Em 1932, pela terceira vez os carros de corrida mais avançados do mundo iriam competir na então Tchecoslováquia, circuito de Masaryk.
Como era comum na época a prova era organizada por um automóvel clube, no caso o Ceskolovensky Automobilovy Klub per Moravu a Slezsky (Automóvel Clube Tchecoslováquio para Moravia e Silésia).
O Masarykuv okrºuh ficava nas imediações da cidade de Brno e era composto por curvas de todos os tipos: grampos, esses, fechadas, de raio longo, subidas com mais 7% de elevação seguidas por descidas com mais de 9 1/2% de declinação.
O trecho inicial tinha 18km de distância, montanha acima, traçado sinuoso e estreito, em direção à vila de Ostrovacice, cruzando zonas florestais que separavam 4 vilas sendo a última Zebetin, o ponto mais distante da partida. O trecho seguinte tinha 11km de extensão e era composto essencialmente por grandes retas, com pista de até 12m de largura, portanto ideal para ultrapassagens, permitindo velocidades altas quase o tempo todo, exceto por um pequeno trecho na altura da vila de Iglau, em que o piso era excessivamente ondulado.
Aliás o piso estava em pior estado do que nas edições anteriores, o que tornava esta edição ainda mais perigosa.
No total, 29.142km de extensão, com 36 curvas para a esquerda e 47 para a direita, com os carros com mais de 1,5L tendo que cobrir 495.414km em 17 voltas.
Este cenário tinha feito com que a prova ganhasse cada vez mais importância e os organizadores adicionaram atraentes prêmios em dinheiro, além de troféus e medalhas especiais, como veremos mais adiante.
Além de Louis Chiron e Achille Varzi a Bugatti inscreveu mais uma T51 2.3L 8 cilindros para Guy Bouriat.
A Maserati enviou uma 3.0L 8 cilindros para Luigi Fagioli.
A Alfa novamente encarregou a Scuderia Ferrari de representá-la, cedendo uma P3 de 2.6L 8 cilindros, monoposto. Mostrando mais uma vez o homem Nuvolari por trás da lenda, Tazio fez questão que Mario Umberto Borzacchini pilotasse o carro dominante da temporada nessa prova.
“Ele não venceu mais nada desde a Mille Miglie, então é sua vez de ter o carro mais competitivo”. As Monza 2.3L 8 cilindros seriam pilotadas pelo conde Antonio Brivio e Eugenio Siena, além de Nuvolari, que teria uma faixa branca pintada na caixa do radiador, para ser facilmente identificado.
Todos os carros desse grupo, que era completado por Bugattis independentes a cargo de Marcel Lehoux (T51) e os locais Josef St’nasty e Jan Kubicek (ambos com T35B 2.3L 8 cilindros), exibiam uma faixa branca entre o capô do motor e o cockpit, para se diferenciarem dos carros da categoria abaixo.
Ernesto Maserati se encarregaria de pilotar uma 4CM 1.1L 4 cilindros. A montadora tcheca Wikow adaptou 2 carros esporte 7 28 com motores 1.5L OHC 4 cilindros, removendo os superchargers, para os pilotos locais Adolf Szczyzycki e Jaroslav Konecnik.
Os demais eram independentes: representando as cores francesas, Pierre Veyron (Maserati 26, 1.5L 8 cilindros), Mme. Ane-Cecile Rose-Itier (Bugatti T37A 1.5L 4 cilindros). Hans Simons (Bugatti T37A), Gerhard Macher (DKW 0.8L 2 cilindros 2 tempos) e Ernst Gunther Burgaller (Bugatti T51A 1.5L 8 cilindros) as alemãs. Laszlo Hartmann (BugattiT37A) representaria a Hungria. O tcheco Bruno Sojka pilotaria uma Bugatti T37A e seu compatriota Hosfalek (“Z”) um carro Z3 com um raro motor 1.5L, 8 cilindros, 2 tempos.
Uma multidão estimada em espantosas 200 mil pessoas se dispôs ao longo do circuito.
Foram identificados grupos vindos da Hungria e da Austria.
Com as condições da época, praticamente a metade desse contingente pagou ingressos, ocupando a grande arquibancada em Zebetin. O resto se acomodou de qualquer jeito, inclusive acampando.
O tráfego nas rodovias que compunham o circuito foi oficialmente bloqueado a partir das 9:15AM.
Siena bateu nos treinos e não pode alinhar.
A ordem de largada, na disposição 2-1-2, foi: Chiron e Nuvolari, Borzacchini, Brivio e Lehoux, Bouriat, St’nasty e Kubicek, Varzi, Fagioli fechando o grupo 1. Macher e Sojka, Rose-Itier, Simons e Szczyzycki, Konecnik, Hosfalek e Veyron, Burgaller, Maserati e Hartmann.
