The Dark Side of the Moon

The Wall
23/04/2012
Cassino Royale
27/04/2012

Desculpem pelo mau humor contido no meu texto: ainda estou digerindo essa nojeira do Bahrein.

Com grande propriedade, o meu irmão Márcio Madeira usou a forte simbologia presente em The Wall para destacar o que estava acontecendo no fim de semana do GP do Bahrein. Como na primorosa criação de Roger Waters, havia um muro representado pela pesada tropa de choque da monarquia opressora, que isolava o circuito de Sakhir em VINTE quilômetros, para não haver dúvida de que manifestantes não teriam a menor chance de fazer qualquer protesto nos arredores do autódromo.

De um lado do muro barenita havia o ar cosmopolita e purificado que a Fórmula 1 faz questão de respirar. Do outro lado, o cheiro que misturava pólvora da munição deflagrada da polícia, o terrível gás lacrimogêneo, as barreiras de pneus em chama e os coquetéis molotov dos manifestantes. Era cheiro de instabilidade política, cheiro de primavera árabe, cheiro de luta por democracia.

Essa analogia me inspirou a usar como ponto de partida a outra grande obra do Pink Floyd, The Dark Side of the Moon. A última faixa do álbum é Eclipse, e nela a frase final é: “Não há realmente um lado obscuro da Lua. Na verdade, tudo é obscuro. A única coisa que a faz brilhar é a luz solar”. Isso foi dito por Jerry Driscoll, um modesto porteiro do estúdio Abbey Road, quando perguntado sobre o assunto diante de um gravador. A frase tem tanto impacto que a banda optou por colocá-la em destaque na música.

De certa forma, o jornalismo e a ciência fazem algo parecido: jogam luz nos fatos e processos para poder entendê-los. E quando essa luz encontra um prisma, como na eternamente conhecida capa do disco, conseguimos ver em detalhes todas as cores que a compõem. Devemos também considerar o oposto: quando não há luz, as trevas nos conduzem ao medo, à desinformação, à distorção, à omissão, à ignorância.

Eu procuro, pesquiso, penso, compartilho, leio, escrevo… Enfim, trato o automobilismo com entusiasmo, seriedade e dedicação. Mas tenho horror a deslumbramento – talvez por isso eu não usar a palavra “paixão” nesse contexto. Dado o meu compromisso com o esporte a motor, concedo a mim mesmo a liberdade de criticá-lo – por vezes de modo enérgico, como já ficou evidente em várias das minhas colunas em três anos escrevendo para o GPTotal. É um princípio de coerência: assim como não poupo energias para decifrar o esporte a motor, não poupo energias quando uma condenação se faz necessária.

O mundo da Fórmula 1, e todos os seus envolvidos diretos, se esforçaram ao máximo para jogar luz no esporte e deixar toda instabilidade política e problemas sociais na mais completa escuridão, como se isso fosse possível e, de quebra, fosse louvável. E onde havia alguma luz em lugar “errado”, trataram fechar os olhos, simplesmente – um modo torpe e baixo de também acreditar que o público faria a mesma coisa.

A corrida no Bahrein para mim será eternamente lembrada como GP da Infâmia. O evento em que interesses espúrios se sobrepuseram a qualquer tipo de bom senso, comportamento ético e preocupação com a reputação da categoria. Definitivamente, este fim de semana veio para me desafiar e colocar em cheque todo o meu compromisso com o esporte a motor. Acima de qualquer coisa, foi o mais rígido teste da minha capacidade estomacal em digerir atitudes nefastas, deletérias, alienadas e mal-intencionadas. O saldo é terrível, pois este texto apresenta meu recorde pessoal de críticas às pessoas envolvidas com a F1.

No topo da pirâmide da vergonha, os dois homens que levaram a Fórmula 1 a ter em seus registros essa eterna mancha: Bernie Ecclestone e Jean Todt. O primeiro se vendeu ao dinheiro, como fez por toda a vida – algo que, convenhamos, não é novidade pra ninguém. Pela bagatela de 45 milhões de dólares, achou que não havia nada de errado em chegar, colocar os carros na pista, receber os troféus e pegar o cheque assinado pela família real, como se isso não representasse que a Fórmula 1 apoia um governo opressor e que não tem a menor ideia do que seja democracia ou direitos individuais e representativos. “Manifestantes tomando borrachada e agindo contra a corrida? Ora bolas, o esporte está separado da política” – diria o cínico anão inglês. Enfim, por dinheiro, Bernie apoiaria até mesmo um GP no inferno. É só o tinhoso apresentar o cheque.

