Em setembro de 1986 Ayrton Senna viajou até o País de Gales, a convite do jornalista Russell Bulgin, para fazer um teste secreto com carros de rali promovido pela revista Cars and Car Conversions. A Lotus não foi informada a respeito da atividade, pois ela representava uma flagrante quebra de contrato. Informações a respeito do teste não vazaram até que a matéria foi finalmente publicada, meses depois.
À época vivia-se o auge do legendário Grupo B, com carros de rali que, em suas respectivas áreas, eram tão radicais quanto os bólidos da Fórmula 1 em 1986, ou as motos de 500cc daquele mesmo período histórico de potência ainda analógica e mecânica, as chamadas unrideables. A ideia, naturalmente, era colocar Ayrton numa dessas máquinas e observar sua curva de aprendizagem, obtendo assim um breve vislumbre daquilo que poderia ter acontecido caso tivesse tomado um rumo diferente e seguido carreira no fascinante universo dos ralis.
Antes de seguirmos com a narrativa, parece oportuno darmos espaço a uma pequena análise teórica. Ora, ralis são geralmente disputados em estágios, que começam e terminam em pontos distintos, e são percorridos uma única vez por cada piloto. Isso, por si só, já elimina da equação aquilo que convencionamos chamar de terceira fase da pilotagem (repetição). E, claro, nos ralis também há uma variação muito maior a respeito das condições de piso, quer seja a respeito de sua própria composição, quer seja no que diz respeito a ondulações, buracos, cambagens, pedras, saltos, entre inúmeras outras variáveis possíveis. É evidente, portanto, que a rapidez para coletar e processar informações a respeito da aderência disponível, bem como a capacidade de ajustar da melhor forma a velocidade e a abordagem a essa ideia aproximada de limite, são habilidades cruciais para o sucesso de um piloto de rali. E, como temos visto repetidas vezes, eram essas justamente as virtudes que mais destacavam Ayrton Senna em relação a seus melhores rivais.
Em teoria, portanto, não seria nenhum absurdo avaliar que as destrezas naturais de Senna combinavam muito mais com as demandas habitualmente exigidas nos ralis do que em grandes prêmios, uma vez que as provas eram disputadas constantemente sob condições variáveis, quase numa equivalência com o que seria um campeonato mundial de Fórmula 1 no qual chovesse em todas as etapas e as corridas fossem disputadas numa única e enorme volta. Os prognósticos, portanto, eram os melhores possíveis, e a impressionante curva de aprendizado atestada por diversos pilotos profissionais ao longo daquele dia apontam exatamente nessa direção, em meio a algumas frases muito fortes e significativas.
Feitas as devidas considerações, retornemos à narrativa. No último momento Ford, Peugeot e Lancia pularam fora do teste, deixando apenas a Austin Rover para providenciar um Metro 6R4 de Grupo B, tração nas quatro rodas, mas na configuração básica, Clubman, de 250cv. Olhando em retrospectiva, as principais marcas provavelmente não acreditaram que o piloto mais rápido da Fórmula 1 iria mesmo aproveitar seu único fim de semana livre de compromissos para testar suas máquinas, o que tornava muito arriscado o investimento necessário para deslocar uma pequena equipe ao Sul do País de Gales.
Diante do contratempo de última hora, Russell recorreu a seus contatos e conseguiu um Ford Sierra RS Cosworth do Grupo N, um Vauxhall Nova Sport do Grupo A, um brutal Escort Ford V6 GA 4×4 de 460cv “feito em casa”, e um Golf GTi da Volkswagen Junior Rally Team. Não eram as máquinas infernais do Grupo B que Senna esperava, embora o Escort chegasse bem perto disso, mas ao menos representavam uma curva de aprendizado mais suave e escalonada.
No caminho para o País de Gales Ayrton foi dirigindo sua Mercedes 500 SEL Coupé, e a própria viagem já foi “aterrorizante”, nas palavras de Steve Bennett, em artigo que assinou para a Motor Sport. De fato, os dois jornalistas acabaram rodando numa curva mais fechada enquanto tentavam o acompanhar, sendo alvo de muitas brincadeiras de Ayrton em razão disso.
No jantar, na noite anterior, essas eram as palavras de Senna. “Eu não sei nada sobre ralis. Eu tenho visto as fotos em revistas, algumas vezes assisti na televisão. E eu, deliberadamente, não ouvi ninguém a respeito da pilotagem nos ralis. Quero descobrir por mim mesmo.”
O Sierra foi o primeiro carro a ser acelerado, ainda sem ter qualquer experiência prévia, nem mesmo a menor ideia a respeito dos conceitos básicos, como Phill Collins[1], dono do carro, logo veio a descobrir. “Eu disse a ele para não usar linhas de corrida em circuito e para apontar a dianteira para a rota mais estreita, mas ele alargou como se estivesse se aproximando de uma curva em Silverstone, pisou no cascalho solto e escorregamos para a vala”, lembrou Collins. “Ele foi muito humilde e se desculpou, e depois disso foi o aluno perfeito. Na verdade, em poucas passagens ele deixou de ser um novato completo e se transformou em poesia em movimento. A velocidade que ele aprendeu foi realmente impressionante – com o controle do carro que tinha… Ele era um (talento) natural.”
