“Deve ser a água que eles bebem”, disse Jackie Stewart, em tentativa de explicação para a surpreendente alta competitividade de Emerson, Pace e outros pilotos brasileiros que foram competir na Europa durante a década de 70.
Talvez a água tivesse um nome: Autódromo de Interlagos.
Vamos ver se essa tese tem fundamento? Vamos voltar bem ao início.
Conforme um jornal de 1935, havia a intenção de construir um autódromo em São Paulo, mas em outra área, então chamada Cidade Industrial do Jaguaré.
Mas não foi assim. Para entender, precisamos conhecer a história do criador de Interlagos, Louis Romero Sanson. Cidadão britânico, nasceu em Trinidad Tobago mas viveu na Venezuela, onde se formou em engenharia. Vindo para o Brasil, trabalhou na construção da usina hidrelétrica Henry Borden, em Cubatão.
Em 1925 criou a Empresa Imobiliária de Construção Civil Auto-Estradas S. A. (AESA), partindo de uma sociedade com seu cunhado Donald Derrom. Percebendo que a aviação era um ramo que só tenderia a crescer, comprou uma área na então periferia de São Paulo, onde só tinha mato, mas com regime de vento favorável para fazer um campo de aviação. Ficava no lado oposto da cidade onde ainda está o Campo de Marte.
A pista ficou pronta em 20 dias. De terra batida, tinha 800m de comprimento por 30m de largura e foi emprestada ao governo de São Paulo para que a Vasp, a linha aérea do governo estadual, pudesse receber seus aviões Junker. Hoje é conhecido como Aeroporto de Congonhas. Em 1938, já estava funcionando a plena capacidade.
Mas o projeto final de Sanson previa pista de três mil metros, hangares abaixo do nível da pista, deixando somente a torre de controle acima. Também previa a proibição de construção de prédios nas imediações, por óbvia segurança. Está claro que era um homem com visão ímpar de futuro?
A área entre as represas Billings e Guarapiranga pareceu a ele um ótimo motivo para dar a São Paulo atrações parecidas com as de uma cidade praiana.
Junto com o renomado urbanista francês Alfred Agache, idealizou um resort entre as represas Billings e Guarapiranga. Agache achou a região parecida com Interlaken, na Suíça.
O projeto evoluiu para um projeto de bairro, que se chamou Cidade Satélite Balnearia de Interlagos, visando as classes mais ricas. Iria conter uma praia, com areia trazida de Santos, dois hotéis, igreja, escola, playground, um ginásio esportivo e… um autódromo. Sanson observava o fascínio que as corridas de carro geravam e desde a década de 20 tinha a idéia de construir um autódromo.
Essa região ficava no então município de Santo Amaro, que foi incorporado à capital. Para ligar o aeroporto a essa região, a AESA construiu uma avenida chamada Washington Luís e implantou uma linha de ônibus.
Com a crise de 29 nos Estados Unidos e Revolução de 32 em São Paulo o dinheiro sumiu e o projeto foi adiado até que, em 36, as corridas de automóvel estavam em ascensão no Brasil.
Nesse ano, o Rio de Janeiro iria sediar a quarta edição do seu GP no circuito da Gávea, apelidado Trampolim do Diabo. O pessoal de São Paulo resolveu se mexer, para aproveitar a vinda de dez competidores estrangeiros, e em 45 dias organizaram a prova, com o apoio do Automóvel Club do Brasil. Escolheram as ruas do Jardim América, um bairro elegante e relativamente distante. O circuito teria 4.250m e sessenta voltas. Todos os pilotos aprovaram a pista com louvor e elogiaram a organização.
Não havia grande preocupação com segurança na época, tanto para os pilotos quanto para o público, mesmo nos circuitos europeus. Mesmo assim durante toda a semana os organizadores alertaram ao público que tinha comprado ingressos para usar de prudência e disciplina: “Não atravessar a pista; Não forçar as cordas da Avenida Brasil; Não estacionar nos canteiros centrais; Não auxiliar os concorrentes; Acatar as ordens da polícia e da direção de prova.”
Uma arquibancada com 1760 lugares foi montada na Av. Brasil. Para os competidores foram instalados 20 boxes. Para proteger o público sem ingresso numerado foram colocados fardos de alfafa junto às guias.
