve” – e esqueci completamente da promessa. No final do ano passado, ela foi gentilmente cobrada por um de nossos leitores, Annibal Magalhães, a quem agradeço pela paciência. Garanto que a espera não foi em vão.

Muito do relato a seguir foi publicado na revista brasileira Auto Esporte número 16, de fevereiro de 1966. O texto foi escrito por Antônio Carlos Scavone, que se tornaria organizador e promotor das temporadas internacionais de F-Ford, F 2 e F 3 realizadas no Brasil entre 1970 e 1972, e dos GPs do Brasil de F 1 de 1972 e 1973. Scavone foi um dos mortos no famoso acidente do avião da Varig no aeroporto de Orly, na França, em julho de 1973. Seu desaparecimento prematuro privou o automobilismo brasileiro de um personagem que poderia ter contribuído com enormes avanços na área promocional.

Em seu artigo, Scavone esclarece que boa parte do conteúdo foi extraído de um capítulo do livro “Speed was my life” (“A velocidade foi a minha vida”), escrito por Alfred Neubauer, o chefe da equipe de competições da Mercedes-Benz entre as décadas de 1930 e 1950. O capítulo em questão tem o sugestivo título “The race that was rigged” (“A corrida que foi uma fraude”).

Em 1933, a Líbia era uma colônia da Itália. A autoridade máxima da colônia era o marechal Italo Balbo. Decidido a promover o “império romano” sonhado pelo ditador Benito Mussolini, Balbo decidiu promover um Grand Prix na capital, Tripoli, onde algumas corridas vinham sendo organizadas desde 1925. O traçado era um dos mais rápidos do mundo: mais de 13 km de extensão, permitindo velocidades de mais de 200 km/h. A pista contornava um oásis no deserto de Mellaha e tinha longas retas, algumas curvas bem abertas para a direita e leves desvios para a esquerda, feitos a plena aceleração.

No segundo semestre de 1932, foi anunciada a criação de uma loteria para o GP de Tripoli do ano seguinte, que seria disputado em 7 de maio. Bilhetes foram vendidos por toda a Itália ao preço de 11 ou 12 liras (minhas fontes divergem sobre esse aspecto). Três dias antes da corrida, foram sorteados 30 bilhetes, cada um representando um piloto. O prêmio maior, é claro, seria destinado ao portador do bilhete que correspondesse ao piloto vencedor. A título de curiosidade, lembro-me que, no começo da década de 1980, o governo brasileiro promovia uma loteria idêntica aproveitando o GP do Brasil de F 1.

Também encontrei números diferentes sobre a quantia que seria paga ao vencedor. No livro de Neubauer, consta 7.500.000 liras. Mas Don Capps, colunista do site AtlasF1, detalha que 1.200.000 liras ficaram com o Automóvel Clube de Tripoli para pagamento de despesas; 550.000 liras foram destinadas a pagar prêmios de largada e chegada; e 6.000.000 de liras pagariam os prêmios aos portadores dos bilhetes correspondentes aos três primeiros colocados (3.000.000 para o vencedor, 2.000.000 para o segundo e 1.000.000 para o terceiro colocado). Seja como for, aponta Don Capps, “não era pouca coisa em 1933”. A proporção entre os valores do bilhete e do prêmio não deixa dúvidas quanto a isso.

Na noite anterior à corrida, o piloto italiano Achille Varzi, um dos grandes astros da época e um dos favoritos à vitória, foi procurado em seu hotel (onde ficavam praticamente todos os participantes) por um senhor baixo e careca. O homem apresentou-se como sendo Enrico Brivio, comerciante de madeira da cidade de Pisa. Varzi estava acompanhado por sua namorada (jovem e muito bonita, descreve Neubauer). O senhor Brivio afirmou que precisava conversar a sós com Varzi, e ela se retirou. Rivio explicou então que estava ali para pedir a Varzi que que vencesse a corrida do dia seguinte.