Bernie ainda deu mais mostras de sua baixeza moral, coisa digna de dirigente amador e rancoroso como Ricardo Teixeira, ao retaliar a Force India. Ele mandou boicotar imagens da equipe no qualify, e mostrar o mínimo do mínimo dos carros indianos durante a prova, apenas porque a equipe não participou do segundo treino livre de sexta-feira para poder sair do autódromo rapidamente e evitar ser novamente pega junto aos protestos populares. Na quinta-feira, quatro mecânicos do time quase foram atingidos por um molotov, que explodiu perto do carro em que trafegavam em direção ao circuito.

Todt, o outro responsável, teve outras razões, mas de forma alguma mais dignas. Ele não é tão patologicamente sedento por dinheiro quanto Bernie, mas gostou da ideia de estar no poder da FIA. Com dois antecessores, Balestre e Mosley, sabidamente de passado nazista, o francês tinha a chance histórica de trazer mais democracia e seriedade em sua gestão, de modo até fácil demais.

Mas para garantir sua “governabilidade” (uma palavra que me causa asco, dado os meios com os quais esta é formada), fez fortes e inescapáveis alianças com outros tipos de pessoas com valores arraigados em oligarquias, opressão e sistemas despóticos de governo: os automóveis-clube do mundo árabe, todos ligados às suas respectivas famílias reais, donas do petróleo. Por quê? Claro, porque eles têm grana! No fim, até o cinismo de Todt foi o mesmo de Ecclestone, quando o francês afirmou que a maioria dos barenitas era a favor da corrida. Considerar isso um disparate é pouco.

Todt tem rabo preso com todo mundo que o ajudou a eleger contra Ari Vatanen, que era apoiado em grande parte dos associados da “velha e decadente” Europa. Como expliquei na seção de comentários em minha última coluna, o xeique Abdullah Al-Khalifa, segundo filho do rei do Bahrein, foi um dos homens fundamentais na campanha de eleição do pequenino francês na FIA. Como prêmio à sua “dedicação”, hoje Abdullah é presidente da Comissão Internacional de Karting, mesmo que no Bahrein não exista um campeonato de kart sequer (caso exista e eu não saiba, retruco dizendo que certamente não é algo sério). No máximo, devem existir um ou dois locais de kart-indoor para pessoas brincarem.

Os pilotos e ex-pilotos também não ficam de fora dessa vergonha. Damon Hill primeiramente apresentou-se contrário ao GP, para dias depois dizer que se Todt achava que não havia problema, ele apoiaria a corrida. Não sei até que ponto Hill foi ingênuo ou se ele realmente está sendo contaminado por esse ambiente podre da cartolagem.

Outro que colocou sua decisão seguindo Todt foi Mark Webber, de quem eu esperava declarações mais engajadas, para honrar a tradição de tough guy dos australianos. Não passou nem perto de promover discussões dentro da GPDA. Se bem que, pensando um pouco, não seria algo frutífero, dado o nível de alienação que os pilotos e dirigentes apresentaram em suas declarações. Você espera esse tipo de conduta de um cara low-profile como Kimi Räikkönen, um cara que assumidamente está c***** para o que acontece à sua volta. A despedida de Schumacher em Interlagos, 2006, é um exemplo rápido e convincente.

Destacadamente, os mais imbecis foram Sebastian Vettel e Martin Whitmarsh, o dirigente da McLaren. Ambos compararam a insegurança do Brasil com a instabilidade política do Bahrein. Será que eles são tão idiotas a ponto de não perceberem que são realidades completamente distintas e que, no Bahrein, o alvo de protesto era justamente eles mesmos, juntamente com todo o circo da Fórmula 1?

Mas o que realmente mais doeu foi ver que Stewart e Lauda, meus heróis, pessoas acima de qualquer suspeita e que sempre tiveram a liberdade de falar o que lhes vinha à cabeça, estiveram lá e ficaram quietos. Realmente doeu. Diante de uma situação como essa, faz sentido a palavra do colunista de F1 do The Times, Simon Barnes: A Fórmula 1 é um dos esportes mais autoindulgentes que já surgiu. E toda sua história de morte e negligência só corrobora a afirmação.

