No inglês, o termo hidden gem se aplica a tudo aquilo que tem qualidade, mas, aparentemente, não desfruta do conhecimento popular que faria por merecer. A expressão é muito utilizada, por exemplo, ao se referir a bons jogos de determinados consoles que, por qualquer motivo, são pouco conhecidos ou esquecidos entre a comunidade gamer, para citar apenas um exemplo.
Se pensarmos a respeito das maiores atuações de Ayrton Senna, e cruzarmos o resultado com suas exibições mais celebradas pela memória popular, parece justo enquadrar sua grandiosa vitória na Bélgica em 1985 nesta categoria de “joia escondida”, e talvez haja ao menos uma razão técnica para isso. Afinal, apesar da sensibilidade de posicionar uma câmera no topo do complexo Eau Rouge/Raidillon, que ao longo da prova muitas vezes capturou o contraste entre o equilíbrio e a suavidade da McLaren de Prost ante as correções plasticamente lindas e assustadoras protagonizadas por Senna e Mansell, o fato é que a transmissão televisiva da prova foi muito precária para diversos países, a começar pelo Brasil, dificultando a percepção de que uma corrida muito especial estava em andamento.
Uma rápida contextualização: a corrida belga deveria ter sido realizada em junho, mas acabou sendo remarcada para o meio de setembro após a pista de Spa-Francorchamps ter sido inteiramente recapeada, agora com uma mistura asfáltica mais convencional (e resistente) em substituição ao malfadado composto que pretendia tornar a pista mais eficiente em condições de chuva, sempre um fator a se considerar na região das Ardenas.
A Lotus começou o fim de semana com muitos problemas, fazendo jus a tudo que habitualmente se associa a uma sexta-feira 13. Elio de Angelis teve de usar o carro reserva por problemas com a embreagem, ao passo que Senna perdeu precioso tempo de pista em razão de problemas na caixa de câmbio e, posteriormente, também de uma falha no turbo de seu motor Renault. À tarde, já na primeira sessão classificatória, Ayrton teve problemas com a suspensão do carro titular que o obrigaram a recorrer ao carro reserva, o qual não estava configurado para uma volta lançada. Em meio a todos esses problemas a Lotus ainda teve que lidar com um princípio de incêndio dentro de seu box e Ayrton sofreu mais uma quebra de motor. Como resultado o paulistano não conseguiu dar uma única volta verdadeiramente rápida ao longo do dia, e assim marcou apenas o 18º tempo, a mais de 4s da melhor marca assinalada por Alain Prost.
No sábado a situação se normalizou, e em sua primeira tentativa Ayrton marcou o que até então era o melhor tempo, antes de ser superado por Prost, Piquet e Alboreto. E então, já nos instantes finais do treino, ele voltou à pista para uma última volta voadora durante a qual os pneus traseiros de classificação se desgastaram a ponto de bolhas serem visíveis, ocasionando uma sensível perda de aderência. Com essa volta Ayrton conseguiu a segunda posição no grid, a 0,097s da marca que rendeu a pole position a Alain Prost.
E então o domingo amanheceu com chuva.
É oportuno observar que já nessa altura de sua carreira Ayrton encontrava-se de certa forma refém da reputação que havia construído para si mesmo quando em pista molhada. Se por um lado os próprios adversários sabiam que sob tais circunstâncias seria difícil derrotá-lo, por outro lado é igualmente verdade que Ayrton precisava sempre se provar ante um sarrafo extremamente alto, estabelecido em atuações como as da Corrida dos Campeões e Mônaco, em 1984, ou no Estoril alguns meses antes.
Em Spa, contudo, a chuva parou pouco antes da largada e o que veríamos seria Ayrton, pela primeira vez, enfrentando situações de umidade variável, numa pista que começou molhada, secou parcialmente, e tornou a molhar e a secar ao menos mais uma vez ao longo da corrida. Assim, entre o acender da luz verde e o agitar da bandeira quadriculada, os pilotos tiveram de lidar com cenários tão diferentes quanto guiar com pneus de chuva em pista na qual já havia se formado um “trilho” seco, ou guiar com pneus lisos em pista molhada e escorregadia. Foi uma prova, portanto, que demandou muito da habilidade, da sensibilidade e do arrojo dos pilotos, ampliando consideravelmente suas respectivas contribuições pessoais para a construção dos resultados.
