Pipoca de cinema

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Você está sossegadamente a caminho da sala de cinema do Shopping Center quando… um delicioso perfume te pega, te amarra e recusa a te soltar. É isso mesmo, você acaba de ser envolvido pelo inebriante cheiro da pipoca. Sabe a pior parte disso? É que, além de cheirosa, pipoca de cinema é gostosa pra caramba. Teu cérebro já fez questão de lembrar isso pra você.

Se você não resiste à tentação de pegar um (sempre extorsivo) balde antes de entrar na sala de cinema, é um martírio parar de comer voluntariamente. Não raro, somos flagrados em situação constrangedora, a caçar sem compostura alguma as últimas migalhas do fundo do balde. Mas qual o segredo para tamanho poder? O cheiro vem da manteiga clarificada e o gosto de quero-mais vem do… glutamato monossódico.

Era nele, glutamato, que eu queria chegar. Não vou aqui debater sobre os alegados malefícios do produto, que já está no mercado há mais de 100 anos. Só quero dizer que o glutamato, ainda que de maneira puramente artificial, cumpre com louvor seu papel de realçar o sabor dos alimentos.

Tivemos neste 2024 a 92ª edição das 24 Horas de Le Mans em que nove marcas diferentes e 23 carros na classe principal Hypercar se colocaram dispostas a triunfar. Apesar de alguns já serem candidatos naturais à vitória, nenhum era franco favorito. Tudo estava em aberto. Até mesmo o qualify, a chamada Hyperpole, mais confundiu do que explicou qualquer coisa.

Todo esse equilíbrio e clima de mistério foi conseguido através do Balance of Performance, que a partir de agora vou chamar apenas de BoP.

O BoP é um recurso técnico destinado a equilibrar ao máximo o desempenho dos participantes, inclusive de forma a aproximar os carros feitos sob as regras da WEC e da IMSA americana, que possuem concepções levemente diferentes. São feitos, entre outros pormenores, ajustes em três áreas básicas: peso, potência de motor e potência elétrica. Isso permite que diferentes desenhos de chassi e diferentes sistemas de powertrain tenham, na medida do possível, a mesma chance de vencer.

Na falta de uma metáfora mais ortodoxa, entendo que o BoP é uma espécie de glutamato monossódico do esporte a motor. É aquele que realça artificialmente o sabor – mas cumpre muito bem o seu papel. Não raro, fica tão gostoso quanto pipoca de cinema. Você sabe que é artificial, você sabe que não é saudável. Mas é uma delícia.

Em sua essência, o BoP vai contra os fundamentos do esporte a motor e pune a competência. Mas, na prática, as equipes que se inscrevem em Le Mans concordam com a regra. Eles não discutem a existência do BoP em si. Ficam, basicamente, discutindo apenas se sofreram muita restrição – normalmente a melhor justificativa para uma derrota. Diante de um cenário como este, percebemos que o BoP realmente veio para ficar.

Para quem apenas pegou sua pipoca e assistiu a corrida, foi uma bela exibição. Pela primeira vez na história, nada menos que nove competidores terminaram na volta do vencedor – e isso diz muito sobre o equilíbrio desejado.

Vai ser difícil achar imagem de vitória mais bonita que esta

A vitória da Ferrari número 50 do trio Antonio Fuoco / Miguel Molina / Nicklas Nielsen foi conquistada de maneira dramática, primeiramente com um pit fora de escala para consertar a fechadura da porta e, nos minutos finalíssimos, uma dramática economia forçada de combustível, cruzando a linha de chegada com menos de 3% de energia disponível.

Em 86.400 segundos disputados na corrida toda, uma vantagem para o Toyota 7 de Kamui Kobayashi / José Maria “Pechito” López / Nyck de Vries de apenas 14s ao final – ínfimos 0,016% de diferença. Faltou realmente pouco pra esse carro derrotar a Ferrari: dois furos de pneu e dois pequenos problemas de motor durante a prova se mostraram decisivos.

Mas o aperto não se restringiu a esses dois carros. Foi geral e a corrida se transformou, sim, em uma pauleira de 24 horas em que cada vez menos os pilotos precisam poupar o equipamento, seja em pneus, freios, motor ou qualquer outro sistema. A própria Porsche chegou muito perto, principalmente com os carros 5 e 6 da Penske, que demostraram boa forma nos treinos – sendo o carro 6 o pole.

Apenas para ilustrar o quanto tudo ficou em aberto, faltando três horas havia cinco carros disputando a ponta, separados por apenas 35s. Le Mans jamais viu tamanha compactação entre os primeiros colocados. O belo Cadillac número 2, que tinha entre seus pilotos o bicampeão de Indy Alex Palou, muitas vezes foi para a liderança, por estar em janela alternativa de pit stop.

A dramaticidade da corrida foi amplificada pelas muitas bandeiras amarelas e um tremendo vaivém de chuva, que deixava o circuito de La Sarthe com variados níveis de aderência e variadas demanda por pneus que, ora eram slicks, ora eram biscoito. Típica prova que realmente separa os homens dos meninos – ainda mais sem precisar poupar equipamento, com pé no porão o tempo todo.

