Dois Sóis

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O dia em que duas das figuras mais importantes da história disputaram um GP juntos.

Deixa eu te fazer uma pergunta*: se amanhã, quando você abrir a janela bem cedo, olhar para fora e vir não um, mas dois sóis brilhando no céu, fará alguma diferença saber se vai chover ou não?

Para além de opiniões ou preferências pessoais, os nomes de Tazio Nuvolari e Juan Manuel Fangio estão, e estarão sempre, entre os mais elevados na história do esporte a motor.

Figuras legendárias, às quais se atribuem feitos épicos e por vezes quase inacreditáveis, Fangio e Nuvolari cometeram apenas dois pecados graves contra os amantes do automobilismo. O primeiro, foi terem deslumbrado o mundo em épocas nas quais os registros de imagem eram absolutamente precários. O segundo foi não terem sido contemporâneos.

No entanto, por uma dessas sutilezas (ou ironias) do destino, houve um dia – um único dia – no qual os dois disputaram um mesmo Grand Prix.

Em 1948 Tazio Nuvolari era uma lenda do esporte a motor, por tudo o que havia feito nas pistas do mundo antes da II Grande Guerra. Falo de coisas inacreditáveis como vencer o Grand Prix de motos em Monza tendo vários ossos do corpo engessados (já na posição de pilotagem) e amarrado à moto, a ponto dele não ter como se manter sobre ela caso fosse obrigado a parar. Ou como quando obteve a maior vitória da história ao derrotar toda a invencível armada alemã de Mercedes e Auto-Unions dentro de Nürburgring ao volante de uma Alfa P3 sensivelmente inferior. Ou ainda vencer as Mille Miglia de 1930 guiando boa parte da noite com os faróis apagados, simplesmente para que seu eterno rival Achille Varzi, que ia à sua frente, não notasse sua aproximação…

Coube também a Nuvolari a vitória no último dos Grand Prix disputados antes da guerra, em Belgrado, 1939, ao volante do monstruoso e magnífico Auto-Union D. No entanto, durante o conflito mundial a saúde do mito deteriorou-se rapidamente, provavelmente em conseqüência dos acidentes sofridos e dos gases tóxicos respirados em tantos anos de corridas. Quando as corridas recomeçaram, o velho Tazio já não tinha o mesmo vigor, ainda que a antiga bravura permanecesse intacta.

Fangio, por sua vez, era já uma estrela a nível nacional, que começava a ganhar notoriedade internacional graças ao oportunismo político de Juan Domingo Perón, que a partir de 1947 começou a promover diversas corridas em solo argentino – a chamada “Temporada” – durante o inverno europeu. Com as despesas com transporte e os melhores hotéis pagos pelo governo, além de altos prêmios por largada (para cada equipe que disponibilizasse ao menos um carro para um piloto local), a Argentina conseguiu atrair a atenção dos melhores nomes do velho continente.

Graças a ótimos resultados obtidos ao volante de um improvisado Volpi-Chevrolet, aos bons contatos feitos com gente como Amédée Gordini e Achille Varzi, e em igual medida ao apoio do próprio governo argentino, Fangio encontrou o ambiente perfeito para lançar-se ao centro do automobilismo mundial, na Europa.

Em 1948, uma expedição da nata automobilística argentina foi organizada, passando por EUA e Europa. A princípio seria apenas uma viagem de reconhecimento e promoção, mas a morte de Achille Varzi nos treinos para o GP da Suíça, e o grave acidente de Maurice Trintignant na preliminar do mesmo GP, abriram algumas novas vagas nos times europeus. Gordini ficou sabendo da presença de Fangio na Europa, e finalmente o convidou a defender sua equipe no tradicional GP francês, disputado em Reims. Fangio sabia que o pequeno Simca-Gordini não teria a menor chance na prova principal, mas ainda assim aceitou prontamente o convite.

Se em 1946 Tazio Nuvolari ainda teve fôlego para obter algumas vitórias e protagonizar momentos como na Copa Brezzi, em Turim, quando perdeu o volante de seu carro e continuou guiando com uma mão diretamente na coluna de direção (enquanto a outra segurava o próprio volante), a verdade é que em 1948 seu estado já era muito mais frágil.

No dia 13 de junho, por exemplo, foi organizada uma prova de F2 em sua homenagem, na sua terra natal de Mantova, e o velho Tazio não suportou pilotar por mais do que dez voltas. Registros dão conta, inclusive, de que em diversos momentos o velho mito guiava com uma das mãos, enquanto a outra mantinha um lenço ensanguentado junto à boca.

Ainda assim, Nuvolari foi convidado a dividir com Luigi Villoresi a condução de uma novíssima Maserati 4 CLT/48 no XXXV Grand Prix de l’Automobile Club de France, naquela que viria a ser sua última participação num Grand Prix oficial.

Naquele dia 18 de julho de 1948, dois sóis brilharam sobre a pista de Reims.

Procure na internet, e você encontrará poucos registros sobre essa corrida, e talvez nenhuma citação chamando atenção para o fato de esta ter sido a única prova a reunir Fangio e Nuvolari na condição de pilotos e concorrentes.

Conforme os poucos relatos, a corrida parece não ter sido muito interessante. Venceu-a Jean-Pierre Wimille, que era provavelmente o melhor piloto do mundo em atividade naquele período. Um homem que, se não tinha o brilho e a genialidade dos protagonistas deste texto, era provavelmente tão eficiente e rápido quanto ambos, e que antes de perder a vida precocemente, diversas vezes fez por merecer um lugar de maior destaque na história do esporte a motor. Nos treinos para aquele GP, por exemplo, ele foi nove (!) segundos mais rápido que seu companheiro de equipe, que largou em segundo. Seu nome? Um tal de Alberto Ascari…

É bem verdade que entre esses dois sóis, um já estava se apagando, e o outro ainda não havia despontado definitivamente. Por razões diferentes nenhum dos dois pilotos teve destaque na corrida, e Fangio nem sequer consta no resultado oficial, por ter abandonado após 41 voltas quando o motor de seu carro não suportou mais andar no vácuo de carros mais fortes. Tazio, enquanto isso, terminou apenas na 7ª colocação, cinco voltas atrás das imbatíveis Alfa Romeo.

Mas, como eu perguntei no início desse texto, que diferença isso faz? Afinal, eram dois sóis brilhando juntos! O que mais seria necessário para tornar aquele um dia especial na história do automobilismo?

Abraços!

Márcio Madeira

*Coluna publicada originalmente em 16 de julho de 2009

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

4 Comments

  1. Julio Cesar Gaudioso disse:

    O Carro desta matéria (Maseratti 4CLT de Villoresi) está no Museu do Automobilismo Brasileiro. Confira com o Paulo Trevisan.
    Abraço
    Julio Cesar gaudioso

  2. Boa pedida, Fernando.
    Temos material publicado sobre o Chico, mas nunca é demais falar sobre o homem.
    Abraço e um ótimo 2013.

  3. Fernando Marques disse:

    Sugiro aos amigos do GEPETO uma coluna dedicada ao Chico Landi, maior nome tupiniquim do nosso automobilismo até surgir o Emerson Fittipaldi ..

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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