“Escola de pilantragem” Como aprender a burlar regulamentos desde o kart

EMOÇÕES x “EMOÇÕES”
30/06/2003
O EMOCIONANTE GP DA FRANÇA… DE 1979
06/07/2003

Geraldo Tite Simões

Atenção leitores sensíveis e cardíacos. Vou tratar de um assunto espinhoso e polêmico: trambicagem! Isso mesmo, malandragem, mutreta, pilantragem e outros sinônimos. Como este assunto é realmente delicado, vou me limitar a citar os casos ocorridos nesta minha longa estrada da vida competitiva, usando alguns exemplos – obviamente sem dar nome aos bois, porque não tenho provas materiais e também porque todos os bois que conheci na vida chamavam Malhado ou Tinhoso, esgotando, assim, as possibilidades de nomeação.

Lá no ano santo de 1977 ingressei no meio kartístico graças à influência nefasta do amigo e vizinho Maurizio Sala, como já citei na coluna “Três anos com Ayrton”. E a malandragem começou aí, porque ele achava – na sua inocência – que eu só freqüentava a casa dele para delirar com os karts, mas nunca percebeu a forma como eu olhava para a irmã dele. Tudo bem, não virei cunhado do Maurizinho, nem fui campeão inglês de F-Ford, nem corri no Japão, como ele fez brilhantemente, aliás merecedor de um perfil qualquer dia desses.

Logo na minha primeira corrida percebi que eu tinha jeito pra coisa. Terceiro tempo na classificação, segundo lugar na primeira bateria e terceiro na segunda, ganhando um troféu de terceiro lugar logo na estréia. Lembro que, naquela época, largavam 30 karts. O que me grilou foi ver dois “coroas” andando na minha frente, de forma até humilhante. Eu via os caras entrando e saindo das curvas e não notava nada de genial neles, como qualquer um daquela época poderia ver em outros vencedores como Ayrton Senna, Chico Serra, Waltinho Travaglini, Mário Sérgio, além do próprio Maurizio Sala.

Fiquei grilado e quanto mais eu treinava, mais eles continuavam vencendo. Aquilo me perseguiu a temporada inteira: um piloto, pesado, já com mais de 25 anos, alto, sem a menor genialidade, ganhando corridas sem parar contra moleques de 16 anos, magros, que treinavam quase três vezes por semana. Não falo só por mim, porque meus outros adversários também estranhavam aquela situação, mas não podíamos fazer nada, porque os karts passavam pela vistoria.

No ano seguinte, acho que em 1978, esse piloto mudou para uma categoria com preparação livre e tomou uma surra memorável, desistindo de correr no meio da temporada. Eu continuei na terceira categoria, com preparação limitada, achando que iria nadar de braçada sem os “coroas suspeitos”. Ledo engano. Chegou um mauricinho endinheirado e começou a ganhar tudo. Meu saco enchendo ao ver que este cara também não era genial e já começava a achar que eu é que era o banana. Minha auto-estima estava indo poço abaixo quando aconteceu um acidente no warm-up que mudaria minha opinião. Decolei no final da reta, usando outro kart como rampa e destruí toda a frente do meu kart.

Meia hora antes da largada esse mauricinho fez uma caridade e me emprestou duas mangas de eixo. Montamos tudo, alinhamos e fui pra largada. O kart parecia um autorama: não saía de frente, era rápido nas curvas, tinha um aproach muito mais certeiro. Terminei em segundo lugar e prometi devolver as mangas de eixo durante a semana. Já com uma tremenda pulga atrás da orelha, comprei as mangas novas e comparei com as emprestadas. Veredicto: as mangas do mauricinho tinham medidas diferentes. Fiquei pê da vida e fui voando tirar satisfações com o salafrário. Na maior calma do mundo ele explicou que tinha mandado fazer numa metalúrgica. E mais: o cara ainda olhou pra mim com ar de inocente e disse que todo mundo estava aumentando a capacidade cúbica do motor (cilindrada), ganhando alguns centímetros cúbicos desde a temporada anterior, citando como exemplo os dois coroas, donos de uma oficina!!!

Não acabou. Havia um torneio realizado no interior de São Paulo, chamado Lenine Severino, que foi um jornalista da Folha de São Paulo, acho eu. Por insistência de um amigo, fui correr uma etapa em Bauru, achando que seria barbada. Foi péssimo e só consegui um quinto lugar, depois de suar quase todo líquido do meu corpo. Saí de Bauru humilhado e achando aqueles pilotos excelentes, mas não entendia porque não corriam na capital.

Descobriria o porquê meses depois, quando o vencedor daquela corrida de Bauru disputou uma etapa do Campeonato Paulista e terminou lá atrás, uma volta atrás de mim.

Quando perguntei que cazzo tinha acontecido, ele admitiu “Pô, aqui em São Paulo vocês abrem os motores”. Ou seja, fiz papel de pateta, correndo em Bauru com motor careta contra os rojões preparados. Finalmente, na minha despedida do kartismo, vi um piloto trocar de motor entre uma bateria e outra e não ser desclassificado. Pior, roubou o meu segundo lugar na prova.

Estas são historinhas inocentes que servem para ilustrar um dos cancros do automobilismo: a violação do regulamento. Aprendi desde cedo que só os otários correm dentro do regulamento. Já que Nelson Piquet adora espezinhar todo mundo alegando que Senna era um bundão, convido os preparadores e amigos de preparadores a contar as mutretas que Nelson aprontava desde os tempos da Fórmula Super Vê, que seriam usadas depois da F3 inglesa e até na F1, com ajuda de Gordon Murray (eles foram até desclassificados não sei onde nem quando, coisas pro Panda descobrir). Recentemente vi uma foto na Internet de um F3 com as rodas carenadas, que Nelsinho Piquet usou para burlar o regulamento e treinar em Brasília antes de entrar para a F3. Ou seja, o pai está ensinando as mutretagens ao filho.

Vocês nunca se perguntaram porque alguns pilotos surgem no kart como grande promessa e, quando chegam no automobilismo vivem numa espécie de limbo? O kart é uma escola de maus comportamentos em vários aspectos, desde a pilotagem na base da porrada, até preparações escondidas. Tem vários exemplos, mas não vou dar nomes porque sei que esse assunto é um tabu na imprensa. Mas sei o que vi com meus próprios olhos, como pilotos ganhando tudo no kart e desaparecendo completa e misteriosamente do automobilismo.

E, como disse em outra coluna, às vezes o destino reserva surpresas que fazem muito bem à auto-estima. Quando surgiu a febre do kart indoor em São Paulo (chegaram a existir 66 pistas só na capital), fui convidado para várias inaugurações, na minha condição de jornalista. Em uma delas encontrei com aquele mesmo mauricinho que ganhava todas as corridas da minha categoria. Cheguei a pensar que iria levar um sabugo do cara, mas ele ficava mais de um segundo por volta atrás de mim, numa pista de 600 metros. Depois de ganhar a corrida fui brincar com ele: “E aí, esqueceu como se pilota?”. E o cara de pau respondeu: “Ah, aqui é diferente, não dá pra mexer nos karts”.

GPTotal
GPTotal
A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *