Geraldo Tite Simões |
Regime. Esta palavra acompanha o ser humano desde que Adão virou-se para Eva e perguntou “o que é este pneuzinho na sua cintura?”. E olhe que ela vivia à base de frutas, mais especificamente maçã. Admito que, na minha condição de magro renitente, nunca me preocupei com a minha forma de cotonete. Eu era tão magro na minha infância que minha avó só me levava à praia se eu prometesse não tirar a camiseta. Era uma avó portuguesa.
Mas eu tive de me submeter a esta manifestação de censura gastronômica por três longos e intermináveis anos, de 1997 a 99, época em que decidi competir no campeonato brasileiro de motovelocidade, numa 125 especial que pesava apenas 65 kg. A moto, porque eu pesava 69 quilos, para os exatos 1,69m de altura. Corpo de modelo, mas pesado demais para correr contra jovens de 55 kg, que poderiam servir de manequins em qualquer agência funerária.
Fui parar na academia do competente e boa gente José Rubens D’Elia, especializado em manter pilotos de corrida com apenas o esqueleto e algum pedaço de pele por cima. O próprio Zé Rubens parece um ponto de exclamação! Eu teria de emagracer oito quilos para ficar nas dimensões ideais de um piloto de moto nascido na Etiópia.
Com ajuda de uma nutricionista – outra magérrima – comecei o tratamento. Entrava na academia às oito da manhã e saía às 10:30, depois de fazer vários exercícios aeróbicos e com peso. Para ficar leve, uma pessoa tem de fazer exercícios com baixo peso, mas muitas repetições. Muitas mesmo, coisa de 100, 200 vezes, com pesinhos de 3kg. Fora o problema de perder a concentração e esquecer se estava na 26a. repetição ou na 98a e ter de começar tudo outra vez, esta parte eu tirava de letra. Duro mesmo era o regime.
Segundo a nutricionista, para alguém emagrecer é preciso comer. Sim, comer pouco e várias vezes por dia. A parte do “várias vezes por dia” até me agradava, mas o “pouco” me dá uma horrível sensação de vazio interior até hoje, quando lembro dos alimentos e das quantidades. Nada mais de ovo frito, pele crocante de frango assado, lasanha da minha mãe, churrasco na casa da tia, bacon, torresmo e sacos gigantes de pipoca com Coca-Cola no Cinemark. Tudo isso pertenceria ao passado. Minha dieta era à base de pepinos fatiados, broto de bardana (uma enigmática raiz descoberta por acaso por um tatu esfomeado e incluída na culinária humana), pães integrais com queijo branco (sem goiabada cascão), peixes grelhados com uma solitária alcaparra, mas sem manteiga e aberrações como as tais barras energéticas, que proporcionam tanta energia para uma pessoa quanto uma pilha alcalina para um Boeing 727.
Fiquei tão especializado em regime que minhas amigas gordinhas vinham me consultar para saber o que estava tomando para ter um aspecto assim tão, digamos, moribundo. Virei consultor de mulheres em busca da aneroxia e algumas delas até obtiveram sucesso. Poderia faturar uma grana com isso.
Foi uma fase difícil, mais ainda porque coincidiu com várias viagens ao exterior para testes de motos e pneus. Imaginem o que é passar em frente a restaurantes italianos sem mergulhar numa polpetta boiando em molho de tomate. Ou então fingir que não viu a placa Hoy, paella valenciana, num restaurante em Málaga, na Espanha. Ver joelhos de porcos crocantes na Alemanha, passando por baixo do meu nariz sem pular no garçon, dar uma gravata e roubar a bandeja. Nos Estados Unidos foi mais fácil porque a comida daquele país deveria fazer parte do acordo de paz da ONU, de tão agressiva que é para nossos corações.
Enquanto eu desfilava diante de todas estas coisas, era obrigado a me refestelar com uma salada de agrião, quase sem tempero, ou um insosso peito de frango grelhado. A humanidade com certeza inventou o grelhado como forma de se vingar de algum deus mitológico, que exigia sacrifícios humanos. Imagino a cena: os pais tendo de entregar a filha rechonchuda e tenra como um galeto al primo canto mas sacaneando: “Vamos grelhá-la, assim este deus nunca mais vai querer comer gente”.
A palavra regime até então se resumia a um estilo de fazer política: regime autoritário, regime militar, regime comunista, regime social-democrata-com-tendências-esotéricas,etc. Tive de conviver com esta ditadura e consegui emagracer não apenas os oito quilos propostos, mas minha porcentagem de gordura no corpo chegou a miseráveis 11%. Se minha avó fosse viva exigiria retratação pública, alegando que minha magreza não era conseqüência da família, e que o bacalhau estava servido, tendo alheiras como entrada. Todo mundo comia em restaurantes por quilo, eu comia em restaurantes por miligramas. Nos coquetéis, eu jogava fora o canapé e comia só a salsinha. Brindava com água mineral sem gás. Se servissem ossobucco no jantar eu lambia o osso e deixava um bucco no estômago.
Por isso eu não chorei quando perdi o campeonato brasileiro em 1999 por apenas um ponto, na última etapa. Apesar da tristeza aparente, por ser minha última corrida de moto (eu já tinha dicidido parar meses antes da final), sabia que poderia voltar para as picanhas fatiadas, frangos assados, pizzas, canelones, calzones, doce de leite, goiabada cascão, ambrosia, brigadeiro, caipirinha e uísque sem 90% de água.
Agora, com imprensados 76 kg dentro das calças, posso voltar à vida normal. E, se der vontade voltar a correr, sempre vai existir a categoria F-Truck, último reduto dos gordinhos velozes. Não é, Djalma Fogaça – ou melhor, Fogazza?