Confira a primeira parte deste texto clicando aqui.
Nico Rosberg merecia ter sido campeão do mundo em 2014. Você leu certo: Dois mil e quatorze (ou catorze?). Campeão mundial em 2016, não há o que se questionar sobre aquele mundial (ainda vou escrever sobre…), mesmo sabendo que Hamilton é mais piloto. Mas Nico merecia ter sido campeão dois anos antes.
[Retomo esse assunto mais tarde…].
A ideia de merecimento é curiosa: muitas vezes, se confunde a performance de um atleta/equipe isoladamente com a comparação àquele que venceu. Exemplo: por que tanta gente resolveu contestar a Bola de Ouro de Modric em 2018? Parece até verdade que Cristiano Ronaldo merecia e poderia ter vencido naquele ano.
Mário Salustiano já falou aqui sobre temporadas em que o vice/terceiro da F1 foi mais impactante ou tão forte quanto o vencedor final: os casos mais lembrados foram 1958, 67, 76, 93 e 2012. Por outro lado, em 1964, 1989, 1994 e 2008 os questionamentos, por razões distintas, nascem mais com relação ao vencedor. Já 1981, 1986 e 2007 (e, em alguma medida, 1973) são casos em que a briga interna numa equipe favorita abriu caminho para o vencedor. Por fim, há ainda os casos de 1952, 61, 70, 82 e 99, quando acidentes (quase) fatais influenciaram decisivamente na sequência do título.
Todos esses mundiais, em grau menor ou maior, são questionados ou relativizados. Mas 1987 passa ileso. E isso sempre me chamou atenção.
Ora porque Piquet sofreu o acidente em Imola e as narrativas se concentram em sua resiliência e capacidade de superação, ora porque se assume verdadeira a ideia de que a Williams o prejudicava deliberadamente – nos dois casos, é “Piquet contra Golias” -, o Mundial de 87 acaba sendo tratado como uma temporada cerebral de Nelson.
E discordo frontalmente dessa ideia.
O campeonato começou no Rio de Janeiro.
As mudanças na classificação, mencionadas na primeira parte deste texto, foram claramente sentidas: Prost marca um tempo 1,1s pior do que no ano anterior. Senna? Marca o melhor tempo 2,9s inferior à pole de 86. As Williams, porém, estavam em “outro planeta”: Piquet completou a primeira fila com um tempo apenas 0,3s inferior ao que registrara em 86, enquanto Mansell foi pole, melhorando seu tempo em impressionantes 0,6s.
Mansell fez a pole mas não conseguiu manter a ponta: logo na largada, o carro, sofrendo com superaquecimento, aparenta desligar por um momento, como Senna no Japão 88. Mansell cai pra quinto e tenta recuperar o terreno perdido, mas sofre com o equipamento e termina uma volta atrás do líder. Piquet é segundo, 40s atrás de Prost.
Esse padrão se repetiria em boa parte da temporada: 1) Mansell marca um tempo muito melhor do que o de Piquet; 2) Mansell enfrenta problemas com o carro e abandona ou tem uma prova claudicante; 3) Piquet vai ao pódio, sem nunca ameaçar o líder.
Além de Jacarepaguá, foi assim também na Bélgica. Foi assim em Mônaco. Foi assim em Detroit. Foi assim em Portugal.
Mas houve corridas diferentes: Piquet venceu três provas. Em TODAS elas, herdou a ponta por problemas enfrentados pelo então líder: Prost na Alemanha, Mansell na Hungria e Senna na Itália. Mansell, inclusive, liderava na Alemanha, quando foi forçado a abandonar por problemas no turbo. Na Hungria, o leão liderou todas as voltas até ser traído por uma porca mal apertada no pneu traseiro (a Williams querendo disfarçar?).
Na França, Mansell foi dominante. Na Inglaterra, Piquet foi pole e caminhava para a vitória, quando se viu surpreendido por um Mansell com pneus novos e muito rápido. Por fim, na Áustria, Piquet é pole mas não resiste à velocidade de Mansell, que termina com a melhor volta e 55s de vantagem.
Na Itália, Piquet sempre esteve à sua frente, é verdade, mas, vejam só: a equipe estreou naquela prova sua suspensão ativa. Porém, só disporia da tecnologia para um dos carros: a vantagem ficou com Piquet (mais uma vez, a Williams querendo provar que não favorecia Mansell?). Após a prova, Nigel exigiu da Williams que também pudesse utilizar a famigerada inovação.
