Quando a cúpula da Ferrari anunciou em 1993 o francês Jean Todt como chefe da equipe de Fórmula 1, a mídia italiana torceu o nariz. Como um gerente sem a menor experiência na categoria poderia superar a confusão reinante em Maranello e encerrar o terrível período sem títulos que a escuderia atravessava? Os anos se passaram e o pequeno Todt mostrou ser capaz de cumprir sua tarefa. Hoje, conseguiu mais: criou um novo padrão de qualidade até então inimaginável na categoria e colocou a Ferrari no maior período de dominação de sua história.
Para quem conhecia a trajetória do francês no Mundial de Rali, seu triunfo na F-1 não representou nenhuma novidade. Em 1981, Todt encerrou uma carreira de sucesso como co-piloto com um título mundial, ao lado do compatriota Guy Frequelin em um Talbot Sunbeam Lotus. No ano seguinte, virou diretor-esportivo da Peugeot (dona da marca Talbot) o iniciou o projeto que levou o modelo 205 T 16 a dominar a cena do rali. Ali, começou a esculpir sua primeira obra-prima.
Foi em 1982 que a FIA mudou o regulamento, dividindo os carros do Mundial nos grupos A (para carros de série com poucas modificações, como eram os modelos utilizados pelos campeões até então) e B (carros especialmente preparados para competição). Para a homologação nesta última classe, era preciso fabricar 200 carros de série, sendo que 10% deles seriam posteriormente desenvolvidos para as competições de rali.
O baixo número de carros produzidos exigidos pelo regulamento visava atrair para o esporte algumas marcas menores, com menos recursos. Mas como costuma ocorrer, a FIA deu um tiro no pé e as grandes montadoras se aproveitaram para criar verdadeiros Fórmula 1 para pistas de terra.
Motores de até 500 cavalos (como o do Audi Quattro S1), com técnicas combinadas de turbo e compressor (Lancia Delta S4) montados em carrocerias leves de fibra de vidro e kevlar criaram verdadeiros projéteis automobilísticos. “Para um carro destes, até seu pensamento está lento”, foi o comentário do alemão Walter Röhrl, um dos grandes nomes da época.
Jean Todt utilizou todo seu pensamento metódico, aperfeiçoado em anos no banco do co-piloto, para levar ao extremo as liberdades permitidas pelo regulamento. Em sua primeira entrevista como diretor-esportivo, anunciou seus planos: “Vamos estrear no Mundial em 1984 e o objetivo é ganhar o título do ano seguinte”.
O modelo base escolhido foi o 205, lançado em março de 1981 no Salão de Genebra. Curiosamente, era um modelo compacto, pensado para as donas-de-casa francesas, com espaço para as crianças e as compras, 45 cavalos, com tração e motor dianteiros. A partir dele nasceu o 205 T 16, com tração nas quatro rodas, lugar para duas pessoas e um motor central de 200 cavalos.
Como mandavam as regras, a Peugeot colocou 180 veículos destes no mercado e continuou desenvolvendo outros 20 para o Mundial de Rali. Quando o carro estreou, no Rali da Córsega de 1984, o motor já possuía 350 cavalos. Apenas o pára-brisa era o mesmo dos modelos de série.
Jean Todt foi esperto ao analisar os pontos fortes dos concorrentes e eliminar suas fraquezas quando escolheu o 205 para representar a Peugeot. A distância entre os eixos era muito menor que a do Audi Quattro ou do Lancia 037 (isto levou a marca italiana a, posteriormente, optar pela utilização do Delta.
Na Córsega, tudo corria bem com o finlandês Ari Vatanen na liderança com mais de seis minutos de vantagem, uma eternidade. Mas um acidente fez com que o carro capotasse diversas vezes e pegasse fogo. O piloto quebrou a clavícula e o primeiro sinal dos perigos que o Grupo B representava estava dado.
O então jornalista alemão Norbert Haug foi um dos primeiros a perguntar a Todt se uma mera célula de proteção de metal envolta numa carroceria de plástico era o suficiente para suportar impactos contra árvores em alta velocidade. A resposta também foi provocativa: “Nosso carro possui soluções técnicas que os outros fabricantes terão de copiar se quiserem ser campeões”.
Verdade absoluta. Em 1985, como prometido, a Peugeot sagrou-se campeã mundial de construtores e de pilotos com o finlandês Timo Salonen ao volante. No ano seguinte, dois bicampeonatos, sendo o de pilotos com o também finlandês Juha Kankkunen. Foi o último título de um carro do Grupo B, já que a categoria foi extinta após a morte de Henri Toivonen e Sergio Cresto com um Lancia Delta S4, naquele ano.
A Peugeot optou então por deixar o Mundial de Rali. A partir daí, a Lancia desenvolveu o modelo Delta, incorporando diversas idéias criadas por Todt, e passou a vencer com certa freqüência. Hoje, os 180 modelos 205 T 16 vendidos ao público valem muito dinheiro. Ainda mais que contam com a assinatura de um artista muito em voga no momento, um certo francês de nome Jean Todt.
Abraços e até a próxima semana,
Luis Fernando Ramos |