“JACARÉ”

ADESÃO INESPERADA
26/03/2003
se eu fosse você, ficaria na caixa d´água
31/03/2003

Como a maior promessa do motociclismo brasileiro dos anos 70 acabou virando estatística.

Geraldo Tite Simões

Existe um jeito muito fácil, embora doloroso, de alguém virar herói no Brasil. Basta morrer. Depois da morte, principalmente se for acidental, os defeitos de caráter desaparecem e nasce o herói. Quem acompanha a minisérie A Casa das Sete Mulheres, da Rede Globo, pode achar que Bento Gonçalves foi um herói da revolução Farroupilha, quando não é bem isso que a História revela, principalmente no que diz respeito ao sumiço misterioso dos lanceiros negros. Bem, mas as mazelas da nossa história não têm nada a ver com motociclismo. No entanto, a mania de idolatrar heróis post mortem tem a ver com um piloto que ficou famosíssimo nos anos 70: Carlos Pavan, mais conhecido como Jacaré.
Pela introdução, dá para perceber que não entrei na onda de só ter elogios ao Jacaré, até porque nunca fui idólatra nem de vivos, muito menos de mortos. Só que lamentei demais a morte do Jacaré, porque ele era a nossa grande oportunidade de ver um brasileiro dando pau nos gringos, aqui e no exterior. A história dele é muito parecida com a de outros bons pilotos da época. No começo dos anos 70 um típico paulistano era apaixonado por motos. De tanto fuçar em oficinas de motos, acabou comprando uma e saiu desembestado pelas ruas. Só que nosso personagem era especial, porque quando Deus fez a receita dele, acrescentou uma dose descomunal de coragem. Foi além: o fez fisicamente na medida certa para pilotar motos, ou seja, nem muito alto, nem muito pesado, muita elasticidade, uma simpatia extraordinária, senso de humor e muitas outras qualidades. Mas na hora de colocar aquela pitada de responsabilidade, algum anjo chamou-O e Deus acabou esquecendo deste componente.
Assim era o Jacaré. Brincalhão, carismático, excelente piloto, muito acima da média de seus contemporâneos, mas com uma tremenda dose de irresponsabilidade. Não posso dar a história deste venerado piloto em ordem cronológica, porque sou meio avesso ao arquivos das minhas revistas, por conta de uma baita alergia a ácaros. Só sei que ele nasceu em 1952 e morreu em 1975. Mas posso fazer algo que pouca gente pode: contar a MINHA convivência com Jacaré.
Tive a sorte de ser adolescente nos anos 70. Mais sortudo ainda por ter um pai que estava de saco cheio de acordar às 6 da matina para levar os filhos à escola e decidiu presentear meu irmão mais velho com uma moto, em 1972. Eu tinha 12 anos e vi chegar em casa uma Suzuki A 50II, que tratei de pular em cima. Neste dia a moto dormiu na sala de casa e eu, ao lado, no sofá. Logo a família percebeu quem era o maluco naquela casa. Passei a noite toda acordado olhando para aquela moto.
Quando meu universo se expandiu além dos limites do caminho casa-escola, comecei a conhecer outros motociclistas. São Paulo ainda era uma cidade romântica e diria civilizada naquela época. Aos poucos fui conhecendo as turmas de motoqueiros dos bairros de Moema, Pinheiros e – aleluia – Ibirapuera. E foi no Ibirapuera que vi o Jacaré pela primeira vez. Ele não tinha pai rico. Acho até que nem tinha pai. Por isso rodava a maior parte do tempo com motos emprestadas. Quem conhecia a fama dele jamais entregaria moto alguma para aquele doido varrido, mas cheguei lá sem saber nada e ele veio direto na minha direção: “Deixa eu dar uma volta?”.
O Parque do Ibirapuera em 1973 não era muito diferente do que é hoje em dia. Ao lado do prédio da Bienal tinha uma ampla área asfaltada que servia de estacionamento. Mas 30 anos atrás ali era o “chiqueirinho”, onde os donos de motos ficavam rodando no sentido anti-horário, fazendo as curvas no maior pau, até ficarem tontos ou cair, ou os dois, não necessariamente nesta ordem.
Lá foi o Jacaré, com minha Suzukinha, fazer curvas com a moto cada vez mais inclinada, até começar a raspar as pedaleiras no asfalto. Quando acabou a borracha da pedaleira começou a sair faíscas. Este era o objetivo: fazer as faíscas voarem. Eu nem respirava. Nem falava. Só pensava: “Este filhodaputa vai cair com a minha moto e meu pai vai me matar”. Não caiu, meu pai não me matou, mas o Jacaré, sem saber, deixou uma marca não apenas no asfalto, mas na minha vida. De repente eu queria ser aquele cara. Fazer curvas que nem ele, ser popular que nem ele, fazer as pessoas rirem com as brincadeiras dele. Ser admirado que nem ele. E eu nem fazia a menor idéia de quem aquele cara era, até que alguém falou: “ele é piloto de moto” e eu respondi: “%$#&*+! Agora que vocês me avisam!!!”.
Em 1973, um Fusca cheio de bebuns passou num farol vermelho e reduziu minha Suzuki a um monte de ferro torcido. Saí ileso porque meu anjo da guarda estava recebendo hora extra neste dia. Para compensar a perda, meu pai me deu uma Yamaha AS 125. Dois cilindros – que raramente funcionavam juntos –, um foguete, perto da cinqüentinha. Neste mesmo ano mudamos para Moema, perto de ninguém menos que Manolo e Victor Macaya, donos da Moto-Mavi, uma oficina Honda, onde se reuniam pilotos de moto, como Ramon Macaya e Edson Tchek-Tché Silva. Eu via as motos de corrida deles, corria pra minha casa e fazia tudo igual na minha: guidão baixo, escape “dimensionado”, pedaleiras recuadas e câmbio invertido. Mas eu não podia correr na pista. Fui correr onde todo mundo corria: na rua! Circuito da Cidade Universitária, Autódromo da Faria Lima, Motódromo do Ibirapuera. Na minha imaginação eram as pistas onde corríamos. Até o Aeroporto de Congonhas tinha virado pista. E foi lá que encontrei novamente o Jacaré. Ele pediu minha moto e eu quase engoli a chave. Meu inocente amigo Jojo estava com uma Honda CB 500Four novinha e, preocupado com a moto, disse: “Empresto, mas vou na garupa”.