“Não é difícil imaginar a reação de Varzi”, escreveu Neubauer. “Ele deve ter ficado surpreso com o fato de o sr. Rivio ter viajado de Pisa para Tripoli para fazer-lhe um pedido tão óbvio.” Mas em seguida Rivio mostrou ao piloto o bilhete da loteria com o número que correspondia ao de seu carro. E em seguida entregou-lhe um documento em que se comprometia a dar a Varzi metade do valor do prêmio. Varzi, surpreso, agradeceu e prometeu “ver o que poderia fazer”. Sabe-se que, tão logo o sr. Rivio deixou o quarto, Varzi telefonou a Tazio Nuvolari.

Dia seguinte, 7 de maio de 1933. Uma tribuna especial foi montada para 30 pessoas – os portadores dos bilhetes sorteados. Entre eles, claro, estava o sr. Brivio. O governador Italo Balbo baixa a bandeira da Itália (para quem não sabe, a largada era dada com a bandeira nacional, ou com uma bandeira quadriculada nas cores nacionais; somente em meados da década de 1970 seria introduzido o sistema de luzes). Era o início da maior farsa registrada na história das corridas de automóvel. Nuvolari, Baconin Borzacchini e Giuseppe Campari assumem as três primeiras posições, seguidos por Louis Chiron, Luigi Fagioli, Henry Birkin e Piero Taruffi. Varzi tem problemas em sua Bugatti e fica para trás, mas isso não parece aborrecê-lo.

Na quinta volta, Campari (que atuava como tenor no teatro La Scala, em Milão, e era sobrinho do fabricante do vermute Campari) assume a liderança, seguido por Nuvolari e Birkin. Varzi já estava quase um minuto atrás. Duas voltas depois, Campari entra nos boxes sem qualquer sinal aparente de defeitos em seu carro. Os mecânicos abrem o capô, mas um irritado Campari comunica sua desistência. Minutos depois, é visto sentado em um canto do box bebendo vinho chianti, sem qualquer sinal de inconformismo.

Na 20ª volta, Nuvolari lidera seguido por Borzacchini, Chiron, Birkin, Giorgio Battilana e Taruffi. Logo depois, Varzi aparece em 7º e na 25ª volta é o 3º. Passa à frente de Chiron e Birkin, mas seu carro tem defeitos de distribuição. O som do motor indicava que dois cilindros não estavam funcionando. O mais lógico seria parar para uma troca de velas e, mesmo perdendo de três a cinco minutos, tentar uma recuperação. Mas Varzi decide continuar em frente, mesmo com o carro falhando. Pode-se imaginar a agonia do sr. Rivio naquele momento.

No final da 27ª das 30 voltas, a multidão grita o nome de Nuvolari. Borzacchini diminui a velocidade e olha para trás, procurando a Bugatti azul de Varzi. Entra mal em uma curva, sai da pista, bate em um tambor de óleo vazio (usado para demarcar a pista) e desiste da competição. Não aparenta qualquer sinal de contrariedade.

Nuvolari entra na última volta com 30 segundos de vantagem sobre Varzi. Quando aparece na reta de chegada, a multidão começa a se calar: o Alfa Romeo vai perdendo velocidade até parar a 300 metros da bandeirada. Nuvolari sai do carro e vai para o meio da pista, berrando e acenando freneticamente para seus mecânicos: “Estou sem gasolina! Estou sem gasolina!”. Os mecânicos correm com latas de gasolina e as esvaziam no tanque do Alfa. Enquanto isso, surgem Varzi e Chiron liderando um grupo de carros, todos andando lentamente. O público volta a respirar fundo quando Nuvolari parte para terminar a corrida. Recebe a bandeirada apenas uma roda atrás de Varzi. A empolgação geral faz esquecer que Chiron estava uma volta atrás. O 3º lugar é da Maserati de Birkin, seguido pelas Alfa Romeo de Battilana e Taruffi. Varzi, exausto, sai carregado do carro e recebe seu prêmio. Um dos primeiros a dar-lhe parabéns é um senhor careca e baixo que ninguém conhecia – Enrico Rivio, é claro. A média do vencedor é de 163 km/h, enquanto que nos treinos o mais rápido fez 215 km/h e o mais lento, 185 km/h.

