CHINA, PASSADO E PRESENTE

Coisas de macho
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24/09/2004

Há mais de 97 anos, a China foi o ponto de partida de um dos mais incríveis eventos da história do automobilismo. Em um desafio lançado pelo periódico francês Le Matin, cinco aventureiros montaram em seus carros para a travessia de mais de 17 mil quilômetros entre Pequim e Paris. No século XXI, cumprir este percurso exige, no mínimo, muita organização e uma quantia razoável de dinheiro. O que dizer então de uma época em que não havia estradas, as comunicações eram precárias e os carros não ultrapassavam os 40 cavalos de potência?

Movidos por um instinto de pioneirismo, os corajosos pilotos toparam o desafio. O mais preparado, sem dúvida nenhuma, era o Príncipe Scipione Borghese (cujo nome completo era Scipione Luigi Marcantonio Francesco Rodolfo – ufa!). O nobre italiano passou meses estudando mapas e calculando todas as variantes possíveis para afastar a possibilidade de qualquer eventual problema. Investiu uma soma vultuosa de dinheiro em logística, colocando contatos ao longo do trajeto com galões de combustível e mantimentos.

Também equipou um Itala de 40 cavalos com mais de duas toneladas, além de um mecânico (Ettore Guizzardi) e um jornalista (Luigi Barzini). Exatos dois meses depois de deixar a Cidade Proibida de Pequim, ele chegou como vencedor, após vencer com mais ou menos facilidade regiões inóspitas como o Deserto de Gobi e os Montes Urais.

Seu principal adversário era o francês Charles Goddard. Ele se associou com a marca holandesa Spyker para a aventura, conseguindo um carro de 15 cavalos e quatro cilindros. Era tanto uma pessoa de carisma irresistível como um ótimo piloto. Mas sua personalidade o impediu de lutar pela vitória: antes mesmo da largada, Goddard gastara todo o orçamento de que dispunha em vinhos e jantares caríssimos. Conseguiu depois vários empréstimos, a maioria com diplomatas e banqueiros holandeses e acabou ajudado por alguns concorrentes quando sua cota de combustível encerrou. Chegou em Paris mais de duas semanas depois do vencedor.

Com ele, chegou também a dupla contratada pela marca De Dion. Georges Cormier e Victor Collignon correram em carros com apenas 10 cavalos e dois cilindros. Mas, andando sempre em dupla (e, na maior parte do trajeto, com Goddard), terminaram a aventura inteiros e de alma lavada.

O único que não completou o percurso foi o francês Auguste Pons. Também pudera. Seu carro era um mirrado Contal de seis cavalos de potência e – sim – três rodas (duas na frente e uma atrás, responsável pela tração)! O piloto se perdeu no Deserto de Gobi, uma semana após a largada, com seu carro atolado na areia. Teve de ser resgatado e voltou para a Europa de navio. Mesmo assim, entrou para a história.

O Rali Pequim-Paris é um destes momentos mágicos dos primórdios do automobilismo, uma mistura de aventura, paixão pela velocidade e pura loucura. As histórias vividas pelos pilotos durante o percurso são saborossísimas e o relato mais completo delas está no livro “The Mad Motorists”, publicado pelo inglês Allen Andrews em 1964. Tive a sorte de encontrar um carcomido exemplar (mas original) da obra em um empoeirado sebo no centro de São Paulo. Para quem se interessar, uma rápida pesquisa pelo Google leva a diversos sites de venda estrangeiros. O prazer da leitura vale o preço, podem confiar!

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Quase um século depois, e o mundo do automobilismo volta seus olhos novamente para a gigante comunista. A motivação do circo da Fórmula 1 é clara: abrir espaço em um dos maiores mercados consumidores do planeta. A realização do Grande Prêmio da China é o primeiro passo para que este objetivo seja atingido. O que vem a seguir, e não deve demorar muito, é a entrada de um piloto do país na categoria. Há pelo menos três candidatos.

O primeiro a acelerar um destes bólidos de tecnologia de ponta foi Ho Pin Tung. Em dezembro do ano passado, o poliglota chinês (nascido, porém, em Amsterdã) fez um teste com a equipe Williams como prêmio por seu título na Fórmula BMW Asiática. Não chegou a impressionar, embora ainda trabalhe como uma espécie de embaixador da fábrica de motores alemã na China. Atualmente, é o oitavo colocado na opaca F-3 Alemã.

Quem também tem experiência com um F-1 é Cheng Congfu, também conhecido como Frankie. Após vencer a Fórmula Renault Chinesa em 2002, o piloto assinou um contrato de vários anos com a McLaren (nos moldes que a equipe tem com o inglês Lewis Hamilton, a quem apóiadesde o kart). Um teste já foi feito, mas o aprendizado tem se mostrado difícil: Congfu costuma andar apenas no pelotão intermediário da F-Renault Inglesa, mesmo correndo na conceituada equipe Manor.

Fechando a lista está Han Han, um piloto cuja excentricidade não fica só no nome. Aos 18 anos, quando terminou o ensino básico, ele publicou um livro repleto de críticas e sarcasmo ao rígido sistema educacional chinês. A obra foi um escândalo e motivou diversas discussões políticas sobre o assunto. Han publicou mais quatro livros e ficou milionário. Hoje, aos 22 anos, realiza seu sonho de criança e financia a própria carreira nas pistas. Após correr um ano de rali, debandou para a Fórmula BMW Asiática. É um nome de forte apelo de marketing em seu país, mas ele é o primeiro a reconhecer suas deficiências técnicas. “Na pista, só tiro nota baixa”, admite.

Abraços e até a próxima semana,

Luis Fernando Ramos
GPTotal
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

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