32 milésimos

Italian job
09/09/2025

O tempo passa de forma diferente dentro dos muros de um autódromo. Se aqui fora, na grande maioria das vezes, um décimo de segundo não quer dizer muita coisa, numa pista é o tipo de intervalo que pode valer muitos milhões de dólares e fazer a diferença entre obter ingresso na seleta galeria dos campeões, ou ter de conviver o resto da vida com explicações, justificativas e algumas dúvidas desconfortáveis. E não precisamos ir longe em busca de exemplos a esse respeito, pois o atual campeonato do mundo tem se notabilizado justamente pelo achatamento do grid, pela grande proximidade de tempos entre todos os conjuntos, e parece certo que o próprio título mundial de pilotos será em grande parte decidido nos milésimos de segundo das voltas de classificação ou do tempo de reação em largadas.

É muita coisa em jogo atrelada a diferenças muito infinitesimais. Ao fim deste ano, detalhes dos detalhes irão separar, talvez para sempre, os destinos de Piastri e Norris, como separaram, no passado, os de Häkkinen e Coulthard, Schumacher e Barrichello, Senna e Berger, com o agravante de que a diferença de capacidade entre os dois atuais postulantes ao título é certamente bem menos acentuada do que nos outros exemplos citados. É o tipo de constatação que dá o que pensar.

O tema para esta coluna, no entanto, me ocorreu após observar uma situação ocorrida 36 anos atrás, que envolveu objetivo bem mais modesto, embora não menos nobre ou digno de ser lembrado com orgulho.

Estoril, 24 de setembro de 1989

Um astrólogo talvez fosse capaz de identificar nos céus alguma conjuntura capaz de explicar a grande quantidade de anormalidades que se uniram para escrever a singular história do GP de Portugal de 1989.

Para a maioria dos entusiastas, talvez a corrida seja principalmente lembrada pela controversa batida entre Nigel Mansell e Ayrton Senna, após o inglês já ter sido desclassificado por dar marcha à ré no pitlane, ou ainda pela redentora vitória de Gerhard Berger, ao fim de uma temporada na qual havia escapado da morte em Ímola, mas não de uma longa série de infortúnios decorrentes da falta de confiabilidade da icônica Ferrari 640 que introduziu o câmbio acionado por borboletas. Houve, no entanto, um bom punhado de outras ocorrências atípicas e merecedoras do devido registro.

Alguém poderia observar, por exemplo, que pela primeira vez naquela temporada a McLaren entrava num fim de semana sem ser a força dominante, ou que a câmera onboard nos carros da Ferrari não deixa dúvidas quanto ao fato de Berger ter queimado – impunimente – a largada na corrida. Caberia registrar, ainda, que a Williams faria naquele fim de semana a estreia de seu modelo FW13, projetado para competir em 1990, ou que a Onyx conseguiria ali o único pódio de sua passagem na F1, pelas mãos de Stefan Johansson, apesar de ter cruzado a linha de chegada já sem combustível.

Mesmo todos esses registros, todavia, ainda ficam longe de contar a história completa, porque naquele fim de semana houve momentos de brilho por parte de alguns personagens habitualmente relegados a papéis secundários ou figurações. A Coloni de Roberto Pupo Moreno, por exemplo, brilhou na sexta-feira (fechou o à frente da Benetton de Pirro, da Brabham de Stefano Modena e das Lotus de Piquet e Nakajima) até se envolver num acidente com a Arrows de Eddie Cheever, ponto a partir do qual não conseguiu mais entregar o mesmo desempenho, dando origem à lenda – verbalizada na própria transmissão brasileira da corrida – de que o bom desempenho teria sido fruto de uma asa dianteira especial desenhada por Gary Anderson, da qual só existiria um único exemplar. Muitos anos mais tarde, contudo, tanto Gary Anderson quanto o próprio Moreno me contaram pessoalmente versão diferente para a história.

“Eu fiz sim alguns testes com a Coloni e com Roberto, e de fato nós mudamos a forma como a asa dianteira trabalhava. Mas eu não desenhei uma asa nova, apenas a ajustei de maneira diferente”, relembrou Gary Anderson.

Agora Moreno: “Eu não me recordo dele (Anderson) ter desenhado asa alguma para a Coloni, se aconteceu eu nunca fiquei sabendo. Ouvi um jornalista contar essa história recentemente, e não tenho qualquer lembrança a esse respeito. O que eu me lembro, e muito bem, é que em Portugal nós tivemos a sorte de receber um jogo de pneus que se mostrou excelente para as condições da pista, surpreendendo a nós mesmos e a própria Pirelli.”

E continua: “Eu já estava escaldado com essa questão dos pneus, que uma hora funcionavam e noutra não, e em dado momento da temporada passei a anotar os códigos que os identificavam. Pois bem, bastou que esse composto de pneus se mostrasse eficiente para que meu outro jogo do mesmo tipo de borracha subitamente desaparecesse e fosse substituído por outro. Mas, como eu tinha o código anotado, saí em busca dele, e fui encontrá-lo nos boxes da Scuderia Italia”.

