Luis Fernando Ramos |
Já se passaram 30 anos, mas não há ninguém na face da terra que saiba apontar com absoluta certeza quem foi o vencedor do Grande Prêmio do Canadá de 1973. Os livros oficiais registram como sendo o norte-americano Peter Revson, mas perguntem a Emerson Fittipaldi o que ele acha. A corrida que marcou a estréia do Safety Car na Fórmula 1 é séria candidata ao título de mais caótica na história da categoria. Os ingredientes são os habituais de provas assim, como Nürburgring-99 ou Interlagos-2003: chuva depois seco, acidentes, Safety Car. Mas um tempero prá lá de picante foi adicionado na receita: a cronometragem na época era manual, com oficiais e cada equipe tendo sua própria planilha de voltas, que volta e meia não batiam umas com as outras. Na pista de Mosport então, naquele 23 de setembro, ninguém se entendia.
Chuva e neblina adiaram a largada em uma hora. Quando a prova começou, o asfalto permanecia encharcado apesar de não chover mais. Niki Lauda aproveitou o excelente desempenho dos pneus de chuva da Firestone para pular da quarta fila no grid à liderança em quatro voltas. Na 15ª passagem, sua vantagem para o segundo colocado era de 23 segundos. A primeira vitória do austríaco na F1 parecia garantida. Mas a pista começou a secar.
Lauda começou a perder terreno e parou nos boxes para colocar pneus intermediários. A liderança passou então para Jackie Stewart e, depois, para Jean-Pierre Beltoise. Na volta 24 praticamente todo mundo resolveu fazer sua parada ao mesmo tempo e o pessoal da planilha foi à loucura.
Para complicar o quadro ainda mais, houve o acidente entre Jody Scheckter e François Cevert na 33ª volta. Culpa de Jody, como esperado, tanto que Cevert saiu correndo dos destroços de seu Tyrrell para reclamar com o sul-africano. Foi necessária a intervenção dos fiscais de pista para que não houvesse cenas de pugilato. Como havia muitos pedaços de carro na pista, a direção de prova optou pela intervenção do Safety Car.
Vamos fazer uma pausa aqui para relembrar acontecimentos anteriores. O início dos anos 70 foi farto em acidentes fatais e naquele ano já haviam acontecido dois terríveis. Em Kyalami, Mike Hailwood havia retirado Clay Regazzoni da bola de fogo que o carro do suíço se transformou após um acidente. Sua coragem lhe valeu inclusive uma medalha de bravura dada pela própria Rainha Elizabeth. Pouco tempos, em Zandvoort, David Purley não teve o mesmo sucesso ao tentar salvar a vida de Roger Williamson, em cenas que chocaram a opinião pública. Os dirigentes resolveram reagir e adotaram o Safety Car, que já era uma tradição em provas norte-americanas. Na Áustria foi feito um teste durante os treinos livres, com sucesso. No Canadá, a história foi diferente.
Em Mosport, o Safety Car era ocupado pelo piloto local Eppie Witzes e pelo representante da direção de prova, Peter Macintosh. Este ficou de olho na passagem de Jackie Stewart para entrar na frente do escocês, o líder da prova. Mas o piloto da Tyrrell entrou para mais um pit-stop, caindo na classificação da prova. Sem perceber o que acontecia, Macintosh sinalizou para que diversos pilotos passassem o Safety Car, entre eles Revson, Beltoise e Jackie Oliver. Quando perguntou à torre na frente de quem o SC deveria entrar, a resposta foi: “do número 25”.
Macintosh não acreditou e repetiu a pergunta duas vezes, obtendo a mesma resposta. Quando passou o número 25, o Safety Car finalmente entrou na pista. O piloto em questão era o neo-zelandês Howden Ganley, que ficou surpreso e assustado ao ver aquele Porsche 914 amarelo à sua frente. “Sou eu mesmo o líder?”, sinalizava pros boxes.