Bem é verdade, o Márcio poupou meu trabalho em um aspecto: criticar a Rede Globo. A política editorial da Platinada sobre os acontecimentos do fim de semana foi simplesmente abjeta. E ficou provado que eles sabiam de tudo o que estava acontecendo, pois na matéria para o Fantástico da sempre dispensável Mariana Becker foram mostradas várias imagens (na verdade, flashes que duravam não mais que uma fração de segundo) feitas por Luiz Demétrio Furquim dos protestos na capital Manama, com direito a pneus queimados, correrias etc. Sobre o desempenho de Galvão Bueno, quanto menos eu falar, melhor. Vou ficar só na definição do texto: arrogante e incompetente.

Não podemos mudar o que passou, mas fica como nosso dever mostrar através dos anos o que foi esse GP do Bahrein de 2012. Os gélidos números vão apenas dizer que foi uma corrida qualquer, com pole e vitória para Vettel. Mas você sabe. Eu sei. Foi um dos capítulos mais vexatórios da Fórmula 1.

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

12 Comments

  1. Lucas Andreazzi disse:

    Não é triste ver a F1 no Bahrein, mas no mínimo irritante. Circuito chato, arquibancadas vazias, clima natural que passa a barreira televisiva e nos deixa com um certo… calor virtual !? … Enfim, realmente dispensável para a F1. Entretanto, quanto a Vettel e Whitmarsh, é dificil aceitarmos a situação de assaltos no Brasil, mas infelizmente existe, foram infelizes em seus comentários mostrando uma certa arrogância européia perantes nós latinos, mas tem sim uma mínima ponta de verdade. Agora, o que fico pensando a todo momento, e o único a responder é o próprio individuo, é: O que acontece com o Massa. Não é excepcional, não é um ótimo acertador de carros, mas era extremamente agressivo e demonstrava uma confiança invejável no grid… Onde foi este cara? Deixou apenas a carcaça de sí próprio, dando muitos indícios de que há algo relacionado a patrocinio/contrato entre ele e Alonso, pois não passá-lo no GP do Bahrein no momento em que podia e tinha pneu para isso é realmente insosso, me passando lembranças de Heikki na Mclaren, pois o finlandês chegou a vencer a corrida dos campões a uns 6/7 anos atrás vencendo Schumacher e companhia bela e não pode fazer nada na Mclaren, venceu apenas uma vez se não me engano…. Volta Massa…..

  2. Felipe Pires disse:

    Infelizmente a paixão pelo automobilismo me faz engolir “sapos” como esse……..espero que o Bahrain não volte a F-1…….mais como vc disse, só falta ter um GP no Inferno, então acho que Bernie e Todt cancelem a corrida no ano q vem…….ótimo texto….

  3. Mauro Santana disse:

    Amigo Lucas, parabéns pelo excelente texto.

    Eu já deixei bem clara a minha posição com a F1 aqui mesmo no GPTotal, e não fiz questão nenhuma de acompanhar nada desta corrida, pois é um baita absurdo o que esta acontecendo por lá no Bahrein.

    Algumas pessoas próximas a mim, quiseram comparar com o Santos do Pelá, que parava gerras quando entravam em campo.

    Eu não vejo comparação nenhuma, pois o Santos levava a alegria, e a F1, quer somente o $$$$$$$$$$$!!!!!!!!!!!!!

    E passei o fds inteiro escutando as pessoas rasgarem elogios ao belíssimo autódromo de Bahrein, que é lindo, isso e aquilo.

    É ridículo, pois pessoas que entendem mesmo de automobilismo, sabem que não passa de uma pista péssima, fraca, e super sonolenta, pois automobilismo de verdade, não corre nestes lugares.

    Preferia infinitamente assistir a um GP da F1 em Detroit, do que no Bahrein, Cingapura, Abu Dahbi…

    É triste, mas é a realidade!!

    Abraço a todos!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Lucas Giavoni disse:

      Obrigado pelo elogio, Mauro.

      Como destaquei na coluna anterior, há uma diferença fundamental entre as excursões do Santos FC (fazia, sim, por dinheiro, mas de modo ético e justo) e a F1 no Bahrein: o primeiro foi responsável por pausar guerras tribais, o segundo era mais um motivo para inflamar revoltas populares. Uma vez que o GP do Bahrein é promovido pela monarquia opressora, ganha contornos políticos e torna-se imediatamente alvo de protesto: quem é contra o governo, é contra aquilo que ele promove. Como consequência, a F1 passa a imagem que apoia governos totalitários e está c****** para a situação do povo de lá. Uma mancha e tanto.