Na mesma volta que o vencedor e vice ainda chegaram a Ferrari 51, o Porsche Penske 6, o Toyota 8, o Porsche Penske 5, o Cadillac 2, e os Porsches Jota 12 e 38. E após esse grupo, com desvantagem de apenas duas voltas (sempre a lembrar que é uma corrida pelo menos 12 vezes mais longa que um GP de Formula 1), chegaram os dois carros da Peugeot e os dois carros da Lamborghini.

Como não amar Valentino Rossi?

O BoP também proporcionou equilíbrio nas outras duas categorias que disputaram Le Mans este ano.

Na LMP2 não é preciso fazer nada: todo mundo anda de Oreca-Gibson, conjunto pra lá de manjado. O carro 22 da United Autosports do trio Bijoy Garg / Oliver Jarvis / Nolan Siegel acabou vencendo, com outros quatro rivais também chegando na mesma volta. A grande história da categoria foi a vitória de Siegel, aquele mesmo piloto de Indy Lights que ficou de fora da Indy 500 no Bump.

Já na GT3, o BoP precisou trabalhar bastante, porque entre os 23 carros que correram na GT3 estavam Aston Martin Vantage, BMW M4, Chevrolet Corvette, Ferrari 296, Ford Mustang, Lamborghini Huracán, Lexus RC F, McLaren 720S e Porsche 911.

A grande atração era a BMW 46 e o número do carro já oferece a pista de um de seus condutores: Valentino Rossi. O italiano provou sua competência ao liderar parte considerável da corrida, mas seu carro sofreria um acidente na volta 109, sendo forçado a abandonar. A vitória acabou com o Porsche número 91, do trio Richard Lietz / Morris Schuring / Yasser Shahin.

Pelo segundo ano consecutivo, tivemos a chance de acompanhar toda a corrida com transmissão em língua portuguesa, através de algumas janelas de programação do canal BandSports e na íntegra pelo streaming Esporte na Band – com audiência maravilhosa: recebeu incríveis 968 mil visualizações e 63 mil likes.

Parabéns a todos os envolvidos na empreitada, que heroicamente iam se revezando, transmitindo de maneira muito precisa e informativa: Aldo Luiz, Ivan Bruno, Sérgio Lago, Tatá Muniz, Felipe Meira, Gabriel Lima, Milton Rubinho, Ricardo Molina, Rodrigo Mattar e Sérgio Milani.

Que essa empreitada continue acontecendo!

Luigi Chinetti e a Alfa Romeo em Le Mans 1934

Como bem lembrou a Autosport, desde 1934 não tínhamos uma mesma marca vencendo o GP de Mônaco e Le Mans num mesmo ano. A marca da ocasião era a Alfa Romeo. Sob inscrição da Scuderia Ferrari, o francês Guy Moll venceu em Monte Carlo com uma Alfa P3 monoposto, enquanto Luigi Chinetti ganhou em La Sarthe com sua própria Alfa 8C Supercharger, dividida com o francês Philippe Étancelin.

Distância para o segundo colocado? Treze… voltas!

Em menos de um mês vai acontecer as 6H de São Paulo, próxima corrida da Wec. Para nós, brasileiros, é a melhor oportunidade para vermos de perto muitos dos carros que correram Le Mans.

Abstraia-se do BoP e curta o momento. É tudo gostoso, feito pipoca de cinema.

Abração!

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

3 Comments

  1. MarcioD disse:

    Corrida sensacional, emocionante, uma das melhores Le Mans que assisti. Acho o BoP interessante, só não gosto na categoria GT3 com carros muito amordaçados na potencia, ridiculamente menor que a original e com peso muito elevado. Deveriam nivelar por cima, não por baixo.

    Penso que o automobilismo deveria ir na direção de veículos cada vez mais leves, mais aerodinâmicos, mais potentes e mais seguros. Não gosto de downforce elevado e nem de economia de combustível.

    Ai o cara que tem uma Ferrari chega no autódromo e descobre que o carro que está na pista e deriva do seu tem uma potência inferior à da sua Ferrari. Acho que deve dar um nó na cabeça dele…………..

    E é uma das razões porque aquele Camaro derivado da Nascar no ano passado deu pau nesses GT’s………………..

  2. Rubergil Jr disse:

    Lucas, meu caro, eu confesso que também tenho sentimentos mistos com relação ao BoP. Mas quem pode questionar o sucesso da medida quando se tem NOVE carros na mesma volta do vencedor? Quando comecei a acompanhar as últimas 2 horas e vi a classificação, por alguns instantes eu não acreditei…

    Acompanhei a corrida pelo grandepremio. Que bom que temos opções de qualidade para acompanhar a corrida em português, e com ótimos comentaristas!

    E quem sabe não está chegando a hora de vermos um brasileiro ganhar hein? Este ano não deu sorte, mas quem sabe…

    E já tenho agora uma marca pra torcer: Cadillac. Gostaria de vê-los no panteão de vencedores num futuro próximo .

    Abraços!

  3. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    pelo seu relato, confesso que não assisti a corrida, o que aconteceu foi espetacular … e confesso ficar feliz por mais uma vitória da Ferrari em Le Mans … assim como ano passado … uma marca como a Ferrari, com todo respeito e admiração que tenho pela Porsche, Lamborghini, Toyota, Ford, Mclaren, BMW, Chevrolet Corvette, Aston Martin, Lexus … a Ferrari jamais merecia ficar tanto tempo do lugar mais alto do podio como ficou …

    Seu relato tbm foi magnifíco

    Fernando Marques

    Niterói RJ

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