LEMBRANÇAS DE HOCKENHEIM

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OS BONS E OS MAUS
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Não é um assunto muito explorado, mas creio que poucos circuitos despertaram sentimentos tão contraditórios quanto Hockenheim.

Para quem acompanhava Fórmula 1 nos anos 60, a lembrança é trágica: foi ali que morreu Jim Clark, o piloto mais destacado da época. Para muitos fãs dos anos 90, que não vivenciaram e nem têm idéia do trauma causado pela morte de Clark (para quem não sabe, foi tão grande para a época quanto o causado três décadas depois pela morte de Ayrton Senna), Hockenheim era uma das poucas pistas “diferentes” da F 1 antes da reforma feita entre os GPs de 2001 e 2002.

Duas longas retas, ligadas por uma curva longa de alta velocidade em um lado e uma série de “ridículas” curvas de baixa no outro – era mais ou menos essa a descrição que o jornalista neozelandês Bill Gavin fez de Hockenheim em seu livro “A História de Jim Clark”. Descontando o aspecto subjetivo do “ridículas”, era isso mesmo. Até 2001, era um traçado em que a potência do motor era fator chave para vencer. A resistência também era primordial, pois os motores trabalhavam em regime máximo de rotação durante 80 a 90% do tempo de volta.

Em 1970, quando a Fórmula 1 correu em Hockenheim pela primeira vez, o traçado já havia recebido chicanes para ficar menos perigoso. Em 1977, Hockenheim assumiu definitivamente a condição de circuito-sede do GP da Alemanha no lugar de Nurburgring – o velho, com 22,8 km de extensão (o traçado usado atualmente pela F 1 seria inaugurado somente em 1984). Mas nunca foi apreciado pelos pilotos. Em 1979, Jody Scheckter comentou: “Quanto mais eu corro em Hockenheim, mais eu tenho saudades de Nurburgring. Era uma pista que exigia muito do piloto, enquanto em Hockenheim conta apenas o carro”.

Nada disso passou pela minha cabeça quando fui a Hockenheim para cobrir o GP da Alemanha de 1993. Sequer me lembrei das mortes de Clark ou de Patrick Depailler – esta, ocorrida em 1980. Eu não tinha qualquer expectativa especial ao ir para essa pista – ao contrário do que havia acontecido em Donington, onde eu esperava ansiosamente a oportunidade de visitar o museu local (veja mais no especial “10 Anos sem Senna”) e do que aconteceria com a “catedral” de Monza (a pista de F 1 que eu mais desejava conhecer).

Ao chegar a Hockenheim, meu sentimento começou a mudar. Primeiro, porque a parte do “stadium” não tem paralelo com nenhum outro autódromo do mundo. Também era diferente o posicionamento da sala de imprensa – localizada no lado externo da reta dos boxes, e não em cima destes como é habitual. Um túnel estrategicamente localizado possibilita a movimentação entre a sala de imprensa e a área de boxes e paddock.

Em dado momento, resolvi verificar o que havia no lado de fora das arquibancadas.Ao sair, vi à minha direita um hotel e, à minha esquerda, uma alameda com barracas nas quais podia-se comprar livros, camisetas, pôsteres, bandeiras, faixas e tudo o mais que se relacionasse com Fórmula 1. Havia também quiosques nos quais era possível comer sanduíches tipicamente alemães. Um alambrado separava essa alameda de uma área de acampamento. Nesse local existe o museu de Hockenheim. Menor e menos interessante que o de Donington, mas ainda assim vale uma visita. Era quinta-feira, um dia antes do primeiro treino, mas a movimentação dos espectadores já dava um clima muito agradável a esse local. Hockenheim havia me conquistado.

No sábado à noite, tive uma experiência interessante: dar uma volta pela pista. Na verdade, aconteceu por puro acaso. Eu voltaria à (bela) cidade de Heidelberg, onde estava hospedado, de carona no Ford Escort que havia sido alugado por Mário Andrada e Silva, na época repórter do “Jornal do Brasil”, e Flávio Gomes, da “Folha de S. Paulo”. Tarde da noite (devia ser nove e meia ou dez horas), Mário e eu fomos pegar o carro enquanto Flávio terminava de resolver alguma coisa na sala de imprensa. Estava muito escuro e não havia sinalização. Mário, ao volante, entrou na primeira saída que apareceu livre e, quando demos conta, estávamos no meio da reta dos boxes.