Pouco antes da largada uma chuva leve começa a cair.
Às 10:30 os carros partem. Mario larga melhor que todos e assume a ponta, diante de Chiron e Tazio. Assim que eles desaparecem de vista os carros do Grupo 2 alinham.
A largada deles foi dada com algum atraso, devido a uma demora no alinhamento por parte de Mme. Rose-Itier.
Os big guns completaram a primeira volta na seguinte ordem: Borzacchini, Chiron, Nuvolari, Fagioli, Brivio, Achille, Bouriat, Kubicek, St’nasty. Lehoux precisou ir aos boxes mas retornou rapidamente. A chuva aumentava.
Quando os carros do Grupo 2 apareceram a ordem era Veyron, Ernesto, Burgaller, Hartmann, Sojka, Hosfalek e Mme. Rose-Itier. Ela mal tinha saído de vista do público das arquibancadas e este já escutava o rugido dos grandões.
Borzacchini continuava fazendo bom uso da superioridade da P3, colocando uns 30m de distância para Chiron e Nuvolari. Fagioli estava uns 500m atrás, com Brivio andando junto.
Os demais, ainda mais distantes.
Nessa volta Tazio deve ter achado que Mario estava virando muito abaixo do limite, porque acelerou e passou os dois colegas. Lehoux parou novamente e foi acompanhado por Bouriat.
No grupo abaixo de 1.5L Maserati assumiu a liderança seguido por Burgaller. Pierre Veyron teve que parar nos boxes com as velas sujas mas manteve o terceiro posto.
Na sequencia vinham Hartmann, Sojka, Simons, Szczyzycki, Macher, Konecnik e Hosfalek, Mme. Rosę-Itier abandonando devido a problemas de motor.
Tazio se sentia à vontade nesse circuito molhado e abriu boa vantagem sobre seus diretos perseguidores. Na turma de trás a única mudança é com Kubicek, que tem um problema insolúvel no volante e é obrigado a se retirar.
Burgaller ultrapassa Ernesto mas não consegue abrir distância. Veyron pára novamente nos boxes e perde mais uma posição, para Hartmann. Atrás dele a ordem era Simons, Szczyzycki, Macher, Konecnik e Hosfalek. Curioso é que Macher se mantinha em posição razoável mesmo parando praticamente a cada volta para trocar velas sujas de óleo, particularidade de motores 2 tempos.
Varzi abandona na quarta volta devido a um ferimento em um olho.
Tazio aumenta o ritmo, ultrapassando 4 carros do Grupo 2 nessa volta.
Borzacchini e Chiron andam juntos, Fagioli diminui a diferença e automaticamente se destaca de Brivio.
Lehoux e Bouriat, que tinha parado mais uma vez nos boxes, vêm em seguida, depois St’nasty.
Na quinta volta Nuvolari está ainda mais à frente. Lehoux e Bouriat, ambos com problemas de ignição, abandonam. Na categoria abaixo, Burgaller e Maserati forneciam emoção travando um bom duelo roda a roda, testemunhado por Veyron e Sojka um pouco mais atrás e muito distantes dos demais.
Volta seis e Borzacchini abre distância do monegasco. Mas Tazio vai ainda mais à frente.
O público vê o spray sair das rodas traseiras da Alfa vermelha sem o menor risco de atrapalhar a visão de outro concorrente a não ser os carros do grupo 2, quando ultrapassados.
Nada parece impedir outra vitória do “Diavolo Rosso”.
Ele marca 16m22.8s na sétima volta, a mais rápida até então, sob chuva, obtendo assim um dos prêmios especiais estabelecidos pelo Automóvel Clube organizador.
Sim, o prêmio era para quem fizesse especificamente essa volta mais rápido.
Logo no início da volta oito o mantuano ultrapassa os ponteiros do Grupo 2 bem em frente às arquibancadas. Show na chuva.
A novidade é que Chiron volta a ficar próximo de Mario.
Fagioli e Brivio páram para reabastecer.
Burgaller também, perdendo a posição para Ernesto.
Na sequência, Veyron, Hartmann e Sojka duelando. Hosfalek abandona.
Volta 9, Nuvolari pára para reabastecer. A parada é tão rápida e sua vantagem tão grande que volta ainda à frente de Mario e Louis. E aqui tem um acontecimento importante.
O monegasco passa sozinho em frente aos boxes, Borzacchini pára. Desce do carro, gesticula muito falando com os mecânicos. Diagnóstico: diferencial quebrado.
Não era um bom momento para a equipe Alfa porque a de Tazio apresenta um problema de ignição na curva Pisarky, perto de Brno. Ele é obrigado a parar, consegue dar um jeito, mas é ultrapassado por Chiron e Fagioli.
Na categoria menor, após pilotar por 10 voltas com problemas na embreagem que o obrigavam a andar apenas em terceira marcha, Simons abandona.