Naquela mesma noite, Varzi, Nuvolari e Borzacchini tomavam champanhe (a mais cara disponível) no restaurante do hotel. Enquanto isso, começam os rumores. Na manhã seguinte, os jornais especulavam sobre uma possível fraude na loteria. A coisa assume proporções de escândalo e as autoridades esportivas locais reúnem Varzi, Nuvolari, Borzacchini, Campari, Birkin, Chiron e Battilana. O presidente da comissão abre os trabalhos acusando diretamente “certos pilotos” de terem feito antes da corrida um conluio para facilitar a vitória de Varzi. Um dos dirigentes pergunta quem seriam esses pilotos. O presidente cita Varzi, Nuvolari e Borzacchini, lançando ainda “fortes suspeitas” sobre Campari e Chiron.

A intenção inicial era desclassificar todos e cassar suas licenças. Fez-se silêncio na sala: eram os melhores pilotos da Europa, e uma medida dessas significaria acabar com as competições internacionais, tanto pela desmoralização do esporte quanto pelo afastamento dos grandes nomes. Todos foram somente advertidos. O sistema da loteria, porém, foi modificado: do ano seguinte em diante, os 30 bilhetes passaram a ser sorteados minutos antes da largada, com os pilotos já sentados em seus carros.

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Aproveitando o clima, separei uma uma “boa” história de escândalo também para quem aprecia ralis.

Até algum ponto da década de 1960, o Rally de Monte Carlo era disputado com sistema de handicap. O pretexto era equilibrar a disputa, mas a intenção real era, na medida do possível, favorecer os carros franceses. Foi assim, por exemplo, que a edição de 1961 teve a vitória de um Panhard, cujas características jamais lhe permitiriam ganhar um rally “normal”.

Nos anos seguintes, porém, as vitórias no “Monte” ficaram com equipes e carros da Inglaterra. Para 1966, os organizadores modificaram o handicap, tornando as coisas ainda mais difíceis para a categoria na qual se enquadravam os carros ingleses mais competitivos (Mini Cooper S e Ford Cortina-Lotus).

O rally começou e, ainda na segunda fase, anunciou-se uma inspeção técnica com exame especial de faróis e faroletes, que precisariam ser de luz amarela (faróis de luz branca infringiam as leis de tráfego francesas). Já se falava que os cinco carros mais bem colocados até aquela altura (todos ingleses) estavam ilegais por causa dos faróis. Só que a tal inspeção não terminou antes do horário de saída para a fase seguinte, a última da prova, e muitos pilotos partiram sem saber se estavam ou não dentro do regulamento.

Durante a terceira e última fase, anunciou-se a desclassificação de nove carros ingleses e de um Simca, carro francês mas inscrito por ingleses. Motivo: as lâmpadas de filamento duplo dos faróis dianteiros haviam sido substituídas por outras de filamento simples de quartzo-iodo.

O rally terminou com três Mini Cooper S, tripulados por Timo Makinen/Paul Easter, Rauno Aaltonen/Ambrose e Paddy Hopkirk/Harry Liddon, nos três primeiros lugares, seguidos pelo Ford Cortina de Roger Clark/Melia. Todos foram desclassificados por causa dos faróis, e a vitória passou para o Citroën DS 21 dos finlandeses Pauli Toivonen/Ensio Mikander. Toivonen declarou a Makinen, também finlandês, que não queria ganhar daquele jeito. E mostrou que isso era verdade ao não comparecer à cerimônia de entrega de prêmios. O príncipe Rainier também fez “forfait”, algo inédito até então.

Exatos 20 anos depois, em 1986, Henri Toivonen, filho de Pauli, venceu o Rally de Monte Carlo (a essa altura, já uma prova de velocidade pura, como hoje) a bordo de um Lancia. Henri, um dos pilotos mais promissores do Mundial de Rally, passou a ser o maior favorito ao título. Quatro meses depois, ele e seu navegador, o norte-americano Sergio Cresto, morreram durante o Rally da Córsega (atual Rally da França) quando o Lancia saiu da pista e se incendiou após bater em uma árvore.

Luiz Alberto Pandini
GPTotal
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

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