Os favoritos eram os pilotos da Scuderia Ferrari, Carlo Pintacuda e Attilio Marinoni, conduzindo duas Alfas de 2,9L entregando 250 HP. Manuel de Teffé, piloto brasileiro vencedor do GP da Gávea de 1933, guiaria uma Alfa Monza, com 100 HP a menos. Uma participante-estrela era a francesa Mariette Hélène Delange, nome artístico Hellé Nice. Ex-modelo, ex-bailarina, tornou-se famosa como dançarina de cabaré. Filha de um carteiro de cidade do interior, nessa época era uma mulher jovem e rica, por seus próprios méritos. Um acidente de esqui feriu seu tornozelo encerrando a carreira nos palcos. Amiga de diversos membros da alta sociedade européia, interessou-se por corridas de carros. Parece que namorou Jean Bugatti, entre outros. Acabou se tornando uma piloto de destaque e aqui no Brasil competiria com sua Alfa Monza azul, apelidada de Pássaro Azul, similar à de Manuel de Teffé.
Dois dias antes da prova foi realizado um reconhecimento da pista. O piloto brasileiro Armando Sartorelli derrapou na curva da rua Canadá e foi bater em uma árvore, felizmente estragando somente o carro.
O entusiasmo com a novidade fazia o público, estimado em 25 mil pessoas, se esquecer da prudência e disciplina. A polícia teve trabalho para tirar gente pendurada em árvores junto à pista, fora segurar os que atravessavam para buscar melhor posição… De Teffé optou por dar poucas voltas, temendo o pior, vendo tanta gente se espremendo na beirada da pista.
Pintacuda marcou 2’9”, Marinoni 2’10”, De Teffé 2’30”, Nice 2’45”. Nascimento Jr., piloto ídolo dos paulistas, marcou 3’05″ com seu Ford V8. O grid seria escolhido por sorteio, mas Gilberu, representante da Ferrari, consciente da enorme superioridade de sua equipe sugeriu que seus pilotos largassem na última fila. Um gesto de espírito esportivo, aceito pelos organizadores.
Com isso a emoção estava garantida. O grid foi formado no tradicional esquema 3-2-3:
Nº 2 Augusto MacCarthy (ARG), Chrysler; Nº 4 Lourenço Ferrão (BRA), Hispano-Suiza; Nº 6 Vittorio Coppoli (ARG), Bugatti
Nº 8 Manuel de Teffé (BRA), Alfa-Romeo; Nº 10 Armando Sartorelli (BRA), Alfa-Romeo
Nº 12 Irahy Correia (BRA), Bugatti; Nº 16 Serafim de Almeida (BRA), Duesenberg; Nº 18 Luiz
Mastrogiacomo (BRA), Bugatti
Nº 20 Chico Landi (BRA), FIAT; Nº 22 Eduardo Oliveira Jr. (BRA), Ford
Nº 24 Antonio Lage (BRA), Bugatti; Nº 26, Vittorio Rosa (ARG), Hispano-Suiza; Nº 28 Virgílio Lopes (BRA), Ford V8
Nº 30 Luiz Tavares Morais (BRA), Ford V8; Nº 42 Arthur Nascimento Jr. (BRA), Ford V8
Nº 38 Hellé-Nice (FRA), Alfa Monza; Nº 36 Domingos Lopes (BRA), Hudson-Bugatti; Nº 38 Carlo Pintacuda (ITA), Alfa-Romeo 2,9L
nº 40 Attilio Marinoni (ITA), Alfa-Romeo 2,9L
A formação foi feita por sorteio dos números, seguindo a ordem crescente. Mas… Nascimento Jr. tinha o nº 42 e largou antes de Nice, nº 38. Ocorre que houve um acordo para não se usar o 32 em homenagem a Irineu Corrêa, que corria com esse número e tinha falecido na Gávea no ano anterior. Nascimento Jr. optou então por usar o 42.
Como não foi possível recuperar seu carro, Sartorelli alinhou com um Alfa Romeo de outro piloto, que não tinha pontos suficientes acumulados em provas nacionais para ter a inscrição aceita.
E assim, às 9:35 da manhã de domingo, 12 de julho de 1936, Fábio da Silva Prado, prefeito da capital, fez soar o clarim dando a largada.
