Como comecei a correr sem ter carro nem moto. Geraldo Tite Simões |
Como comecei a correr sem ter carro nem moto
Graças aos amigos, que funcionam como memória virtual para meu velho disco rígido, lembrei de uma passagem interessante da minha vida de piloto que, passados todos estes anos, já pode ser revelada. As corridas de aluguel. Na verdade as corridas eram normais, as motos e carros é que eram alugados ou “emprestados”.
Tudo começou, em 1986, por culpa e obra do grande – literalmente – e saudoso Expedito Marazzi. Ele era uma figura tão querida quanto folclórica no mundo da velocidade. Sua escola de pilotagem teve alunos famosos como Chico Serra, e outros menos famosos como eu e meu primo Irineu, parceiro de várias loucuras. Expedito sempre inventava um jeito de criar novos pilotos, por isso o lema da escola era: “Há 20 anos forjando campeões”. O termo “forjando” tinha este delicioso duplo sentido que era reflexo de outra qualidade admirável do Marazzi: o eterno bom humor.
Uma das invenções do Expedito foi a categoria Aspirantes, destinada a pilotos amadores, estreantes, geralmente seus ex-alunos, que corriam com os carros de passeio, fazendo números com fita isolante e com poucos ajustes. Foi um sucesso e chegou a atrair – bons tempos – a atenção da mídia, com matérias até no Jornal da Tarde, de autoria da editora de esportes Denise Mirás.
Não demorou muito para a federação meter o bedelho no meio, obrigar o uso de santo-antônio e a categoria murchou. Ninguém queria furar o assoalho do carro para instalar aquela estrutura metálica. Até que alguém, provavelmente o Irineu teve a idéia: usar tubos de PVC pintados de preto fosco.
Assim resolvemos o problema da vistoria. A segunda inveção foi alugar carros para correr. Era tudo muito simples: bastava procurar a locadora, alugar um Voyage ou Passat 1.8 a álcool, trocar as rodas e pneus originais por um jogo já devidamente torneado, instalar o santo antônio de PVC e correr para Interlagos.
A fórmula deu certo por algum tempo e até consegui um quarto lugar, correndo de Santana, equipado com ar-condicionado, direção hidráulica e som, mas esta história vou deixar para depois. Nossa alegria iria acabar quando um cretino capotou um Monza alugado entre as curvas 1 e 2 do velho e bom Interlagos de 7.960 metros e quase morreu graças ao santo antônio do pau oco.
Moto de fábrica
Três anos mais tarde, já atuando como piloto de testes da Revista Duas Rodas, eu tinha acesso às motos de fábrica. A Yamaha tinha lançado a RD 350, um foguete que quase matou muita gente – eu, inclusive – e criou a emocionante Copa RD. Eu ainda não tinha feito nenhuma corrida de moto em Interlagos e estava louco de vontade de acelerar duas rodas naquela pista de verdade. Apesar de ser maníaco por motos, eu só tinha corrido de carro e de kart. Precisava correr de moto, era uma necessidade vital.
Num final de semana qualquer, eu estava em casa, de bobeira, com a Yamaha RD 350 emprestada pelo assessor de imprensa da fábrica, Marcus Zamponi, parada na garagem. Justamente naquele fim de semana era a primeira etapa do Campeonato Paulista de Motovelocidade, no meu Interlagos, a menos de dez minutos de casa. Não precisou muito impulso, mas lembro que alguém, provavelmente o Irineu, comentou “porque você não depena a moto e corre”.
Menos de meia hora depois eu já estava num box de Interlagos, arrancando as peças da Yamaha RD 350, rezando para não encontrar ninguém da Yamaha. O José Roberto Belstrein aceitou minha inscrição e fui direto para o treino de classificação. Foi um momento inesquecível. Eu não tinha referência de Interlagos e não podia tocar os joelhos no asfalto porque meu macacão (comprado do Caio Moares, então da revista Auto Esporte) não tinha as proteções. Sem nenhum acerto, sem nada, fiquei lá pra baixo do 10º lugar. Na corrida ainda consegui terminar em quarto.
Pronto, estava com o vírus no sangue. Correr de moto foi a coisa mais emocionante que tinha experimentado depois de cair do telhado quando tinha seis anos de idade. Quinze dias depois eu já tinha inventado uma desculpa para pegar outra Yamaha RD 350 e me inscrever para a segunda etapa. Era sempre a mesma rotina: chegava em Interlagos sábado de manhã, desmontava a moto, treinava, corria no domingo, montava tudo de novo e devolvia a RD na segunda-feira como se nada tivesse acontecido. Outro quarto lugar me animou e acabei comprando uma Yamaha RD 350 antes que o Marcus Zamponi – com seu corpo peso pesado – descobrisse tudo e me esmagasse.
Fiz uma RD de corrida para a terceira etapa e consegui a pole-position!!! Motor feito pelo Renato Gaeta, um rojão. Só que na corrida fiquei novamente em quarto lugar porque eu ainda não sabia que um pneu com 3.500 km rodados não servia para correr 45 minutos.
Muitos anos mais tarde, já no século 21, conversando com o Wilson Yasuda, da Honda, ele mencionou o fato de eu pegar as motos de fábrica e correr em Interlagos. Na hora fiquei estarrecido: “Como foi que você descobriu isso???”. Neste dia, 17 anos depois desta minha aprontação, vim a descobrir que tanto o Zampa quanto todas as fábricas sabiam de tudo o tempo todo. Mas em respeito à minha posição de jornalista especializado, fingiam que não viam nada…