Na volta 11 Chiron pára para reabastecimento. Fagioli assume a ponta bem no momento em que Tazio finalmente chega aos boxes. Os mecânicos atacam o problema com o maior empenho e o mantuano parte novamente em perseguição ao colega italiano da Maserati com o habitual vigor, mesmo ciente de que não há mais chance de alcançar Louis.
Mas isso não irá acontecer. O magneto volta a falhar e ele retorna aos boxes para troca.
Enquanto isso acontecia o monegasco passa pela linha de chegada, completando a 12a. volta. Tazio agora estava uma volta atrás do às da Bugatti.
Não importa, ele retorna à pista como se a vitória estivesse ao alcance.
Maserati continuava liderando a categoria até 1.5L, seguido por Burgaller, com Veyron bem mais atrás. Hartmann tem que ir aos boxes devido a um problema mecânico e é ultrapassado por Sojka. Os pilotos da Wikov, Szczyzycki e Konecnik, vêm em seguida.
Na volta 13 Tazio alcança Louis na sequencia de curvas de Zebetin. Na reta os dois carros ficam emparelhados. A curva seguinte é para a direita e nela o mantuano consegue descontar a volta de desvantagem. Mas Chiron não deixa nenhum desafio para depois e o alcança mais adiante, na altura de Ostrovacice. Ele aproveita uma pequena reta para ultrapassar o italiano. O contra-ataque vem mas a pista fica mais estreita e Tazio acaba raspando uma roda em dois marcos de quilometragem da estrada, furando o pneu. Ele troca o pneu no local, era usual na época, e segue devagar até os boxes para trocar a roda, danificada.
Mais atrás, Hartmann é obrigado a desistir, apesar de sua resiliência. Veyron precisou fazer uma parada rápida para repor água no radiador. Macher era o visitante mais assíduo dos boxes, trocando velas sujas de óleo com enorme frequência, mas faz uma corrida consistente.
Fagioli começa a reduzir sua desvantagem para Chiron, seguido bem à distância por Brivio e St’nasty. A chuva aumenta mais, tornando a visibilidade e a aderência críticas.
Todos os pilotos vão aos boxes para colocar parabrisas, exceto Chiron. St’nasty perde o seu em plena velocidade e decide prosseguir assim mesmo.
Ernesto faz a aproximação da primeira curva após Zebetin e nota algo errado em seu motor. Ele pára e abre o capô para verificar e eventualmente corrigir o problema. Retoma o volante mas poucos metros após uma língua de fogo sai de baixo do capô. Ele pára novamente e, com ajuda de espectadores, consegue extinguir as chamas.
Mas Burgaller o passa e pouco depois Veyron e Sojka também.
E assim vai terminar a corrida, duas voltas depois, com 4h37m29.7s, média de 96,6 km/h.
Fagioli cruza cinco minutos atrás de Chiron, Nuvolari pouco mais de 23 minutos depois, Brivio em quarto, a 25′. St’nasty em quinto, mas como seu tempo total de 5h31m02s excedeu o máximo permitido ele foi desclassificado.
Chiron recebeu pela segunda vez o Masaryk Challenge Trophy. Com isso passou a ter a posse definitiva do troféu. Fagioli foi muito aplaudido mas o público ovacionou Tazio, impressionado com sua valentia e competência na chuva.
Burgaller, mesmo vencendo a classe menor, com duas voltas a menos que a classe principal, decidiu prosseguir para completar o regulamento dos carros grandes, marcando um tempo total de 5h09m18.2s, o que o colocaria bem próximo a Brivio. Ele também fez a volta mais rápida de sua categoria, a 11a., em 16m44.4s, velocidade média de 104,4 km/h.
Classificação final:
Louis Chiron, Luigi Fagioli, Tazio Nuvolari, Antonio Brivio (5h08m03.7s).
Ernst Gunther Burgaller, Pierre Veyron, Bruno Sjoka, Ernesto Maserati, Gerhard Macher (o carro com o menor motor do grid), Adolf Szczyzycki.
4 Comments
De fato, Fernando, para motores de 2,6L ou 2,3L, com a tecnologia da época era mesmo algo notável. Muito obrigado pelo elogio.
Os carros de Grand Prix (a “era pré-Fórmula 1”) daquele período já atingiam até 240 Km/h de velocidade máxima, o que era um feito fantástico para a época.
Marcelo C.Souza
Dias D’ávila – BA
O que só reforça a percepção de que coragem e paixão eram maiores que o instinto de sobrevivência, não é?
Chiesa,
completar uma volta sob chuva num circuito de 29 km num tempo de 16m22.8s me surpreendeu … até que os “charutinhos ” andavam bem …
que beleza a narrativa dessa prova …
show de bola
Fernando Marques
Niterói RJ