Justiça

Em busca da ultrapassagem perfeita
25/04/2011
Mauro
17/05/2011

Schumacher no GP da Turquia. Largou em oitavo, terminou em 12º.

No final de 1978, um jovem prodígio brasileiro chamado Nelson Piquet era contratado pela equipe Brabham de Fórmula 1, após ter conquistado de maneira brilhante o campeonato britânico de F-3 naquele mesmo ano, e ter mostrado boa adaptação à categoria máxima em um punhado de corridas competentes pelas equipes Ensign e BS. Nelson se machuca gravemente no GP da Argentina, em janeiro de 1979, mas se recupera plenamente e ao longo do ano irá andar cada vez mais próximo de seu companheiro de equipe – ninguém menos que o legendário bicampeão mundial Niki Lauda. Ao fim daquela temporada, tendo marcado apenas um ponto a mais que seu jovem companheiro, Lauda decide se aposentar subitamente, durante os treinos para o GP do Canadá. Vozes maldosas sugerem que o desempenho do brasileiro teria sido um fator determinante em sua decisão.

Apenas uma semana mais tarde, a equipe decide fazer uma experiência: substitui o motor Alfa Romeo pelo Cosworth DFV, sem qualquer ajuste adaptativo. De uma hora para a outra, o Brabham se tornava potencialmente vencedor. Em 1980, fazendo apenas sua segunda temporada completa, Piquet luta bravamente pelo título mundial. Vence sem oposição na pista de rua de Long Beach, e domina com autoridade na Holanda e na Itália. No fim do ano, é batido apenas pela superior Williams de Alan Jones. No ano seguinte sagra-se campeão mundial, diante de uma oposição ainda mais contundente, agora reforçada pela presença na Renault do fenômeno francês Alain Prost. Após dois anos de ausência, Niki Lauda retorna às pistas por razões financeiras. Perguntado sobre suas expectativas em relação ao desempenho do austríaco, Gilles Villeneuve é bastante direto: “Não acredito que ele tenha condições de lutar por vitórias e brigar por títulos”.

Em sua primeira corrida, na África do Sul, Lauda termina na 4ª colocação. No Brasil é o 5º antes de abandonar, e em Long Beach, fazendo apenas sua terceira aparição após o retorno da aposentadoria, vence com a velha classe. Volta a vencer em Brands Hatch, terminando o ano na 5ª colocação, ainda que nove pontos atrás de seu companheiro, John Watson. Piquet, por sua vez, abdica de qualquer resultado na temporada, convencido de que o futuro pertencia aos motores turbo. Ao longo de todo o ano irá se dedicar a desenvolver os propulsores BMW, liderando diversas provas até abandonar por falhas mecânicas. Vence com brilho (e Cosworth) em Jacarepaguá, mas é desclassificado por estar abaixo do peso regulamentar. Torna a vencer no Canadá, desta vez já empurrado pelo turbo da BMW, mas a partir de então os resultados desaparecem.

As sementes de um novo e muito merecido título, no entanto, haviam sido plantadas. Ainda em 1982 o mundo perderia o brilho de Gilles Villeneuve, morto tragicamente, e a consistência de Didier Pironi, seriamente ferido em Hockenheim. Para o ano seguinte estariam banidas as minissaias, decretando o fim dos carros-asa. A temporada de 1983 começa com uma vitória tranqüila de Piquet no Rio, mas logo ficaria claro que o melhor carro pertencia à Renault. Com Alain Prost em grande forma, o massivo investimento da equipe francesa parecia finalmente pronto a render o tão aguardado título mundial. Contudo, o talento de Piquet, a potência brutal do motor BMW, e a genialidade de Gordon Murray se unem para protagonizar uma das mais incríveis viradas em toda a história do campeonato mundial. A Renault acusa o golpe e entra em decadência. Perde Alain Prost para a McLaren, onde Niki Lauda vinha se empenhando em desenvolver os motores TAG-Porsche, da mesma forma como o antigo pupilo Piquet havia feito com a BMW um ano antes. O resultado, novamente é um carro vencedor. O ano sobre o qual escreveu George Orwell introduz os talentos de Stefan Bellof e Ayrton Senna ao mundo dos Grand Prix.

O carro do ano, contudo, estava nas mãos de Lauda e Prost, e é apenas Piquet, através de atuações titânicas – e raramente lembradas –, quem ousa enfrentar o poderio da McLaren. No fim do ano, o resultado que poucos esperavam: Lauda conquista seu terceiro título mundial, após ter ficado dois anos e meio afastado do esporte. Todos os que diziam que ele havia sido aposentado por Piquet, cinco anos antes, eram agora obrigados a engolir suas palavras. Em 1985 Ayrton Senna e Nigel Mansell obtêm suas primeiras vitórias, enquanto Lauda perde sua motivação e o fabuloso Stefan Bellof perde a vida. Com a aposentadoria de Rosberg em 1986, o brilho entre os pilotos passa a se concentrar num quarteto que se tornaria legendário: Nelson Piquet, Alain Prost, Nigel Mansell e Ayrton Senna. Juntos eles venceriam todos os campeonatos entre 1985 e 1993, abocanhando 117 das 144 corridas disputadas no período.

Em 1991, aos 39 anos de idade e já um consagrado tricampeão do mundo, Nelson Piquet vê seu amigo de infância Roberto Pupo Moreno ser substituído na Benetton pela nova estrela alemã, Michael Schumacher, com o suporte da Mercedes Benz. Rápido e abusado, Schumacher se expunha a riscos aos quais um pai de família como Piquet já não via sentido em assumir. Nas cinco provas em que dividem o mesmo boxe, Schumacher vence nas qualificações, enquanto Piquet soma mais pontos. Ao fim do ano o brasileiro se aposenta, diante da falta de um cockpit competitivo. E, assim, como havia sido falado de Lauda em relação ao mesmo Piquet, 12 anos antes, agora era ele quem havia “sido aposentado” por um jovem talento.

