O GP do Japão de MotoGP, primeira etapa do Campeonato Mundial, mostrou que pilotos são feitos de carne e osso, mas quebram como vidro. Geraldo Tite Simões |
A TV japonesa não mostrou o replay do acidente que vitimou Daijiro Kato, mas pode-se tirar várias conclusões pela cena final. Segundo um comissário italiano, não haviam marcas de frenagem antes da segunda chicane, onde aconteceu a queda, num ponto onde os pilotos normalmente fream forte. Além disso podia-se ver placas de grama e pedaços da moto em volta do piloto, ou seja, primeiro ele bateu na cerca de proteção e depois voltou para a pista. E, por fim, se a TV não mostrou a cena do acidente (que foi gravada, mas não foi ao ar), certamente não queria que o público do mundo inteiro visse a gravidade da pancada.
Tem mais. Kato parou com o braço direito para cima. Isso explica muita coisa. Pouca gente sabe, mas passei 18 meses trabalhando em hospital. Não como médico, nem paramédico, mas como fotógrafo de cirurgias. Meu amigo Pandini costuma dizer que só não fui prefeito de Nova York e água de piscina. Aprendi muito na convivência diária com médicos de várias especialidades. Quando uma pessoa sofre um golpe violento e cai consciente, os braços ficam posicionados para baixo, ou sobre o peito, como forma de aceitação resignada do inevitável, uma última forma de se proteger contra uma gravidade. Mas quando o acidentado cai inconsciente, os braços geralmente ficam para cima. Esta é uma das formas de os peritos identificarem a exatidão da inconsciência. Ou se quiser ser mais grave, é assim que os legistas podem saber se alguém “morreu” imediatamente.
Quando vi a cena do Kato com o braço direito acima da linha doombro e a mão afastada do asfalto – por força do macacão, que impede certos movimentos – fiquei gelado. Foi grave, pensei na hora, e foi na cabeça. Aquela concussão cerebral que o locutor da Globo se referiu é muito comum em acidente de moto. Eu mesmo já passei por isso. Quando o piloto está em movimento, todo o corpo corre na mesma velocidade, inclusive seus órgãos internos. No caso de uma colisão, ocorrem três choques: o do veículo com um obstáculo; o do piloto contra o veículo ou contra o obstáculo; e o dos órgãos internos contra eles mesmos. Em suma, a concussão se caracteriza pela chacoalhada que o cérebro dá dentro do crânio numa desaceleração brutal. Por isso capacetes devem ser moles, e não duros, como a maioria pensa, para amortecer, absorver e dissipar o impacto. Mas concussão não provoca perda imediata dos sentidos e a vítima pode até ir para casa normalmente e desmaiar depois de horas.
Por isso fiquei gelado na hora. Porque sabia que era caso de fratura de crânio ou, como aconteceu com Senna, lesão por penetração de objeto pérfuro-contundente. Até o momento em que escrevia este artigo sabia apenas da fratura no crânio e de lesões no “pescoço”, um eufemismo utilizado pelos médicos quando querem se referir a uma lesão na coluna cervical. Kato teve parada cardíaca e precisou ser ressuscitado com massagens e aparelhos. Este quadro de insuficiência respiratória é sinal de gravidade III que, na linguagem da turma de resgate, significa risco iminente de perder a vida.
Outra coisa que me chocou no GP do Japão foi o heroísmo de
Alexandre Barros. Ele correu com um osso do joelho esquerdo quebrado e os joelhos são extremamente solicitados nas frenagens e curvas de raio longo. A atitude dele foi heróica, brava e típica de quem pretende ir longe demais nesta temporada. Mesmo suportando dores inimagináveis para nós, Alex conseguiu chegar na frente de seu companheiro de equipe, Carlos Checa e a menos de um segundo do sexto colocado, Colin Edwards.