Como resultado, Mansell foi superior a Piquet em todas as três provas seguintes (Portugal, Espanha e México) vencendo duas e abandonando no Estoril, como dito anteriormente. Mas a vantagem de Piquet era muito grande até a Itália e, como resultado, a F1 chegava em Suzuka com o brasileiro 12 pontos à frente. Para ser campeão, o inglês precisaria vencer as duas provas do oriente.
No entanto, não podemos saber “o que poderia ter sido”: nos treinos, Mansell sofre um grave acidente e não pode disputar as últimas duas etapas do ano. Piquet era campeão antes da largada em Suzuka. Em outro texto muito importante, Salu fala sobre as expectativas e a frustração gerada por aquela decisão.
Berger, com Ferrari, faz a pole e vence ambas as corridas no Pacífico. Vale lembrar que ele havia liderado quase toda a prova em Portugal (perdendo a primeira posição para Prost a três giros do fim) e andou na ponta no México até abandonar. Tivesse a Ferrari acertado a mão antes, o austríaco seria outro a dar trabalho na temporada.
Resumo do ano: Nigel Mansell venceu 6 corridas (contra 3 de Piquet, 3 de Prost, 2 de Senna e 2 de Berger), marcou 8 poles (ante 4 de Nelson, 3 de Berger e 1 de Senna) e liderou 416 voltas (Piquet apenas 154, 49 a menos do que Berger, o segundo. Prost e Senna lideraram 110 e 108, respectivamente). Nelson Piquet, porém, foi o piloto que mais subiu ao pódio no ano (11, contra 8 de Senna e 7 de Mansell e Prost).
O tri de Piquet foi, seguramente, o menos impressionante e empolgante dos seus três títulos. Aliás, não vejo 1987 nem mesmo como sendo uma grande temporada de Piquet: na verdade, é a temporada “morna”, aquela que fica em sétimo lugar de suas 13 temporadas completas. O presunto do sanduba. “Average”, no inglês.
Além dos primeiros dois troféus, 1980, 84, 86 e – para que não se diga que só falei de anos anteriores ao acidente – 1990 tiveram performances mais exuberantes e constantes de Nelson, independentemente do equipamento. 1982 e 85, por outro lado, foram temporadas muito prejudicadas pelo equipamento e, a exemplo de 1991, não permitem uma consideração maior. 1979, sua estreia, e 1988-89, os anos de Lotus, aparecem na parte debaixo da lista.
Portanto, vou além e digo que 1987 se situa entre os títulos menos empolgantes da história da F1.
Voltemos a 2014.
Vale lembrar, também, que nas primeiras 13 etapas, Hamilton só liderou o campeonato brevemente na quinta, quando ficou 3 pontos à frente de Nico. O inglês só retomaria a liderança no certame após vencer em Singapura e ver Rosberg abandonar. Na sequência, Hamilton emendaria mais 3 vitórias e Nico venceria a penúltima corrida do ano. Dessa forma, a F1 chegou à última etapa com os pilotos separados por 17 pontos.
Naquele ano, porém, a bizarra regra de pontuação dobrada e, portanto, a chance de o filho de Keke ser campeão era real, ele precisando vencer e Hamilton terminar no máximo em terceiro. Era possível, mas Nico enfrentou problemas no equipamento a partir de metade da prova.
Mesmo assim, Rosberg teve um desempenho digno de campeão: ele venceu 5 corridas (contra 11 de Hamilton), marcou 11 pole-positions (líder no ano, Hamilton com 7), liderou 483 voltas (apenas 12 a menos do que Hamilton) e foi ao pódio 15 vezes (Hamilton, 16).
Será que ele não merecia ser campeão em 2014? Se fosse em 1987, diriam que sim.
Abraços,
Marcel Pilatti
8 Comments
Sempre muito bom estes textos. Obrigado
A temporada de 1987, sob muitos aspectos, é uma esfinge. Ela admite várias interpretações, sem que seja necessário vergar os fatos. Basta encarar por ângulos diferentes.
A questão fundamental, no fim das contas, só o próprio Nelson sabe responder: quão profundas (e duradouras) foram as sequelas de Imola? E, por sua natureza, ele próprio não fala muito a respeito. Não falava à época para não desvalorizar o próprio passe, e não falou muito depois, preferindo sempre ironizar Mansell.
De minha parte, o dramático campeonato da MotoGP em 2015 mudou um pouco minha interpretação a respeito de anos nos quais um piloto consegue ser campeão sem ter sido o mais rápido. Passei a ver muito mais mérito nas conquistas do Lauda em 77 e 84, e também no título do Nelson em 87.