Igualmente importante observar que, levando a cabo o forte processo evolutivo observado ao longo de toda a temporada, a Williams-Honda chegava ao fim de 1985 com o pacote técnico mais forte de todo o grid. Já em Monza Keke Rosberg havia se mostrado inalcançável, tendo perdido a vitória apenas em razão de mais um abandono. E então, a partir da Bélgica, os carros de Frank Williams subitamente deixam de quebrar, tornando-se os conjuntos a serem batidos nas provas que restavam. E é importante frisar o plural aqui, pois o aprimoramento mecânico da equipe coincide com um período de grande evolução por parte de Nigel Mansell, que nas próximas duas corridas conquistaria suas primeiras vitórias e começaria a ganhar os contornos do piloto vencedor que tanto trabalho daria a Nelson Piquet nos anos seguintes.
Em sua coluna a respeito do GP da Bélgica de 1985 o jornalista Celso Itiberê classificou a atuação de Senna como perfeita, e é difícil discordar de suas palavras. De fato, Ayrton sofreu em Spa com falhas de ignição que se agravaram ao longo da prova a ponto do problema ser claramente perceptível pelo som do motor, conforme relatado em reportagens de época, fazendo com que tivesse de correr empurrado por cinco, e não seis cilindros, em vários momentos da disputa. Além disso, seu sistema de rádio também não funcionou durante a prova inteira. E ainda assim, na mais desafiadora das pistas do calendário, ele faria uso das incertezas introduzidas pela meteorologia para, ante a concorrência mais forte que havia enfrentado naquele ano, levar à vitória um carro que estava longe de seus melhores dias.
Uma atuação perfeita, claro, só pode começar com uma grande largada. Ciente das vantagens reservadas a quem ocupa a liderança em pista molhada, Ayrton protagonizou mais um arranque típico de Gilles Villeneuve para contornar a Source em primeiro, e os frutos dessa investida cirúrgica seriam colhidos de imediato. Afinal, logo atrás dele, tendo também superado a Alain Prost, surgia a Brabham de Piquet, que havia sofrido o fim de semana inteiro com um motor que tendia a morrer quando em baixas rotações.
Pois bem, eis que no contorno da Source, com 22 carros cheios de combustível voando cegos logo atrás, em meio à cortina d’água, o motor de Piquet morre mais uma vez. Em ato reflexo o bicampeão engata a primeira marcha e faz o motor pegar no tranco, mas a súbita entrega de torque faz com que o Brabham gire em meio ao spray, não sendo colhido por nenhum dos carros que vinha a seguir por um misto de habilidade dos demais pilotos, sorte, e possivelmente alguma intervenção divina. Tendo sido o único a contornar o grampo em situação de normalidade, Senna abre uma vantagem segura em relação a Prost, que naquela altura era seguido por Alboreto e Mansell. Piquet, tendo controlado o carro com grande habilidade após a rodada, ocupava agora a 15ª posição.
A corrida, a partir daí, seria essencialmente isso, uma caçada. Senna, na liderança e com problemas de motor e rádio, sendo perseguido pelo virtual campeão Alain Prost, por Keke Rosberg e, sobretudo, por Nigel Mansell, amadurecido e sedento por vencer seu primeiro grande prêmio. Numa analogia cinematográfica, Ayrton abraça os riscos da pista molhada com a mesma disposição com que Han Solo celebra a entrada suicida no campo de asteroides em “O Império Contra-Ataca”, quando era perseguido por naves mais poderosas e não tinha condições de lutar em contexto de normalidade.
Ainda na primeira volta Mansell ataca Alboreto de forma irresistível, mergulhando por dentro na temível curva Pouhon, em descida e em altíssima velocidade. Na quarta volta o inglês supera também a McLaren de Prost e, empolgado, parte à caça de Senna. Rosberg, a essa altura, já havia arriscado trocar para pneus lisos, e logo começaria a ser o piloto mais rápido na pista. Um trilho estava se formando e essa passava a ser uma questão fundamental: quando parar para trocar os pneus, se a chuva poderia voltar a qualquer momento?