Não se deixem enganar pela “facilidade de Valentino Rossi”, (insisto que não existem facilidades quando se pilota a 300 km/h). Ele foi o único a correr de Honda 100% 2003 e, na condição de Schumacher das motos, pode exigir tratamento VIP em relação aos outros pilotos Honda. Mesmo assim peço calma, porque Biaggi e Capirossi já deixaram o recado claro de que vão dar trabalho. Enquanto a frustração continua sendo Nicky Hayden.
Sem dor nem dó
A atitude de Barros confirma o que sempre disse em relação aos pilotos de moto: todos nasceram com um tremendo aquilorroxo, que no vocabulário collorido significa colhões. Já vi várias manifestações de aquiloroxismo por parte de pilotos que se quebraram nos treinos, ou mesmo nas ruas, mas que foram para as pistas fazer aquilo para o qual são pagos. O primeiro foi José Xavier Soares, mais conhecido como Birigüi. Ele era magro, tremendo piloto nas pistas, mas meio maluco nas ruas. Na decisão do campeonato brasileiro de F-Honda 400, em Interlagos, nos anos 80, vi o Birigüi fazendo uma rodela de espuma, como se fosse uma rosquinha. Perguntei se era algum problema de hemorróide, mas ele me mostrou o joelho todo esfolado, fruto de um tombaço na rua. Com este remendo, correu, terminou na frente do Walter “Tucano” Barchi e foi campeão brasileiro.
A segunda manifestação foi do multicampeão Michael Doohan, em 1992, na mesma pista de Interlagos. Ele quase perdeu a perna em função de complicações de um acidente no GP da Holanda. É bom que se diga que a quase amputação não foi conseqüência do acidente, mas sim do péssimo atendimento médico que recebeu e ele teve de ser “seqüestrado” pelo Dr. Claudio Costa, médico oficial do mundial de motovelocidade. Doohan chegou no aeroporto internacional de Guarulhos apoiodo em muletas e a perna direita dele estava tão fina quanto uma caneta Bic. Lembro bem da cena, porque eu era assessor de imprensa do GP do Brasil e os jornalistas Livio Oricchio e a Alessandra Alves ficaram estarrecidos quando viram Doohan chegando nos boxes. Doohan foi um herói batido, porque não pôde evitar a vitória de Wayne Rainey e viu seu título mundial ir pro vinagre.
O terceiro foi Adilson Cajuru Magalhães, naquela famosa corrida de Goiânia, em que caí três vezes nos treinos. No warm-up passei pela chicane e vi a moto de um lado e o Cajuru agachado, do gramado. Na hora já sabia que tinha rolado uma lesão, porque piloto de moto cai e sai andando. Quando o vi nos boxes, Cajuru ainda estava de macacão e meio branco, mas não falava nada do tombo. Depois da corrida soube que estava com a clavícula quebrada, um maldito assinho de m… que quebra só de olhar para o asfalto. Eu já quebrei a minha e quase todos os pilotos de moto já tiveram problemas com este pedacinho de esqueleto.
O Cajuru correu, brigou com o César Barros a prova inteira e ainda terminou em segundo lugar. Como Cristiano Vieira acabou sendo desclassificado, Cajuru foi para o pódio, no degrau mais alto, ainda de macacão. Mais tarde encontrei o cara de bermudas e … uma tipóia no braço. Perguntei porque ele não tinha procurado um médico antes da largada. E ele respondeu: “eu não, depois eles iam me proibir de correr só por causa de uma clavícula quebrada!”. Coisa de piloto.
F-1: Maldição do Tite
Como o autódromo de Interlagos ficou fechado por três meses para as reformas da importantíssima Fórmula 1, eu fiquei o mesmo período sem dar aulas do Curso SpeedMaster de Pilotagem. E janeiro conseguimos dois dias, mas choveu torrencialmente. Foi aí que lancei a maldição de Interlagos: “Vai chover canivete aberto na Fórmula 1 e ninguém vai terminar a corrida!”. Alguém aí quer provar alguma das minhas maldições?