É claro que não perdemos a oportunidade: Mário completou a volta e pudemos percorrer as longas retas que davam a impressão de serem infinitas no meio da floresta. Quando voltamos, encontramos o Flávio, que evidentemente também fez questão de dar seu passeio. Eu sempre havia ouvido relatos da sensação que Hockenheim proporcionava aos pilotos: sair da agitação do stadium e entrar no trecho da floresta, cercado de árvores e sem qualquer público, quase em silêncio se não fosse o barulho do motor. De noite, porém, a sensação ao percorrer a floresta era hipnótica, quase lisérgica – principalmente por causa do espetáculo causado pelos pequenos animais que às vezes atravessavam a pista na nossa frente: a luz dos faróis refletia nos olhos deles. Como eram muitos e variados, esses reflexos proporcionavam um colorido fugaz que se alterava constantemente na escuridão. Era como olhar em um caleidoscópio, só que muito mais divertido.

Durante um intervalo entre dois treinos, presenciei uma cena interessante. Fiquei no meio de várias pessoas que observavam o trabalho da equipe no fundo do box, com os portões abertos. Lá dentro, Ayrton Senna conversava com um engenheiro e Michael Andretti com outro. Pelas expressões dos quatro envolvidos, certamente era uma reunião importante para o treino seguinte. Após alguns minutos, um espectador passou por baixo do cordão de isolamento, entrou no box, aproximou-se de Andretti e pediu-lhe para autografar uma revista. O norte-americano mal olhou para o rapaz: continuou conversando com o técnico da McLaren enquanto rabiscava seu nome. O torcedor agradeceu e aproximou-se de Senna com o mesmo intuito. Imaginei que Senna agiria como seu companheiro de equipe, mas em vez disso o brasileiro parou a conversa e começou a falar alguma coisa ao rapaz, ao mesmo tempo em que apontava o lado de fora do box. O rapaz mostrava a revista e estendia a caneta, insistindo que desejava apenas um autógrafo, mas Senna se manteve irredutível. A discussão durou quase cinco minutos, até que o torcedor saiu do box – sem o autógrafo de Senna.

Aquele GP da Alemanha de 1993 acabou sendo uma das corridas mais movimentadas da temporada. Prost passou reto em uma chicane e Senna rodou no mesmo local. O francês não perdeu muito tempo, mas Senna caiu para os últimos lugares. Prost recuperou-se e liderou até ser obrigado a fazer um stop and go por ter passado reto na chicane. Damon Hill assumiu a liderança e teve a vitória nas mãso até faltarem duas voltas para o final, quando um pneu estourou. Com isso, Prost ganhou a corrida de presente.

É claro que ninguém poderia imaginar, mas a bandeirada para Prost, que parecia ser apenas parte da rotina do campeonato de 1993, acabou sendo histórica: aquela foi a última das 51 vitórias de Prost na Fórmula 1. Atrás do francês terminou justamente o piloto que, menos de dez anos depois, superaria aquele recorde: Michael Schumacher.

Hoje, um passeio como o daquela noite de 24 de julho seria impossível. A reforma feita em 2001 cortou o circuito e eliminou boa parte do trecho da floresta. Hockenheim tornou-se uma pista com um traçado comum, idêntico ao de qualquer circuito contemporâneo. O trecho eliminado teve o asfalto quebrado, justamente para que a vegetação voltasse a crescer. Muitos atribuem essa mudança à FIA e sua sanha pela padronização dos autódromos, mas neste caso a entidade não teve a menor culpa. A mudança em Hockenheim foi feita após um acordo entre a administração do autódromo e os ecologistas alemães, que usaram toda sua força política em uma campanha pela preservação da floresta. Para mim, entretanto, Hockenheim será sempre aquela que conheci em 1993 – assim como o autódromo de Interlagos permanecerá em minha memória com o traçado que tinha até 1989.

Luiz Alberto Pandini
GPTotal
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

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