Coisas de macho

WITH A LITTLE HELP FROM OUR FRIENDS
17/09/2004
CHINA, PASSADO E PRESENTE
22/09/2004

A semana passada foi riquíssima em novidades: Trulli dançou, Villeneuve foi para a Renault, depois para a Sauber, Trulli arranjou-se e já treinou com a Toyota, a Jaguar foi para o brejo, sem contar o prosseguimento do bate-boca entre Button, a Bar e a Williams.

Assuntos que deixariam qualquer comentarista feliz mas preferi eleger outro tema para minha coluna de hoje. Muita gente pode estar cheia de discutir se Senna foi melhor do que Schumacher. Eu estou cheio deste insano fluxo de idas e voltas, de informações e desmentidos (dias atrás, os dirigentes da Jaguar/Ford não haviam prometido investimentos maciços na temporada do ano que vem? E Max Mosley não anunciou a sua renúncia?).

Além disso, acho que não é o caso de deitar especulações sobre o que será da Fórmula 1: no final, Bernie Ecclestone&Cia irão tirar da cartola mais uma decisão idiota e nos enfiar goela abaixo.

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Dias desses Rafael José Chicati, leitor do GPTotal de Maringá, manifestou sem papas na língua o que a muitos pareceu puro descaso pela vida humana. Disse o leitor:

“Eu sou contra a diminuição da velocidade na Fórmula 1. Se querem tanto correr, lutam tanto para um lugar num cockpit, é preciso arriscar a vida (…). A coisa mais linda do mundo é ver um acidente, o carro se espatifando todo, e o piloto saindo andando bravo, querendo bater no fiscal. Isso sim é coisa de homem.”.

Rafael tomou várias pancadas de leitores nos dias seguintes apenas por refletir uma opinião perfeitamente válida trinta e poucos anos atrás.

Lembrei de Rafael ao tropeçar em um texto de Denis Jenkinson publicado originalmente em 1958. Jenkinson, para quem não conhece, está para o jornalismo de automobilismo assim como Fangio estava para os pilotos: um ídolo, um mestre, um guia. Jenks, como era conhecido, notabilizou-se também por ser o co-piloto de Stirling Moss na legendária Mille Miglia de 1955, descrita como uma das mais belas corridas de todos os tempos.

No artigo que li (republicado pela revista Motor Sport de setembro) Jenks lembrava a morte num intervalo de poucos meses de 1958 de Archie Scott Brown, Luigi Musso e Peter Collins, pilotos com potencial para vencerem o Mundial de Fórmula 1 daquele ano, principalmente os dois últimos. Jenks citava com candura a causa mortis de cada um deles: Scott Brown bateu seu carro contra um poste; Musso teve seu Ferrari lançado numa vala enquanto Collins bateu seu Ferrari (de novo) contra uma árvore. Os acidentes não aconteceram em nenhuma região remota do planeta. Musso perdeu a vida durante o GP da França, em Reims, e Collins em Nurburgring.

Vocês devem imaginar que o artigo de Jenks era uma irada pregação contra a insegurança das pistas de então. Ledo engano: Jenks ponderava que uma árvore havia impedido que ele e Moss despencassem numa ribanceira na edição de 1956 das Mille Miglia enquanto uma vala havia salvado a vida (ao preservar a cabeça e pescoço) de um piloto britânico, em acidente em Le Mans.

“Talvez eu seja um fatalista”, escreveu Jenks, “mas eu sinto que uma vez que um acidente tenha começado, há pouco o que fazer para controlar as suas consequências; é uma questão de pura sorte se você sairá vivo ou não dele”.

Separados por quase 50 anos, acho que Jenks e Rafael quiseram dizer mais ou menos a mesma coisa: automobilismo é um esporte perigoso, que proporciona um prazer incomparável a quem o pratica mas que pode cobrar a sua vida. Coisa de macho, em poucas palavras, e machos não saem por aí reclamando de valas, postes e árvores à beira de pistas por onde vão passar com suas casquinhas de nozes a bem mais de 250 km/h.

Esta visão tinha a ver com a origem do automobilismo: um homem, um carro, uma estrada, o desafio de percorre-la no menor espaço de tempo possível.

Por isso, durante tanto tempo considerou-se antiesportivo mudar as condições de um determinado circuito. Há buracos, pedras, calor excessivo, valas e árvores ao longo de toda a pista? Que fiquem ali, pois ali sempre estiveram. Ninguém mandou o homem percorrer aquele trecho a toda velocidade. Se por acaso não conseguir domar a máquina, que pague o preço pela própria ousadia.

Foi por este sentimento, algo cretino algo verdadeiro e revelador das emoções que movem o automobilismo, que se perderam tantas vidas de pilotos e espectadores.

Jim Clark, bicampeão mundial e um dos melhores pilotos de todos os tempos, morreu depois que seu Lotus, por uma derrapada de todo inofensiva, mergulhou em meio às árvores da floresta de Hockenheim. Por que não havia um guard rail ali, o que seria mais do que suficiente para deter o carro desgovernado? Porque era uma curva de pouco perigo. A prevenção mesmo elementar de acidentes, naquela época, era vista como algo que diminuía a coragem dos pilotos, os tornava menos machos. Não eram apenas os organizadores que eram mercenários e não queriam gastar uns trocados com guard rails e áreas de escape. Eram os pilotos que não exigiam isso. Mesmo os capacetes integrais, quando começaram a ser utilizados, eram vistos com certo menosprezo. Aquilo simplesmente não parecia coisa de macho. Tinha sua lógica assim como a guerra tem a sua lógica, principalmente quando se quer encontrar alguma lógica nela.

Esta visão, felizmente, ficou para trás a partir dos anos 70 quando Jackie Stewart revoltou-se contra a morte de tantos colegas e iniciou um movimento pela melhora nas condições de segurança de carros e pistas, um movimento empalmado depois, justiça seja feita, por Bernie Ecclestone e pelos dirigentes da Fia. Postes, valas e árvores sumiram das pistas, assim como curvas rápidas e trechos mais desafiadores. Não se faz uma omelete…

Isso e materiais e tecnologias construtivas não tornaram o esporte totalmente blindado aos acidentes graves mas eles, ainda que aconteçam com frequência, são incomparavelmente mais inofensivos do que no passado.

Mas que ninguém se engane: o machismo pode estar bem disfarçado por adesivos de patrocinadores e eventos promocionais mas, lá no fundo, ainda permanece bem vivo como força motriz do automobilismo. Só que sem cobrar tantas vidas.

Boa semana a todos

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

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