Mesmo saindo da quarta fila Chico Landi, já um piloto de prestigio, passa na liderança, animando a torcida paulista.
A seguir vinham Coppoli (vencedor de uma edição da corrida da Gávea), Nice, De Teffé, MacCarthy, Lourenço Ferrão, Tavares de Moraes, Pintacuda, Nascimento Jr., Vittorio Rosa, Domingos Lopes e Sartorelli, compondo o pelotão dianteiro. Marinoni passa em 15º, mas roda na perigosa curva da rua Canadá e cai para último.
Na 3a. volta, Pintacuda assume a liderança. Na volta seguinte, Marinoni assume o 2º lugar, em impressionante escalada. Hellé Nice era a melhor do resto, com De Teffé, Landi e Coppoli atrás.
O carro de Chico, muito inferior, não estava à altura de seu talento.
Na quinta volta Marinoni erra novamente no mesmo lugar, roda e o motor apaga.
Para surpresa geral, Pintacuda encosta seu carro na traseira do Alfa do colega, permitindo que este pegasse no tranco. Isso não impede que Carlo permaneça na liderança e a amplie.
Na 14a. volta Marinoni já está em segundo lugar, quase duas voltas atrás do compatriota, evidenciando o favoritismo das Alfa da Scuderia.
Na 19a. Carlo pára para abastecer e volta sem a menor ameaça à sua posição. Na 34a. ele se dá ao luxo de fazer uma visita inesperada aos boxes apenas para pegar um cigarro. Fumar e dirigir não representavam nenhum problema com tanta vantagem. Talvez se fumasse cachimbo…
Mas para seu colega, as coisas não eram tão simples. Na 28a., Attilio faz a sua parada e volta em 4º, Hellé e Manuel passaram por ele. A Alfa 2,9L vai sendo exigida e ele marca 2’19”.
Manuel vira em 3’33”. Marinoni em 2’17” na 39a. volta, passa por ele e vai em busca do Pássaro Azul. A resistência de Hellé Nice impressiona, mas é inútil. O italiano passa e continua disposto a dar show. Na 40a. vira em 2’12”, melhor volta da prova.
O Pássaro Azul pára para reabastecer na 50a.. Manuel passa e abre 30” de vantagem.
Mas Hellé Nice não se intimida. Na última volta ela está a meros 5” do brasileiro.
Na curva da rua Atlântica Manuel abre demais e perde tempo. Hellé emparelha na Brasil e seguem disputando metro a metro.
Carlo cruza a linha de chegada com duas voltas sobre Marinoni, um minuto antes do meio-dia. Este tinha uma volta sobre Nice e De Teffé, e agora as atrações todas se voltavam para esse duelo. Poucos metros antes da linha de chegada Manuel vai para a direita, Hellé para a esquerda.
Há uma tese que, para ver melhor, espectadores se debruçaram sobre os fardos de feno, alguns deles cederam e foram parar diante do Pássaro Azul.
O mecânico de Hellé Nice, Arnoldo Binelli, afirmou que Manuel a fechou e há uma terceira tese a respeito do atropelamento de um guarda civil que tentava conter a multidão prestes a invadir a pista.
Seja como for Hellé Nice virou o volante para a esquerda, o carro se desgovernou, invadiu a calçada, deixando cinco mortos e 30 feridos. Ela foi ejetada, sofreu uma comoção cerebral, escoriações no rosto, contusão na região escapular, entrou em coma, mas se recuperou depois de dois meses, sem lembrar exatamente o que ocorreu.
Cinco pessoas, dois soldados da Força Pública, dois militares do Exército e um civil morreram. Um desses militares absorveu o impacto do corpo da piloto.
Ficou claro para Louis Sanson que São Paulo iria precisar mesmo de um autódromo.
Continuamos em nosso próximo encontro, aqui no Gepeto.
Abraços
Carlos Chiesa
4 Comments
Belíssima recuperação de nossa história aumotobilística!
Chiesa
Nota 1000
Fernando Marques
Niteroí RJ
Grande Chiesa!
Que história incrível, mesmo sendo trágica.
Mas, era o automobilismo da época, e as tragédias sempre estavam aguardando para entrar no protagonismo.
Já estou no aguardo da continuação.
Grande abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR