Espionagens, traições e teorias da conspiração – final

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Na primeira parte deste texto, paramos no misterioso desaparecimento do piloto Ernst Degner. O piloto da Alemanha Oriental sumiu logo após a largada do GP da Suécia de Motovelocidade de 1961, categoria 125cc. Teria o líder do campeonato tido um acidente? Teria sido fatal? Algum problema em sua moto MZ, criação do genial Walter Kaaden?

Após algum tempo desaparecido, membros da equipe MZ foram vasculhar o circuito em busca de seu piloto. Encontraram apenas a moto, com algumas peças do motor faltando.

Enquanto sua equipe tentava entender o que havia acontecido, Degner já estava muitos quilômetros distante dali. Em vez de lutar pelo título mundial, ele estava colocando em prática um chocante e complexo plano de fuga rumo a uma deserção para o mundo ocidental. 

Em meio à efervescência da lute pelo título, o que ninguém sabia era que Degner, já consagrado como herói na Alemanha Oriental, estava incomodado com algumas coisas ao seu redor. Quando Degner, considerado um dos favoritos ao título de 1961, chegava aos circuitos pelo mundo, estava sempre no banco de uma velha van da equipe, enquanto seus rivais utilizavam carros de luxo e vestiam-se impecavelmente.

Até mesmo os equipamentos de corrida dos seus adversários eram bem mais modernos do que as rústicas vestimentas de Degner. O alemão começou a se interessar por Jazz, algo que os comunistas alemães detestavam, pois era uma música estritamente americana e capitalista.

Mesmo casado e com seu segundo filho prestes a nascer, Degner já pensara, e muito, em usufruir dos prazeres do capitalismo. Os únicos que sabiam dessa tendência do piloto eram os agentes da temida Stasi. A polícia política da Alemanha Oriental começou a vigiar de perto os passos de Degner, para assegurar que ele sempre voltasse para casa quando viajava pelo mundo, enquanto a família do piloto ficava presa em casa.

Enquanto disputava o título com Tom Phillips, Degner arquitetou formas de fugir para o Ocidente. O alemão chegou a conversar com o americano Paul Petry, que promovia fugas para Berlin Ocidental. No início dos anos 1960, a Alemanha Oriental sofria uma sangria impressionante de pessoas fugindo para o Ocidente, com seus melhores cidadãos, como cientistas, médicos e engenheiros, indo para a Alemanha Ocidental pedir asilo político.

Em seu primeiro plano, Ernst Degner correria em Ulster, na Irlanda do Norte, e pediria asilo político, enquanto sua família fugiria com Petry. Mas exatamente no dia marcado para a fuga, foi construído o Muro de Berlin, fazendo a travessia de Berlin Oriental para Ocidental tornar-se mortal.

Degner teve que pensar em outra forma. E o GP da Suécia acabou por ser perfeito. Nem mesmo a Stasi acreditaria que ele trocaria um título mundial por sua liberdade. Mas ele o fez, rigorosamente ao mesmo tempo em que sua família conseguia fugir do lado oriental, pedindo imediato asilo político.

O pânico se instalou na MZ e em toda Alemanha Oriental quando perceberam o que estava acontecendo. Nessa altura, Degner fazia uma curta viagem para a Dinamarca e depois para a Alemanha Ocidental, onde se encontraria com sua família e também pediria asilo. Em seguida, Degner faria uma viagem bem mais longa. Mais exatamente para Hamamatsu, Japão, sede da Suzuki.

Seguindo os passos da Honda, a Suzuki tentava entrar no Mundial de Motovelocidade utilizando motores dois tempos, mas a montadora estava falhando fragorosamente. As motos, além de muito frágeis, eram extremamente lentas, tornando a Suzuki a piada do paddock. Aquilo encheu de brios o presidente da empresa Shunzo Suzuki, que investiria o necessário para ter uma moto competitiva.

Para isso, Suzuki pensou que o modo mais fácil era obter a fórmula secreta do motor de Kaaden. Durante o ano de 1961, a Suzuki sempre se hospedava no mesmo hotel da MZ e tentava contatos com Ernest Degner. Um acordo secreto foi acertado entre Degner e a Suzuki, onde o alemão ganharia 10.000 libras para vender todos os segredos da MZ, além de correr para eles.

Enquanto cuidava para que sua família saísse da Alemanha Oriental em segurança, Degner combinava com os japoneses sua própria fuga. O circuito sueco de Kristianstad tinha seu estacionamento do outro lado dos boxes, onde não poderiam ser vistos pela MZ. Degner parou sua moto, desmontou algumas peças vitais e entrou num carro onde era esperado por dois japoneses.

Foi um escândalo! O regime comunista na Alemanha Oriental exigiu que Degner fosse banido do esporte, mas a Federação Internacional de Motociclismo indeferiu o pedido.

O GP da Suécia acabou com o rival de Degner, Tom Phillis terminando apenas em sexto com sua Honda. Isso significava que Degner ainda tinha chances de ser campeão na última etapa, na Argentina, se conseguisse disputá-lo por outra equipe.