Poucos, para nós, e intermináveis, para o Jojo, minutos depois eles chegaram. O Jacaré desceu da moto com aquela cara de sempre, rindo que nem bebê depois de mamadeira. Meu amigo Jojo precisou de ajuda para recuperar a fala. Demorou um tempo pra ele voltar à cor original e até hoje lembra da noite que andou na garupa do Jacaré na Avenida 23 de Maio.
Acho relevante comentar que capacete era um artigo completamente desconhecido. Menos para mim, que usava meu Induma, modelo SS, com muito orgulho. Capacete era coisa de fresco, por isso muitos machões daquela época foram aumentar o contingente de almas no purgatório. Uma noite cheguei todo garboso no Rick Store, na Avenida Faria Lima, em frente ao Shopping Iguatemi, com meu capacete novo reluzente. A turma do Jacaré adorou o capacete. Tanto que jogaram futebol com ele. E o pior é que meu time perdeu…
Quando chegou 1975 meu pai fez a última ação donativa. Apareceu em casa com uma Honda CB 400 Four azul novinha. Foi com esta moto que comecei a freqüentar mais assiduamente a pista de Interlagos para ver as corridas de moto. Sempre torcendo para o Jacaré e sempre pensando que um dia eu queria correr daquele jeito. Com uma Yamaha TZ 350 o Jacaré fez história em Interlagos. Venceu as 500 Milhas em dupla com Johnny Ceccoto, o venezuelano que seria campeão mundial. Jacaré era muito corajoso e pilotava muito forte. Mas faltava-lhe juízo.
Lembro, muitos anos depois, numa conversa com Edgard Soares, o primeiro chefe de equipe do Jacaré, quando Edgard falava: “O Jacaré era muito melhor que os outros, mas caía muito na rua e vivia quebrado. Tirava o gesso, ganhava uma corrida e depois se arrebentava na rua de novo. Mas era melhor que os outros”.
Esta inquietação do Jacaré custou-lhe caro. Algumas vezes Edgard Soares deixava o piloto de castigo para ver se criava vergonha na cara. Jacaré passava um tempo bonzinho, mas logo depois já estava se esborrachando em alguma rua de São Paulo.
Mais uma vez, me desculpem se não sei as datas com exatidão. Mas lembro perfeitamente do dia que meu irmão chegou em casa e disse: “o Jacaré morreu”. E explicou o acidente na rua, durante um racha e o Jacaré sem capacete, como sempre. Foi ultrapassar um Opala pela direita, mas o motorista se assustou com o barulho da outra moto e desviou justamente para a direita. Ele tinha 23 anos quando morreu. Muito jovem para morrer.
Não fui ao enterro. Nem me abalei tanto. Mas fiquei com muita raiva porque se ele não tivesse morrido teria sido um piloto brasileiro com chances de dar pau nos gringos. E eu pensava: “Por que este #$%&$# não se contentava em correr na pista? Tinha de correr na rua?”. Hoje eu sei porque. Era absolutamente impossível o Jacaré andar devagar. Uma vez ele se inscreveu numa espécie de rali de regularidade, com uma Yamaha 50 Mini Enduro. Foi desclassificado porque correu demais. Ele era assim mesmo. Funcionava no sistema binário: on ou off. Ou estava sempre acelerado, ou parado. Não tinha meio termo.
Algum tempo atrás, quando fez 20 anos da morte dele, sua mãe enviou uma linda carta à redação da revista Duas Rodas, onde eu trabalhava. Uma justa homenagem se concretizou no bairro do Butantã, onde existe a rua Carlos Pavan, com o adendo “esportista 1952-1975”. Todos nós ficamos emocionados ao ver a foto daquela senhora, abraçada a um troféu, como se estivesse abraçada ao próprio filho.
Talvez Deus tenha realmente esquecido de acrescentar responsabilidade na composição química do Jacaré. Mas com certeza reconheceu a importância daquele moleque. Tanto que até hoje ainda estamos nós todos aqui, escrevendo, falando e lendo a respeito do Carlos Pavan, o inesquecível e desmiolado Jacaré.

GPTotal
GPTotal
A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

1 Comments

  1. Alfred Delatti disse:

    Maravilhoso texto, me fez lembrar quando trabalhei no MotoJumbo do Aeroporto precisamente nos anos de 72 a 76, ou seja no auge das motos. Conheci Jacaré e ele era mesmo tudo isso e mais um pouco. Também achávamos que era um piloto acima da média, mas completamente louco.
    Quando morreu, todos já esperávamos, infelizmente. Participei do Rally da Montanha em 1974, que saiu do Ibirapuera até Serra Negra e o Jacaré apareceu com a mini Enduro fazendo loucuras pela estrada, era um show a parte.
    Conheci também o Manolo da MotoMavi (o Colin Chapman do motociclismo brasileiro) e seu sócio Victor, na época seu afilhado Ramon Macaya era o melhor piloto de 125 nas provas da categoria em Interlagos, foi campeão brasileiro varias vezes.
    Valeu seu texto, quem viveu aquela época como nós realmente viveu ! Abraços.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *