Luis Fernando Ramos |
Imagine a seguinte cena: nas voltas finais do GP de San Marino, Jarno Trulli vem fazendo uma grande corrida e está embutido na caixa de câmbio da Ferrari do líder Michael Schumacher. O italiano faz uma grande manobra para assumir a ponta. Mas, poucas curvas à frente, erra na freada de uma curva, bate na proteção de pneus e abandona.
Desolado, Trulli sai do carro. Enquanto caminha cabisbaixo para os boxes, o piloto da Renault vê seus compatriotas pularem nas arquibancadas como se a Itália tivesse acabado de vencer a Copa do Mundo de futebol. Um episódio que vai deixar uma mágoa enorme até o final da sua carreira.
Foi mais ou menos isto o que aconteceu em Ímola vinte anos atrás, mas ao invés de Trulli, o italiano em questão era Riccardo Patrese, o eterno.
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É impossível não traçar um paralelo entre a corrida do próximo domingo e o GP de San Marino de 1983. Embora por motivos distintos, em ambas as ocasiões a Ferrari chegou em Imola tendo muito o que provar à sua fanática torcida. Vencer virou questão de honra e sinal de redenção.
Há vinte anos, o time de Maranello ainda se recuperava da trágica temporada anterior. Numa época em que a guerra dos pneus e o desenvolvimento dos motores turbo gerou uma competitividade poucas vezes vista na categoria,a Ferrari começou o ano de 1982 dando a impressão de ser superior às outras. Mas o acidente fatal de Gilles Villeneuve em Zolder e o quase fatal de Didier Pironi em Hockenheim acabou com as chances de vencer o título entre os pilotos e minou a moral da equipe.
Para completar, o GP de San Marino de 82 foi o que gerou a famosa polêmica entre Gilles e Pironi, na qual o francês teria desobedecido ordens de deixar o canadense passar, algo desmentido depois por um membro da equipe. Por isso, no ano seguinte, 110 mil fanáticos pela Ferrari lotaram as arquibancadas de Ímola exigindo vitória. Pela honra da Ferrari. Pela honra de Gilles Villeneuve.
O início da Ferrari em 1983 foi hesitante. Nas primeiras três corridas a equipe obteve apenas um pódio. Para reverter a situação, a Goodyear preparou para San Marino um novo tipo de pneu, mais resistente para combater o desgaste excessivo que o potente e pesado carro da Ferrari gerava.
A excitação da torcida local aumentou quando René Arnoux colocou sua Ferrari na pole-position. Tudo indicava que o domingo seria de festa. Mas esqueceram de avisar Riccardo Patrese. O italiano da Brabham, companheiro de Nelson Piquet, estava num daqueles seus raros dias de inspiração, quando se tornava difícil de ser batido. Em poucas voltas, Patrese pulou de quinto para a liderança, e começou a abrir vantagem.
Quando o piloto da Brabham entrou nos boxes para sua única parada, pouco depois da metade da corrida, tudo indicava que a fatura estava liqüidada. Mas uma das pistolas de ar comprimido que ajuda na troca dos pneus falhou e a parada durou o dobro do tempo normal, que era de 12 segundos na época.
Patrese voltou atrás de Patrick Tambay, o outro piloto da Ferrari que, numa corrida sem brilho mas muito consistente, havia tomado a ponta. O italiano da Brabham passou a fazer voltas alucinadas e grudou na Ferrari a poucas voltas do fim.
Com a ajuda do vácuo, Patrese ganhou a liderança na freada da Tosa, deixando as arquibancadas em clima de enterro. Mas o italiano acabou acertando um tiro no pé ao cometer um erro bobo poucas curvas depois, na freada da antiga chicane que existia na Aqua Minerali. A Brabham foi de encontro aos pneus e sofreu danos irreparáveis.
Os fanáticos torcedores explodiram em festa. Ali estava uma Ferrari com o número 27 ganhando “em casa”. Tambay, um piloto extremamente bem-educado e que passou a vida em equipes pouco ou nada competitivas, viveu naquele domingo seu dia de glória. Comemorou efusivamente a vitória e a dedicou ao amigo Gilles Villeneuve, cuja morte lhe abriu pela primeira e única vez na carreira as portas de uma equipe de ponta.
O desenrolar da temporada provou que a redenção da Ferrari não foi completa. A equipe ainda venceu outras três corridas ao longo do ano, todas com René Arnoux, mas pecou na consistência e seus pilotos ficaram fora da briga pelo Mundial de Pilotos, embora levassem para Maranello o título de construtores.
Mas para os tifosi, que mal sabiam se encontrar apenas no início de um longo jejum de conquistas (foram 21 anos sem vencer entre os pilotos e 16 entre as equipes), nada mais importava naquele domingo. A Rossa havia triunfado no circuito Enzo e Dino Ferrari. Gilles fora devidamente homenageado e a alma dos torcedores estava lavada.
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É mais ou menos com este espírito que os tifosi vão à Imola neste domingo. Depois do domínio absoluto que foi a temporada passada, a sucessão de erros da equipe e a derrota nas três primeiras provas do ano deve estar sendo bem indigesta.
Não dá para comparar a Ferrari “ISO 9002” atual com a zona absoluta do passado, mas é curioso ver como as atitudades mudaram neste ano diante da inegável crise. Nesta semana, Schumacher fez algo que raramente havia feito antes, que é criticar alguns pilotos sem meias palavras. Luca di Montezemolo, por sua vez, culpou Interlagos pelo fiasco brasileiro. E a estréia do carro novo foi adiada.
Que ninguém se engane: é tudo jogo de cena para desviar a atenção da pressão que a equipe está sentindo. Pessoalmente, julgo até que a decisão de correr em Ímola com o carro velho é uma espécie de álibi para o caso de uma nova derrota. No ano passado, por muito menos eles anteciparam a première do F-2002 para Interlagos.
Depois de tanto sucesso nas últimas temporadas, a Ferrari sabe que não tem nada a provar à Fiat, às outras equipes ou à própria Fórmula 1. Mas sabe também que jamais pode trair a confiança daqueles 110 mil que vão lotar o autódromo e dos outros milhares de tifosi espalhados pela Itália. Perder a quarta consecutiva, ainda por cima em casa, vai deixar o ambiente de Maranello conturbado como há tempos não se via. Como há 20 anos, agora é vencer ou vencer. Pela honra da Ferrari.