No entanto, Degner falhou em participar, pois a moto que ele conseguiu na Alemanha Ocidental, uma EMC de fabricação inglesa, nunca chegou na Argentina, por motivos obscuros de documentação. Phillis venceu na Argentina e se sagrou campeão, dando a Honda o primeiro título no Mundial de Motovelocidade.

Mesmo perdendo o título, Degner estava com vida nova. Passou seis meses trabalhando na fábrica da Suzuki, construindo uma nova moto baseada na MZ. Em 1962, estrearia uma nova categoria no Mundial, as 50cc. Com grande facilidade, a bordo de uma moto inteiramente baseada na MZ, Degner se sagrou Campeão Mundial, derrotando seu antigo companheiro de equipe, Hans-Georg Anscheidt, que corria pela Kreidler.

Porém, a vida de Degner daria uma enorme guinada no ano seguinte. Testando uma moto 250cc em Suzuka, Degner perdeu controle e, na queda, perdeu os sentidos. Para piorar, o tanque de combustível rompeu, iniciando um grande incêndio. O companheiro de equipe de Degner, o neozelandês Hugh Anderson, parou sua moto e puxou Degner das chamas, mas o alemão estava seriamente queimado em todo o corpo, incluindo o rosto.

Ernst precisou de mais de 50 enxertos de pele, além de ficar dependente de analgésicos para aliviar sua dor. Após passar o ano de 1964 se recuperando de ferimentos, Degner voltou nas duas últimas corridas do ano, conseguindo uma vitória em Suzuka, um ano depois do seu acidente.

Degner, porém, sofre novo acidente sério tempos depois. Desta vez, em Monza, durante o Grande Prêmio das Nações de 1965, e quebra a perna. O alemão faria sua última corrida no Mundial em 1966.

Em sua homenagem, as duas curvas à direita em Suzuka, antes da ponte que marca o cruzamento da pista, passaram a se chamar Curvas Degner, pois foi ali onde o alemão sofreu o seu acidente.

Após o incidente da deserção de Degner, a equipe MZ entrou em declínio e nunca mais conseguiria um campeonato. Walter Kaaden foi interrogado várias vezes pela Stasi, por suspeita de ter facilitado a fuga de Degner, mas nada foi provado contra ele. Kaaden morreria em 1996, aos 77 anos, sem nunca ter perdoado completamente Degner. Mas o cientista alemão se orgulharia que seus motores, mesmo roubados, tenham servido para que a Suzuki e depois Yamaha e Honda, dominassem o Mundial com seus motores dois tempos.

A revolução dos motores 2 Tempos de Kaaden durou por décadas, até o regulamento da MotoGP banir esse tipo de propulsor em favor dos de 4 Tempos ao fim de 2002.

Após a aposentadoria, pouco se soube de Degner, que tornou-se uma figura reclusa. Para fugir do frio (e das dores), ele teria voltado para o sul da Europa, onde teria prestado serviço à Suzuki. Degner foi encontrado morto em seu apartamento em Tenerife, na Espanha, em 1983.

Estudos mostram que muitos dos que fugiram da Alemanha Oriental não se adaptaram totalmente ao mundo capitalista de livre mercado e livre iniciativa, e entraram em depressão – Degner havia se separado de sua esposa ainda antes de se aposentar. Overdose acidental ou suicídio foram as possíveis causas da morte do alemão, já que ele era dependente de remédios contra dor.

Mas uma causa ainda mais sinistra foi também levantada. Quando Degner voltou ao Mundial de Motovelocidade em 1962, contratou um guarda-costas para protegê-lo da Stasi, pois ele conhecia histórias de assassinatos contra fugitivos famosos realizados pela polícia política da Alemanha Oriental. Como pouco se sabe da morte de Degner, especulou-se que a Stasi teria finalmente se vingado do desertor e o teria envenenado.

Assim como também foi sinistra a morte de Nigel Stepney. Após ser defenestrado da Ferrari e da F1, o pivô do Spygate falou em tom ameaçador que publicaria um livro onde contaria todos os podres que acompanhou em sua carreira, sobretudo o episódio da espionagem de 2007. Porém, o inglês morreria num acidente de trânsito em 2014, em circunstâncias não muito esclarecidas.

Para quem gosta de teorias da conspiração, Ernst Degner e Nigel Stepney são um prato cheio.

Esse foi meu primeiro ano como colunista do GPTotal. Conheci o site ainda em seu início, em 2001 e escrevia sempre que podia nos animados fóruns do site. O GPTo me inspirou em 2007 a criar o blog JCSpeedway, pelo qual eu pude conhecer os amigos Lucas Giavoni, Marcel Pilatti, Lucas Carioli, Flaviz Guerra e Márcio Madeira, além do nosso guru Edu Correa.

Queria agradecer aos comentários que foram postados, dos novos amigos que conheci, além da honra que é escrever ao lado de tantas pessoas competentes, neste que é pra mim maior e melhor site sobre história da F1 e do esporte a motor.

Boas festas a todos!

JC Viana

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

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