Senna também comentou sobre o incidente no início da experiência. “Eu quase saí da pista na primeira curva. Então foi algo… surpreendente. Porque eu realmente entrei na curva como se fosse num carro normal. Foi algo estúpido, porque é preciso forçá-lo. Antes da curva é preciso se comprometer. Agora eu entendo por que é preciso contraesterçar e usar um pouco da tração, para manter o carro realmente mordendo o chão. Se você tentar simplesmente contornar, você não consegue, simplesmente segue reto.”
Os pilotos presentes ao teste enfatizaram que o estágio utilizado não era exatamente o melhor lugar para se aprender a fazer rali, as condições estavam realmente desafiadoras e não permitiam experimentar toda a velocidade que aqueles carros eram capazes de imprimir. Senna não havia levado suas luvas, por imaginar que não seriam necessárias, mas ao fim do dia tinha bolhas em suas mãos. “É preciso colocar muito esforço aqui”, disse Senna apontando para os antebraços, “para manter tudo junto, como quando você atinge algum solavanco no meio de uma curva. O volante está lutando, e subitamente começa a escapar, caso não se coloque a pressão necessária.”
Após uma segunda saída com o Sierra, Collins confirmou que Ayrton já estava desenvolvendo sua sensibilidade para o rali, e que era hora de testar outro carro. Ao fim dessa primeira experiência, as palavras de Ayrton talvez nos ajudem a entrar na cabeça de um campeão mundial e compreender um pouco de sua abordagem, e do quanto não havia espaço para sorte na maneira como calculava a velocidade em suas apavorantes voltas voadoras. “Foi muito bom. Phill me deu muita ajuda, (me passou) muitas pequenas coisas. Mas ainda é muito, muito difícil julgar. Eu não tenho capacidade suficiente para julgar exatamente o que estou fazendo, e o que deveria estar fazendo. Em alguns momentos eu sinto que vou perder (o carro, o controle), e então, em alguns momentos há ainda uma grande margem (a ser explorada).
O próximo carro a ser testado seria o Nova, de tração dianteira e apenas 1300cc. Senna está nitidamente curtindo a experiência, e enquanto ouve as orientações do mecânico Martin Roberts diz que gostaria de andar em todos os carros e, depois, sair novamente com os dois favoritos. Quando Ayrton saiu com o Nova, Collins dividiu suas impressões a respeito do que havia acabado de testemunhar. “Bem, você pode ver o talento do rapaz no espaço de duas milhas e meia. Ele cometeu um erro na primeira curva, e era possível notar seu embaraço mesmo debaixo de todo o equipamento. De imediato ele disse que lamentava e compreendeu que não funcionaria pilotar esse carro lentamente, e começou a jogá-lo nas curvas. (…) Quando fizemos a segunda saída ele estava pilotando com muita confiança, apesar de ter de lembrá-lo três vezes a respeito da necessidade de apertar o botão do freio de mão. E eu o ensinei a ser muito mais suave com o pedal do acelerador. A tendência dele era acelerar tudo ou não acelerar nada, porque o conceito em qualquer evento de asfalto é que ou você está acelerando ou freando, não há meio termo. Nos ralis você controla o carro com o acelerador.”
O Nova retorna, e Ayrton dá suas impressões. “Você está sempre lutando, mesmo nas retas. O volante se contorce e a traseira se move o tempo todo. Não é um carro tão forte, então, de certa forma, é mais fácil de guiar. A reação ao acelerador é mais lenta que a do Sierra (…) mas tem uma frente muito melhor. Você pode posicionar a dianteira onde quiser, e o eixo traseiro é a parte solta. O Sierra é um carro mais igualitário, e se você não usar a potência começa a sair de frente.”
O próximo a ser testado foi o Golf. A reportagem afirmou que “cada vez que Senna entra num carro novo sua pilotagem parece mais natural, menos forçada. Suas linhas de curva deixaram de ser as de um autódromo e passaram a ser as de um estágio de rali, seu pedal de acelerador está agora sendo usado para equilibrar o carro, buscar aderência. As rotações caem menos à medida que o Golf de 170cv avança pelo estágio. Sua entrada de curva está mais confiante, o ruído é mais forte, mais consistente e dura mais tempo. Ele começou a andar forte.”
Ayrton gostou do Golf. Direção hidráulica, mais potente que o Nova, mas menos que o Sierra, e também um carro mais neutro, e mais macio ao passar pelas irregularidades do piso. “Talvez não tão rápido, mas mais fácil de pilotar. Mais confortável, então você se sente mais confiante”, explicou, antes de pedir para dar mais uma volta. Nessa segunda volta ele demorou a retornar, e muitos acreditaram que tivesse sofrido um acidente. Na verdade, havia passado por uma grande rocha que o havia lançado num salto, e na segunda passagem desceu do carro para a remover do caminho, se divertindo quando percebeu que todos estavam esperando que fosse relatar alguma batida. E acrescentou: “para um iniciante como eu, o Golf é um carro fácil para ganhar confiança. Mas, após certo tempo começa a dar a impressão de que não é forte o suficiente.”