Sim, é verdade que ele contou decisivamente com a sorte em vários momentos, e que foi batido por Mansell em velocidade pura durante quase toda a temporada a partir de Imola. Mas é igualmente verdade que ele foi extremamente honesto consigo mesmo a respeito de suas condições, e a partir dessa diagnóstico sem floreios traçou e executou uma estratégia muito forte mirada na conquista do título mundial, que teve no desenvolvimento e no cuidado com o equipamento um traço fundamental.
Concordo que a campanha de Piquet esteve longe de ser empolgante em 1987. Mas, diante do contexto, vejo muitos méritos em sua conquista.
Interessante ponto de vista, caro Marcel. E é pra se pensar o paralelo entre 1987 e 2014.
Mas também gosto do ponto de vista que o Marcio Madeira já apresentou ao escrever sobre este campeonato: Piquet sempre se posicionou muito bem nas corridas daquele ano, e estava sempre pronto a aproveitar os erros ou falhas de equipamento dos rivais, e sempre maximizou seus resultados, flutuando muito pouco ao longo do campeonato, diferentemente de Mansell.
Concordo que não foi o melhor campeonato de Piquet, e sim acho que em 1990 ele foi muito mais lutador. Mas ganhar um campeonato depois de sofrer um acidente daqueles em Imola, e em cima de um piloto como Mansell em grande forma, não é pra qualquer um.
Abraço!
Muito obrigado pelo comentário, Rubergil.
Sim, Piquet teve muitos méritos, mas busquei enfatizar que Mansell sofreu mesmo foi com o azar, porque na pista ele bateu o piquet de forma consistente. Eu entendo que aconteceu algo semelhante a 1989: Senna perdeu o mundial pelos 4 abandonos consecutivos e a bizarrice do Estoril. Não vejo tanto mérito em Prost assim – e isso sem entrar nas polêmicas.
Além disso, é Piquet quem sempre disse que a diferença entre Mansell e ele é que “ele (Nelson) tem 3 mundiais e o inglês 3 vices”, né?
Muito reducionista esse pensamento.
Abraços!
Havia um motivo claro para Mansell sofrer mais problemas com seu carro: ele possuía um estilo de pilotagem muito bruto, penalizando o equipamento. Os japoneses da Honda não gostavam nem um pouco do modo truculento como o inglês conduzia seu carro, necessitando de ajustes adicionais para que o motor não quebrasse com tanta agressividade ao volante. E os mecânicos, claro, tinham que trabalhar muito mais para deixar o carro em ordem, diante dos desgastes que os sistemas sofriam pela condução bruta de Mansell. E Piquet, vale lembrar, sofreu sequelas do acidente em Ímola, perdendo parte de sua noção de profundidade, e perdendo parte de sua velocidade inata, o que ajudou Mansell a vencer mais corridas. Piquet soube lidar com suas limitações e usar da inteligência para vencer o campeonato, sabendo lutar pelos melhores resultados que estavam ao seu alcance, sem desperdiçar oportunidades co manobras kamikazes de pilotagem, como Mansell fez no Japão, o que o levou a se acidentar nos treinos daquela maneira e dar adeus à luta pelo título.
É verdade, Adriano, com certeza. Mas nada explica o parafuso mal apertado, alem da questao da suspensao ativa, e outros tipos de problema que mansell teve na temporada, verdadeiros infortúnios. Como eu disse, é como comparar com 1989 e dizer que Senna teve tais abandonos por ser muito arriscado e Prost cerebral.
Marcel,
Todos os pilotos que foram campeões mundiais tiveram seu mérito.
Um campeonato é feito de corridas. Para pontuar acima de tudo se faz necessário terminar as corridas … independente do regulamento …
Não se pode tirar os méritos do campeão … merecendo quem poderia ter sido e não foi.
O único campeonato que dou como excessao foi primeiro conquistado pelo versttapen
… Hamilton foi literalmente roubado … mas não tiro os mméritos holandês … até por que não foi ele que roubou…
Mas adorei o tema da coluna …
Fernando Marques
Niterói RJ
Grande Fernando, obrigado pela presença de sempre e pelos comentários sempre embasados.
De modo algum digo que Piquet teve sorte, nem tiro seus méritos. Mas acho, de verdade, que Mansell precisa de uma reavaliação. E também Senna, Prost e Berger sofreram naquele ano é teriam suplantado Piquet – como o fizeram, na verdade – no confronto direto aquele ano
Abraços