Como o rádio não funcionava, a Lotus essencialmente permanecia de prontidão todas as voltas, deixando a critério de Ayrton decidir se entraria ou não. Quando a pista estava seca, a equipe mantinha pneus slicks prontos para a troca. E quando a chuva começava a cair, disponibilizava pneus “biscoito”, e aguardava. Naturalmente isso significa que os pneus ficavam fora das mantas térmicas que deveriam mantê-los aquecidos, o que equivale a dizer que, naquela pista escorregadia, Senna iria receber pneus sem qualquer tipo de aquecimento prévio.
A nona volta da corrida é um marco à parte, uma das melhores em toda a carreira de Ayrton Senna. Sentindo que o momento de trocar pneus havia chegado, ele, Mansell e Prost rumam aos boxes praticamente ao mesmo tempo. A Williams trabalha melhor e devolve Mansell à pista à frente de Senna, com vantagem suficiente para que o inglês nem ao menos seja visto quando as câmeras mostram os instantes finais da troca de pneus da Lotus. O que acontece a seguir é um daqueles momentos reveladores nos quais as diferentes naturezas de dois competidores ficam expostas.
Tendo sido superado nos boxes, Ayrton volta à pista absolutamente determinado a recuperar a ponta o mais rapidamente possível. Com pneus frios ele faz o que parecia impossível e ataca Mansell imediatamente, jogando o Lotus vigorosamente para a parte molhada da pista em plena zona de aceleração, assumindo os riscos de descontrole inerentes à entrega de potência e torque maiores do que os pneus traseiros teriam condições de transmitir ao asfalto escorregadio. Como se estivesse ao volante de um dragster ele mantém o bólido apontado para a frente, colocando-se ao lado de dentro na curta descida entre a Souce e a Eau Rouge, dando o bote fatal antes que o inglês tivesse qualquer tempo de se distanciar ou pensar numa estratégia de defesa de posição. Mas claro que não bastava dividir a curva e se colocar à frente, pois ainda restava o desafio de contornar Eau Rouge e Raidillon carregando toda aquela velocidade, estando calçado com pneus lisos, frios e molhados. Relembrando as palavras de Roberto Guerrero em Macau, era incrível o que Ayrton conseguia fazer com pneus frios.
Ciente de que aquele era um momento decisivo para a corrida, Senna exibe toda a sua reserva técnica. Ainda no decorrer da nona volta ele imprime um ritmo alucinante para alcançar e superar com enorme decisão a Arrows de Boutsen, mais uma vez penetrando a parte molhada da pista para concretizar a ultrapassagem. Tendo começado a volta em quarto ele agora já era o segundo colocado, atrás apenas do companheiro Elio de Angelis, a quem vinha alcançando ferozmente.
Aquela seria a única volta que Senna não completaria na liderança em toda a prova, e também a 16ª e última volta liderada por De Angelis em todo o ano. Tendo cruzado a linha de chegada 0,7s atrás do companheiro de equipe, Senna de modo impressionante já o havia alcançado no mergulho para a Eau Rouge, mas só irá conseguir a ultrapassagem na subida para a Les Combes, perdendo tempo precioso em relação a Mansell, que vinha logo atrás e muito determinado a devolver a ultrapassagem que havia sofrido na saída dos boxes.
A Lotus e a Williams agora estão em batalha direta e não há tempo para hesitação quando encontram a Osella de Huub Rothengatter já perto do fim da pista. Senna mergulha pela parte molhada na altura da Blanchimont, e Nigel arrisca um mergulho na primeira perna da Bus Stop, mostrando toda sua determinação para alcançar o brasileiro. O ritmo de ambos é muito forte e arriscado, e isso ficaria evidenciado metros à frente, na abertura da 11ª volta, quando as rodas traseiras da Williams nº5 travam fazendo Mansell rodar na aproximação ao grampo da Source.