Não era, mas resolveu aproveitar a chance do erro dos organizadores para acelerar quando o Safety Car voltou aos boxes, cinco voltas depois. Com o modesto Iso-Ford da pequenina equipe de Frank Williams, Ganley se manteve na ponta por três voltas antes de ser ultrapassado por Emerson e, depois, por Stewart. “Nunca guiei tão depressa e com tanta vontade como nestas três voltas. Bufei tanto que quase fiquei sem respirar”, contou o neo-zelandês depois da prova.
Emerson liderava, mas começou a circular nos boxes a versão de que o verdadeiro líder era Jackie… Oliver? O inglês da Shadow seguia pouco atrás do brasileiro na processão formada logo após a saída do Safety Car, o que significava que Emerson tinha de descontar praticamente uma volta de desvantagem.
Ainda faltavam 40 voltas, metade da corrida, e o Lotus 72 era o carro mais estável daquela tarde. Juntando isto com o talento de Emerson, a recuperação não era apenas possível, mas provável. Na fase final da corrida, Oliver começou a se debater com problemas de acelerador e o brasileiro começou a descontar diversos segundo por volta, alcançando o rival e o ultrapassando na última volta.
Após quase duas horas de caos e confusão, Emerson Fittipaldi cruzou a linha de chegada com Oliver colado na sua traseira. O chefão da Lotus, Colin Chapman, estava na beira da pista para jogar seu boné para o alto – sua marca registrada a cada vitória da equipe. Mas o boné de Chapman caiu no chão e o oficial ainda não havia mostrado a bandeira quadriculada.
Instantes depois, um grupo de quatro carros passa embolado na reta e a bandeira é agitada para um deles – Revson! A confusão é geral, mas depois de cinco horas vendo e relendo uma montanha de planilhas de tempos e voltas, o resultado é confirmado: Revson venceu, com Emerson em segundo e Jackie Oliver em terceiro.
O curioso é que, na largada, o norte-americano teve problemas e caiu para último lugar. Mas a sorte estava a seu lado. No momento de intervenção do Safety Car, Revson foi um dos pilotos que teve a passagem permitida pelo fiscal Peter Macintosh – e descontou naquele momento a volta que tinha perdido para os líderes. Depois, com os problemas de acelerador de Oliver, acabou ultrapassando o inglês quase que desapercebidamente, quando este fez uma espécie de “drive-through” pelo pit lane tentando resolver o problema. Por isso, Revson venceu. Ou não?
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Voltando aos dias de hoje, alguns pilotos, membros de equipes e patrocinadores aguardam com especial ansiedade a chegada do Grande Prêmio do Canadá. Não, nada a ver com o bonito cenário da Ilha de Notre Dame, onde fica o circuito Gilles Villeneuve.
É que em Montreal reside um dos mais badalados e ricos fãs da categoria. É Guy Laliberté, dono do Cirque de Soleil. Todo ano, na época do Grande Prêmio, o franco-canadense promove uma enorme festa para convidados selecionados. Quem já foi garante que é uma verdadeira celebração dionisíaca, com decoração de fantasia, bebidas da melhor qualidade e mulheres lascivas sempre dispostas a acompanhar os convidados para tendas especialmente montadas para a ocasião. Não é à toa a maioria dos europeus do circo da Fórmula 1 insistem em deixar suas esposas em casa quando vão para o Canadá.
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Este fim de semana tem as 24 Horas de Le Mans. Como a Fórmula 1, é uma competição que empolgava muito mais no passado do que no presente. E, como colaborador do site, foi com prazer redobrado que abri o GP Total na última semana para ver que o Pandini resgatou um pedacinho esquecido da nossa história ao entrevistar o primeiro brasileiro a disputar o evento, Bernardo Souza Dantas, na década de 30.
Gol de placa do Panda e privilégio de nós, leitores do site, em poder ler histórias tão deliciosas de primeira mão.