Em 92 e 93 Schumacher confirma a fama de piloto de ponta, mas é apenas em 1994, com a introdução dos reabastecimentos e ao volante de um carro sabidamente irregular, que ele passa a vencer consistentemente. Na terceira corrida do ano, o piloto mais rápido produzido pelo esporte a motor desde Jim Clark, e único capaz de impedir o título de Schumacher, encontra a morte no muro da Tamburello. Sem Ayrton Senna na pista, o alemão domina por completo este e o próximo campeonato, antes de se transferir para a renovada Ferrari, abrindo as portas para o estabelecimento de uma longa hegemonia. A Fórmula 1 vive uma crise de inspiração por parte de seus pilotos.

Adrian Newey consegue adiar o domínio de Schumacher por quatro anos, com a competente contribuição de Damon Hill, Jacques Villeneuve e Mika Häkkinen. A partir do ano 2000, no entanto, Schumacher inicia um incrível período de domínio que irá durar cinco temporadas, será ameaçado apenas em 2003 por um frio e rapidíssimo finlandês chamado Kimi Räikkönen, e lhe renderá o monopólio de todos os recordes absolutos na história da categoria. A ausência de adversários a altura, antes de relativizar os números obtidos pelo alemão, é exaltada como um mérito unicamente seu. Da mesma forma, qualquer ponderação que considere o peso do contexto – primazia constrangedora dentro da Ferrari, privilégios no desenvolvimento dos pneus, e manutenção dos reabastecimentos – na produção de suas estatísticas, é rapidamente taxada como fanática e infundada. Fãs e admiradores de pilotos do passado são ridicularizados, especialmente aqui mesmo, no Brasil. Vive-se o fim da história.

O melhor de todos os tempos chama-se Michael Schumacher, e os números estão aí para não deixar mentir. Eis então que em 2005 alguém decide proibir as trocas de pneus, e a máquina de vencer tedesca volta, num estalo, ao papel de coadjuvante de luxo que havia desempenhado até 1994. No mesmo ano aflora de maneira arrasadora o talento de um brilhante asturiano, que no ano seguinte iria batê-lo num confronto direto, já com a F1 de volta às fartas trocas de pneus. Após vencer em Monza Schumacher anuncia sua aposentadoria, e quando Alonso o derrota na briga pelo título, não são poucas as vozes a sussurrar que ele havia “sido aposentado” pelo espanhol. A Fórmula 1 se renova coincidentemente após a aposentadoria de Schumacher. Em 2007 faz sua estreia pela McLaren o festejado campeão da GP2, Lewis Hamilton, e quando o não menos brilhante polonês Robert Kubica escapa da morte num terrível acidente em Montreal, é dada uma chance ao talentosíssimo e imberbe alemão Sebastian Vettel.

Vinte anos depois, a F1 voltava a ser governada por um punhado de talentos de primeira grandeza. Räikkönen conquista a taça em 2007, seguido por Hamilton em 2008 e Button em 2009. Três novos campeões em três anos seguidos, e para os fãs de Schumacher a volta do equilíbrio se explica claramente pela ausência do melhor de todos. Vem então 2010, e o heptacampeão mundial, a exemplo do que fizera Niki Lauda 28 anos antes, anuncia sua volta às competições. A equipe é a Mercedes, que 19 anos atrás havia patrocinado sua entrada na categoria, e que apenas alguns meses antes havia adquirido o time campeão mundial de pilotos e construtores. Apesar do reabastecimento ter sido banido, de já não haver mais qualquer privilégio em relação ao desenvolvimento dos pneus, e de aparentemente a concorrência ter se tornado muito mais forte, a expectativa em relação ao desempenho do detentor de todos os recordes é imensa. E tudo termina num grande fiasco.

O desempenho constrangedor de Michael Schumacher na Turquia, incluindo aí algumas atitudes condenáveis que nada têm a ver com seu eventual déficit físico em relação aos mais jovens, convida alguns observadores mais antigos desse esporte a uma pequena viagem no tempo. Com que desrespeito foi tratado um gênio como Piquet – autor da mais bela manobra de ultrapassagem da história – na época de sua aposentadoria! O mundo deu suas voltas e cá estamos nós, diante do agora experiente Schumacher, sendo sistematicamente batido por um jovem piloto que, convenhamos, é excelente, mas não é nenhum fenômeno. Com que injusta naturalidade se avaliou o retorno triunfante de Niki Lauda da aposentadoria!

Foi preciso que outro grande campeão tentasse a mesma coisa, quase três décadas depois, para que um parâmetro de comparação seguro nos desse a real medida do feito deste lendário austríaco. Não, nada que aconteça nas próximas corridas poderá apagar tudo que o heptacampeão fez em seus anos de glória, nem tampouco seria justo riscar seu nome da lista dos maiores pilotos de todos os tempos. Todavia, é mais do que hora de se olhar para trás e encarar com um pouco mais de respeito os feitos dos grandes ases do passado, cuja memória foi tão injusta e sistematicamente apequenada por analistas de calculadora na mão durante os últimos anos. A começar pelo próprio Schumacher, que na última edição da Race of Champions desdenhou publicamente de ninguém menos que Alain Prost.

Numa época em que o homem mais poderoso do mundo é o primeiro a zombar do conceito de justiça, a volta de Schumacher à F1, nas condições em que isso está se dando, não deixa de soar como uma reparação de algo que não estava correto.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

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