O momento resume o que foi a prova. Apesar de ter marcado apenas a sexta melhor volta da corrida, Ayrton receberia a bandeirada mais de 28 segundos à frente do segundo colocado. O cruzamento de tais informações indica essencialmente que Senna venceu não pela velocidade máxima que foi capaz de imprimir, mas porque não houve voltas ruins em seu repertório, não houve perdas de tempo, não houve erro perceptível de qualquer natureza. Com pista seca ou molhada o ritmo se manteve sempre próximo do máximo que o carro poderia entregar. Colocando noutros termos, suas piores voltas foram muito melhores que as piores voltas de seus adversários.
O pequeno atraso sofrido por Mansell dá a Ayrton a oportunidade pela qual vinha aguardando. Na 13ª volta ele faz a volta mais rápida da prova até o momento, e repete o feito na 16ª passagem, dando um tiro psicológico na concorrência e construindo a vantagem que teria o duplo efeito de lhe dar mais segurança e inibir o ímpeto dos concorrentes.
Por volta da 20ª volta uma chuva fina começa a cair próximo aos boxes, mas o restante da pista permanece com o trilho seco, aumentando ainda mais os riscos aos pilotos uma vez que a parte da pista que continuava seca tornava impossível a troca para pneus de chuva. Sob tais circunstâncias, somente na 24ª volta, apesar de ter enfrentado tráfego pesado, Ayrton abriu 4s em relação a Mansell. Na volta anterior a câmera posicionada na curva Pouhon havia registrado uma rápida correção de volante que parece sintetizar bem o quão no limite vinha sendo a pilotagem do brasileiro.
Na 32ª volta, outro momento decisivo. Logo após Keke Rosberg – que vinha pressionando duramente o próprio companheiro de equipe na disputa pela 2ª posição – ter problemas na aceleração após a Source, Nigel Mansell perde o ponto de frenagem na Les Combes e avança pela área de escape. Apenas nessa volta ele perderia mais sete segundos em relação a Ayrton Senna, e no somatório das próximas três voltas o brasileiro abriria outros oito segundos, fazendo, inclusive, a melhor volta da prova até aquele momento na 33ª passagem, elevando sua vantagem para cima de meio minuto. Mansell, mais tarde, diria estar com dificuldades para calibrar o balanço dos freios entre os eixos traseiro e dianteiro.
Na prática, a corrida estava decidida. Nas últimas voltas a pista secou e diversos pilotos passaram a alternar voltas mais rápidas, mas era tarde demais. A atuação sólida, oportuna e cirúrgica de Ayrton Senna, livre de erros e especialmente forte nos momentos em que a pista esteve mais perigosa, permitiu que a Lotus nº12 pudesse cruzar com baixa pressão no turbo, administrando o problema cada vez mais acentuado de ignição, para uma vitória consagradora que valeria ao piloto a terceira colocação na tabela de pontos, superando pela primeira vez o companheiro Elio de Angelis.
Ao receber a bandeirada, Senna deveria ter ido diretamente aos boxes, mas driblou os fiscais de pista para ter direito a uma volta de celebração solitária, que atrasou a cerimônia do pódio.
Nada mais justo. Afinal de contas, ele, mais do que ninguém, sabia exatamente a grandiosidade do que tinha acabado de fazer.
7 Comments
Márcio, e o livro sobre o Roberto Moreno tem previsão?
Que venha 2025 com sempre o prazer de vir aqui e ler as colunas. Tudo de bom a todos.
Feliz Natal e feliz 2025, Rafael.
Obrigado de coração pelo apoio e pela atenção de sempre.
Marcio,
Assino embaixo o que o Manuel Blanco disse.
Show de bola.
Feliz Natal e boas festas de fim de ano.
Fernando Marques
Niterói RJ
Muito obrigado por mais um ano de apoio e de interações tão fundamentais a esse espaço, Fernando.
Você é um patrimônio do GPTotal, e somos muito gratos a você e todos que dão sentido à nossa continuidade.
Forte abraço, e um feliz 2025 a todos.
Querido Márcio,
Esta coluna é um verdadeiro presente de Natal !
Obrigado.
Manuel, amigo querido, muito obrigado pela atenção e pelo carinho de sempre.
Saudades de você e sua família, desejo que tenha um feliz Natal e um ótimo 2025.