Edu,
Antes de tudo, gostaria de comunicar a nossos leitores que o livro “Jaguar-Uma história de sucesso nas pistas”, escrito por mim e viabilizado pelo amigo Alberto Andriolo, está à venda. Quem quiser um pode comprá-lo em livrarias de shoppings ou pedir pela internet, clicando no link que aparece nas páginas do GPtotal.
Sou suspeito para falar do livro. Por isso, ofereço um pequeno “cardápio”: cerca de 150 páginas, muitas fotos (desde os primórdios da Jaguar, nos anos 20, até a contratação de Antônio Pizzonia no final de 2002) e uma entrevista exclusiva com Raul Boesel sobre o título mundial de Protótipos de 1987. Não faltam histórias de bastidores, algumas delas inéditas.
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Muitos se lembram do GP do Brasil de 1982, que Nelson Piquet ganhou na pista mas perdeu no tapetão uns 20 dias depois por causa do episódio das “caixas pretas” (ou “caixas d’água”, como preferem alguns). Hoje, muitos amigos se enrolam completamente ao tentar explicar que diabos eram as tais “caixas pretas” – e acabam disseminando versões que nada têm a ver com a realidade.
Convém contar a história completa. Em 1982, os motores turbo, especialmente os da Ferrari e Renault, já eram os mais competitivos da F 1. Às equipes com motores aspirados restava torcer pela quebra dos carros turbo (ainda muito freqüentes) ou lutar pela vitória em circuitos de baixas médias horárias, em que a importância da potência era menor.
O criativo Gordon Murray, projetista e diretor-técnico da Brabham (que já estava testando e eventualmente usando os motores BMW turbo, mas ainda corria com motores Cosworth aspirados) encontrou um “furo” no regulamento. Na época, terminados os treinos e corrida, os carros tinham os reservatórios de água e óleo reenchidos e só então eram levados à balança para pesagem.
A Brabham, então, fez um carro 80 kg mais leve do que o mínimo permitido (na época, se não me engano, 580 kg) e adaptou reservatórios de água com capacidade suficiente para, quando cheio, deixar o carro dentro do limite de peso. Evidentemente, os tais reservatórios nunca correram cheios d’água: seguindo o regulamento, eles só eram enchidos após a corrida – e, na vistoria, peso do carro ficava dentro do regulamento.
Para (mal) disfarçar o real objetivo dos reservatórios, Murray adaptou um sistema que permitia borrifar a água diretamente nos discos de freio, “para resfriá-los”. Havia no cockpit um comando que acionava uma pequena bomba, dessas de esguicho de limpador de pára-brisa, apenas para mostrar que o sistema estava ali e funcionava. Williams e McLaren também instalaram suas “caixas pretas” – muito provavelmente por sugestão da própria Brabham, que pretendia ganhar mais força diante dos protestos mais que prováveis das outras equipes. Vale a pena lembrar mais um detalhe: na época, a Brabham pertencia a Bernie Ecclestone, que já era o homem forte da F 1 e presidia a FOCA ((Formula One Constructors Association, atual FOM – Formula One Management).
Ivo Sznelwar, que foi comissário técnico em vários GPs do Brasil nos anos 80, ainda se lembra: “Perguntamos ao Gordon o que era aquilo (as caixas d’água) e ele, daquele jeito dele, explicou que era um sistema de refrigeração dos freios. E arrematou, com um sorriso malicioso: ‘Tudo dentro do regulamento!’”. Gordon Murray, para quem não sabe, tinha uma postura totalmente diferente daquela que se vê hoje em um projetista de F 1. Era roqueiro inveterado, fumava cigarros escuros, aparecia com cortes de cabelo extravagantes, usava camisetas com referências às suas bandas preferidas.
Graças às caixas pretas, o GP do Brasil de 1982 foi um dos melhores de todos os tempos. Piquet largou em 7º e foi recuperando posições até encontrar pela frente a Ferrari de Gilles Villeneuve, que liderava, e o Williams de Keke Rosberg, que era 2º. Os três disputaram a posição durante umas 15 voltas, até Villeneuve errar uma freada e bater quando tentava se defender dos ataques de Piquet. Daí em diante, o brasileiro foi embora e venceu. No pódio, exausto, desmaiou e, depois de recuperar os sentidos, estourou champanhe sentado no degrau mais alto.
Esta é a história. Agora pasmem: volta e meia leio que os carros com caixas pretas paravam no meio da corrida para encher os reservatórios ou, mais absurdo ainda, que os pilotos largavam com os reservatórios cheios e iam “despejando a água na pista para deixar o carro mais leve”. Multiplicando os 80 litros de água por seis carros (dois da Brabham, dois da Williams e dois da McLaren), pode-se imaginar que em dado momento todos os pilotos teriam que parar nos boxes e colocar pneus para pista molhada…
Na pista, tudo foi muito bonito. Nos bastidores, deu uma briga dos diabos. Renault e Ferrari protestaram junto à FIA logo nos primeiros treinos, mas não havia o que fazer: na letra da lei, os carros estavam absolutamente dentro das regras.