A seguir foi a vez de Allan Edwards mostrar seu maravilhoso Escort 4×4, que naquele dia estava equipado com a suspensão própria de estágios em asfalto, pois tinha acabado de retornar de um evento. A primeira volta de Ayrton foi no banco do carona, com Allan nitidamente curtindo a oportunidade de assustar um piloto de Fórmula 1. A seguir os dois trocaram de lugar, e ao fim da experiência Edwards foi enfático. “Com poucos dias num carro como esse num trecho melhor, e ele estaria igualando o desempenho dos líderes no campeonato nacional. Não tenho dúvidas quanto a isso. (…) Eu fiquei impressionado ao ver um piloto se adaptar tão rapidamente à pilotagem em meio a floresta. (…) Ele me impressionou, está aqui para aprender. Em questão de horas ele seria um piloto de florestas de nível nacional, e arriscaria dizer que com uma semana de treino ele estaria enfrentando os pilotos de nível mundial.”
O último a ser testado foi o Metro, e gerou impressões distintas entre os observadores e o próprio Senna. Vendo de fora, a reportagem descreve que o carro voou nas mãos do brasileiro, que o ritmo apareceu instantaneamente, em meio a linhas concisas e de ataque. Ayrton, por outro lado, afirmou que o carro era mais macio que os outros, especialmente quando comparado ao Escort. Então parecia um pouco solto no início, movia-se muito, para o seu gosto. “Precisei de metade do estágio para entender sua dirigibilidade. No caminho de volta eu comecei a andar mais forte.” Senna faria uma segunda saída com o Metro, apenas para confirmar que havia gostado mais do Escort.
“O ponto é, num carro de corrida você conhece exatamente cada curva, porque as percorre, sei lá, cem vezes por dia em testes. Você sabe precisamente quão ondulada ela é, onde deve ser a sua linha, e é necessário ser muito preciso. (…) Aqui é muito mais natural, porque você precisa improvisar o tempo todo. É preciso ter muito julgamento, não há margem para erro, ou você acaba fora da estada.” E, para a surpresa de muitos, diante do pedido para que comparasse a emoção de uma volta perfeita com a de um ataque perfeito em meio a um estágio de floresta, afirmou que ali era muito mais excitante do que num carro de Fórmula 1, “porque não temos a velocidade máxima (tão alta), mas temos muita aceleração, no Escort uma aceleração tremenda. E é difícil. É muito mais uma emoção instantânea do que num carro de Fórmula 1.”
Senna andou novamente no Sierra e no Escort, e a reportagem afirma que a última tentativa com o Cosworth foi maravilhosa. “Ele fez a última curva à esquerda com três solavancos de sobreviragem, subindo o xisto empilhado na beira da pista para endireitar sua saída. A nota do motor não vacila, as mãos batendo no volante. Ele parecia um piloto de rali: um corajoso piloto de rali.”
A reportagem segue com outros depoimentos, todos confirmando a impressão de que Ayrton não precisaria de muito tempo de pista para se tornar um competitivo piloto de rali. E o próprio Senna demonstrou claramente ter adorado a experiência, afirmando que não queria parar, que a vontade era continuar andando uma vez após a outra, enquanto agradecia a todos pela oportunidade, e afirmava que havia gostado muito mais do que imaginava.
“Aquelas pessoas lá, com os carros, elas estavam curiosas para ver o que ia acontecer. Tanto quanto eu estava. Eu senti que todo mundo estava curioso para ver onde eu ia sair da estrada e, você sabe, o que ia acontecer. Essa era a graça, porque era tão desconhecido. Tudo era tão novo que havia um grande ponto de interrogação. Aquele sentimento era a excitação.”
“Tirando as corridas que fiz, testes ou o que seja, este foi provavelmente o melhor dia que eu já tive na Grã-Bretanha. Acredite ou não. Fora das corridas que eu fiz, por diversão, este foi o melhor dia.”
[1] Durante sua viagem ao País de Gales, Ayrton coincidentemente foi ouvindo músicas de Phill Collins em seu carro. Apesar de homônimos, contudo, o músico e o piloto de rali não eram a mesma pessoa.
2 Comments
Emocionante! Esta eu não lembro de ter ouvido ou lido a respeito!
Obrigado pora trazer.
Márcio,
Essa história me fez lembrar de quando ainda moleque com 14 ou 15 anos me divertia fazendo minhas peripécias com os carros de meu pai nos loteamentos que ele fazia. Era muito divertido.
Obs: se o kart é a melhor escola para quem quer ser piloto de fórmula 1, um fusca é a melhor escola pra quem quiser ser um piloto de rally …
Fernando Marques
Niterói RJ