      Particularmente sobre a pista do alemão picareta, uso as palavras do meu irmão Guilherme: deveria se chamar Pé-no-Sakhir. Ponto.

      Reforço o pedido: escreva sempre e fique de olho em nosso Facebook!

      Abração!

      Lucas

  4. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    muito bom o seu texto, trazendo a tona verdades que precisavam ser ditas e que demonstraram a realidade mercenaria da qual a Formula 1 como um todo cada vez mais caminha ser …
    Seu texto me fez lembrar aquele GP da Espanha onde o Emerson se recusou a correr face a insegurança da pista, temor que que virou realidade no acidente do Stomelen e o PAce que vitimou torcedores e encerrou a carreira do Alemão … Emerson usou de artificios para não ser punido pelos seus patrocinadores naquela ocasião para não correr … teve que ter muito peito e coragem para cometer um ato que poderia até bani-lo da Formula 1 … para quem não sabe ou se lembra o Emerson foi obrigado a ir a pista nos treinos de classificação fez voltas propositalmente lentas para não se classificar para o grid e assim não participar da corrida … este tipo de conduta, liderança, personalidade não existe na Formula 1 atual … são todos farinha do mesmo saco e todos tem o rabo preso … só pensam em dinheiro …
    Quem perde é o esporte a motor … e é triste a TV Globo estar conivente com isto …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Lucas Giavoni disse:

      Sim, Fernando.

      Bahrein 2012 teve certa semelhança com os ocorridos em Montjuich 1975, em que a segurança estava em xeque – ainda que, naquela ocasião, só os pilotos estavam com o pescoço a prêmio. O Stommelen se arrebentou feio, mas voltou a correr. Não na F1, mas em endurances. Em uma delas, em 1980, perdeu a vida ao volante de um Porsche Moby Dick. Mais detalhes sobre o que aconteceu na Espanha estão presentes no texto do meu amigo e ídolo Manuel Blanco, diretamente dos arquivos do GPTo.

      http://gptotal.com.br/2005/Leitores/Help/20050505.asp

      Quanto a Rede Globo, juro que me segurei na cadeira em três anos de GPTotal para não descer a lenha em um monte de situações. Mas desta vez eles extrapolaram em muito o limite do aceitável e eu me sentiria mal em deixar passar. Vejo que a relação da emissora com os esportes, em geral, passa por uma crise enorme, e a maior mostra disso é como o jornalismo esportivo da emissora tem se comportado, principalmente no Globo Esporte, que virou Globo Picadeiro.

      Um abraço! Escreva sempre e fique conosco no Facebook!

      Lucas

    • Mauro Santana disse:

      O inferno de Montjuich 1975!

      http://www.youtube.com/watch?v=-dFCGllD4a8&feature=related

      Mauro Santana
      Curitiba-PR

  5. Fabiano disse:

    Olá gptos
    tem alguma chance da Maria de Villota correr no campeonato esse ano?

    • Edu disse:

      Acho que não, Fabiano, mas não acho impossível ela fazer uns testes nas manhãs de 6a-feira

      Abraços

      Edu

  6. Alioni disse:

    Bom dia
    gostaria de saber se, na temporada de 1964, a Ferrari tinha algum carro com o N° 22, e qual foi seu piloto?

    • Alioni disse:

      Não achei, Alioni.

      A Ferrari correu com Bandini e Surtees em 64.

      Tenho fotos de todas as dez corridas de Surtees na temporada, nenhuma delas com o número 22. De Bandini, não achei de quatro GPs assim como de Lulu Scarfiotti em Monza, de forma que é possível que, em algumas dessas corridas um deles tenha corrido com o carro 22.

      Abraços

      Edu

    • Lucas Giavoni disse:

      Alioni, apenas complementando o Edu:

      Até 1973, o sistema de numeração dos carros seguia critérios variados e mudava a cada GP, pois essa tarefa era dos organizadores da prova. Especificamente em 1964, nenhum carro da Ferrari recebeu essa numeração. Mas Dan Gurney venceu o GP da França pela Brabham usando o 22.

      Abaixo há um link com todas as participações da Ferrari com o 22 na Fórmula 1 – foram raras as oportunidades.

      http://www.chicanef1.com/query.pl?action=Submit&exact=on&team=Ferrari&carno=22&nc=0

      Escreva sempre e fique de olho em nossa página no Facebook!

      Aquele abraço!

      Lucas Giavoni

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