O imbroglio teria desdobramentos na corrida seguinte, em Long Beach. Enzo Ferrari orientou a equipe a montar no dia da corrida dois aerofólios traseiros nos carros de Gilles Villeneuve e Didier Pironi. Foram colocados lado a lado, um deles ligeiramente mais à frente que o outro. A soma dos dois aerofólios ultrapassava em muito a largura máxima permitida pelo regulamento, mas a Ferrari alegava que eram peças independentes e que o regulamento era omisso quanto ao número de aerofólios que os carros poderiam ter…
Na verdade, a intenção do “commendatore” era muito mais testar a coerência das decisões técnicas da FIA do que conseguir alguma vantagem no desempenho de seu carro. Villeneuve terminou em 3º lugar, mas foi desclassificado por causa da largura atingida pelas duas asas. Isso enfureceu Enzo Ferrari, que ameaçou retirar sua equipe do campeonato.
As pressões e discussões atingiram níveis perigosos. Nos dias seguintes a Long Beach, a FISA (Federação Internacional do Esporte Automobilístico, na época braço desportivo da FIA) desclassificou Piquet e Rosberg do GP do Brasil, além de confirmar a punição a Villeneuve. Nessa mesma ocasião, foi anunciado o novo sistema de pesagem, idêntico ao de hoje: durante os treinos, o piloto que receber luz vermelha ao entrar no box deve se dirigir para a pesagem. Além disso, foram proibidas quaisquer adições de materiais aos carros.
Há poucos dias, Ivo Sznelwar contou-me um detalhe que eu desconhecia. A FIA só desclassificou Piquet e Rosberg porque os mecânicos da Brabham e da Williams, afobados, invadiram o parque fechado para completar os reservatórios de água e óleo antes que houvesse liberação para isso. Os homens da McLaren, que também usou as caixas pretas, esperaram a devida liberação para fazer esse serviço. Só por isso John Watson não foi desclassificado – e subiu de 4º para 2º lugar, atrás de Alain Prost.
Acabou? Não. Depois da sessão plenária que definiu as desclassificações e as novas regras, as equipes alinhadas à FOCA alegaram que não poderiam comparecer ao GP de San Marino, que aconteceria dez dias depois, porque seus carros estavam ilegais e não haveria tempo de modificá-los. Era, evidentemente, um boicote à corrida, como forma de protesto. As seis equipes “da FISA” (presidia por Jean-Marie Balestre, que na época ainda era inimigo de Ecclestone) compareceram a Imola. Eram Ferrari, Renault, Alfa Romeo, ATS, Osella e Toleman – um total de 12 carros, número insuficiente para validar a corrida.
Foi então que a Tyrrell, pró-FOCA, anunciou sua participação em Imola, com seus carros andando sempre com as “caixas pretas” cheias. Alegação oficial de Ken Tyrrell: “Boicotar um GP não é uma resposta justa a uma sentença absurda”. Na verdade, a explicação mais provável é que a participação da Tyrrell tenha atendido a duas conveniências. Uma, satisfazer aos patrocinadores italianos temporários que a Tyrrell conseguira graças aos bons desempenhos de Michele Alboreto, e que começariam a valer justamente nessa corrida. Essa versão foi praticamente confirmada por Frank Williams: “A Tyrrell poderia acabar se não corresse e nós não queremos isso”. A outra conveniência era marcar a posição da FOCA sem deixar a história chegar a um ponto de ruptura ou que tivesse conseqüências para a credibilidade da Fórmula 1. Fica fácil imaginar o impacto negativo do cancelamento de um GP por falta de quórum, ainda por cima provocado por uma briga política. E assim o GP de San Marino de 1982 teve apenas 14 carros – o menor número de participantes em um GP desde o final dos anos 60 e até hoje.
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Incrível. Somente agora, prestes a completar 35 anos de idade, fiquei sabendo que um dos casos mais rumorosos da história do rock aconteceu em um autódromo – o de Altamont, na Califórnia. Para quem não conhece os fatos: em 6 de dezembro de 1969, os Rolling Stones fizeram ali o show de encerramento de uma turnê pelos Estados Unidos. Enquanto tocavam “Under my thumb”, um jovem negro, Meredith Hunther, foi espancado e esfaqueado pelos Hell’s Angels, que haviam sido contratados para fazer a segurança do evento (havia um motivo para isso, mas não lembro qual era). Aparentemente, os Hell’s Angels tiveram a impressão de que Hunther havia apontado uma arma para o palco, e aí tudo começou.
O assassinato, ocorrido frente do palco, provocou o encerramento imediato do espetáculo, com os Stones tendo que sair do autódromo de helicóptero. Foi um dos episódios mais tristemente marcantes do rock. O autódromo (oval) existe até hoje e fica perto de San Francisco. Quem quiser pode conhecê-lo melhor pode entrar no site www.altamontraceway.com.
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Ah, sim, tem GP de San Marino neste domingo, né? Bom, espero que o vencedor seja definido no mesmo dia e não na sexta-feira seguinte, como aconteceu com Fisichella no GP do Brasil. “Creio ter sido o primeiro piloto a ter vencido um GP numa sexta-feira”, afirmou o italiano, entre irônico e contente, ao conhecer a decisão da FIA. Acrescento: e também o primeiro piloto a receber seu troféu em uma cerimônia de pódio realizada numa quinta-feira, 11 dias depois da corrida. Passaram-se mais de vinte anos, mas certas confusões parecem idênticas…
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Para regozijo de alguns leitores e ira de outros: o novo regulamento é uma merda.
Abraços e boa Páscoa a todos,
LAP