Os fatos se alinham à tese apontada pelo Baxo. Afinal, se na sexta-feira ele havia alcançado a 12ª posição com o tempo de 1min18s196, no sábado seu desempenho despencou e ele não conseguiu ir além do 28º melhor tempo, com sua melhor volta na casa de 1min20s512. Uma diferença superior a 2,3s, numa sessão em que diversos pilotos conseguiram, ao contrário, melhorar suas marcas em relação ao dia anterior. É evidente que algo de muito importante havia mudado nos boxes da Coloni. Enquanto isso, na Scuderia Italia, Alex Caffi melhorou do 18º tempo na sexta-feira (1min18s523) para o 6º tempo no sábado (1min17s661)…

Noutros relatos que me concedeu, Moreno explicou que a Pirelli trabalhava naquela altura com diversos compostos diferentes e em pequenas quantidades num mesmo fim de semana, fazendo experimentações que pudessem sinalizar possíveis caminhos evolutivos. Evidentemente, naquele momento histórico entre o fim de 1989 e o início de 1990 algumas combinações haviam se mostrado muito competitivas sob determinadas circunstâncias, e isso iria se refletir de modo especial no desempenho de uma pequena e simpática equipe italiana sediada em Faenza, daquelas que levavam o sobrenome de seu fundador. Neste caso específico, estamos falando de Giancarlo Minardi, fundador do time cuja linhagem ainda segue ativa sob a bandeira da Racing Bulls.

Nos treinos, Pierluigi Martini conquistou uma heroica quinta colocação, atrás apenas das duas McLarens e das duas Ferraris. De fato, na sexta-feira o desempenho havia sido ainda melhor, tendo ficado atrás apenas de Berger (139 milésimos) e de Senna (1,442s). Naturalmente, não parecia razoável esperar do conjunto Minardi-Martini-Pirelli desempenho em corrida compatível com esse posicionamento, mas os valentes e simpáticos italianos não estavam interessados em prognósticos. Encarando a pista como o palco de uma ópera, eles correram com paixão e com coragem, sustentando solidamente a quinta colocação à frente das Williams de Patrese e Boutsen, e fizeram isso girando consistentemente em ritmo próximo ao dos líderes, enquanto poupavam pneus com mais cuidado do que todos que iam à frente.

Tentando o undercut, Prost vai aos boxes ao fim da 27ª volta e volta andando rápido, mas ocupando a 9ª posição e com muito tráfego à frente. Berger é o próximo, ao fim da volta 34, sendo seguido por Senna no giro seguinte. O brasileiro vinha lutando bravamente com as Ferraris, mas uma troca desastrada o devolve à pista 6s atrás de Berger. Por fim, na volta 39 é a vez de Mansell, que vinha se consolidando como favorito à vitória, ir aos boxes, onde perderá 15s com o famoso erro que o levou a engatar a ré.

Todos, a essa altura, estavam focados na briga entre Senna e as Ferraris, mas o fato é que a liderança, naquela gloriosa 40ª volta, vinha sendo ocupada por Martini e sua brava Minardi, ainda que a cronometragem, medida na abertura da volta, ainda indicasse Mansell na 1ª posição. Para todo um grupo de profissionais apaixonados pelo esporte aqueles eram, portanto, quilômetros muito especiais, mas para fins estatísticos a liderança só seria computada se Martini ainda estivesse à frente ao fim da volta. E tanto Berger quanto Senna, de pneus novos, vinham se aproximando muito rapidamente.

Alcançada a Parabólica Berger já está colado na Minardi, e quando os carros entram na reta ele tira de lado para efetuar a ultrapassagem e reassumir a liderança da corrida. Mas não tão depressa assim: ao cruzarem o ponto de cronometragem, Martini ainda liderava, com exatos 32 milésimos de vantagem sobre a poderosa Ferrari, que terminaria por vencer aquela corrida.

Por mais que o fato de ter sido a primeira volta a ser liderada pela equipe já tornasse o momento importante por si só, a verdade é que ninguém, naquela altura, poderia imaginar que aquela seria a única volta a ser liderada por um carro Minardi em grande prêmio em toda a sua história. Com o tempo a história tornar-se-ia razoavelmente conhecida e lembrada entre entusiastas mais hardcore do esporte a motor, mas poucos se dão conta do quão marginal foi esse feito. Por meros – mas muito significativos – 32 milésimos, o trabalho sério de um pequeno grupo de pessoas ficou eternizado entre as estatísticas de quem chegou a ocupar a liderança de um GP oficial. Um registro que teria sido negado com requintes de crueldade se acaso o ponto de cronometragem se situasse uns 50 metros à frente.

Ok, restavam ainda 31 voltas a serem percorridas, e o desempenho iria despencar a partir dali. Martini terminaria a prova na 5ª colocação, uma volta atrás do líder Berger, e muitos poderão questionar: “certo, e de que vale liderar uma volta que não seja a última?”

É uma boa pergunta. E a resposta que cada um dará a ela parece extrapolar, em muito, os limites do esporte a motor.

Um ótimo fim de semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

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