Antes de mais nada, um registro. Neste mês de agosto, o GPtotal completa três anos de idade. Faltou pouco para a data passar despercebida: plenamente dedicados aos compromissos profissionais, eu e o Edu quase esquecemos da efeméride – ela só foi lembrada no começo da semana, quando nos falamos por telefone.
Nesses três anos, o GPtotal cresceu, ganhou amigos, agregou colunistas de valor (Alessandra, Divila, Ico, Miguel e Tite) e teve ótimos momentos proporcionados pelos leitores que mandaram suas dúvidas, histórias, vivências e lembranças. Tivemos reconhecimentos diversos e dois deles resultaram em parcerias muito frutíferas, como os sites Grande Prêmio, do Flávio Gomes, e agora o F1 na Web, de Ricardo Perrone. E novos desafios estão sempre colocando à nossa frente.
Para quem quiser saber um pouco mais sobre a história do GPtotal, uma boa pedida é acessar as colunas que eu e o Edu escrevemos em agosto dos anos passado e retrasado. Vale a pena.
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Alguém aí consegue imaginar um Grande Prêmio de Fórmula 1 sendo cancelado por falta de segurança na pista? Pois é, já aconteceu – e, por incrível que pareça, sem maiores traumas. Esse GP foi o da Bélgica de 1985, no mesmo circuito de Spa-Francorchamps que receberá a Fórmula 1 no próximo domingo, depois de um ano ausente do calendário por causa da estupidez de certos políticos belgas e dos cartolas da FIA.
O GP da Bélgica de 1985 deveria acontecer no domingo, dia 2 de junho. Mas a realização dos treinos de sexta-feira, dia 31 de maio, foi suficiente para mostrar que não havia a menor condição de a corrida ser realizada. Os administradores do circuito haviam cometido o erro de recapear a pista em data muito próxima à da realização da prova, sem dar o devido tempo para que o asfalto ficasse “curado” – ou seja, em plenas condições de uso.
No final do primeiro treino classificatório (lembre-se que naquela época havia dois, um na sexta e outro no sábado), começaram a aparecer buracos em vários pontos da pista. Situações semelhantes já haviam acontecido antes: nos GPs da Bélgica de 1973, em Zolder, do Brasil de 1977, em Interlagos, e de Dallas (Estados Unidos) de 1984. No primeiro caso, houve muita polêmica mas os pilotos acabaram correndo. Em Interlagos, o problema apareceu durante a corrida e estava localizado em um único ponto – o final do retão, justamente o mais veloz. A corrida prosseguiu normalmente e oito carros acabaram batendo em diferentes acidentes. E na pista de Dallas o problema surgiu nos treinos de sábado, com os organizadores tapando os buracos com cimento de secagem rápida e cancelando o warm-up na manhã da corrida, a fim de dar mais tempo para que o cimento ganhasse consistência. Como era uma pista de rua e de baixa velocidade, a solução paliativa foi aceita.
Mas em Spa-Francorchamps era diferente. As altíssimas velocidades tornavam uma loucura a idéia de disputar uma corrida sem que a pista estivesse em perfeitas condições. Bastava raspar a sola dos sapatos para esfarelar o asfalto. Diante disso, nem houve muita discussão: logo no sábado de manhã, os organizadores belgas anunciaram a decisão de cancelar a corrida. Bernie Ecclestone não gostou muito: afinal, os direitos de TV já estavam vendidos. Mas os belgas cobriram as despesas de viagem das equipes, o que acabou contentando a todos.
Semanas depois, a FIA anunciou uma nova data para o GP da Bélgica: 15 de setembro, sendo a 13ª etapa do campeonato. Nesse intervalo, porém, acontecimentos diversos tornaram o GP da Bélgica de 1985 muito diferente do que ele poderia ter sido se fosse disputado na data original.
No treino oficial de 31 de maio, o melhor tempo (1:56.046) havia ficado com a Ferrari de Michele Alboreto, seguido pelos Lotus de Elio de Angelis (1:56.277) e Ayrton Senna (1:56.473). Alain Prost ficou com o último tempo, em função de um problema elétrico em seu McLaren. É claro que ele poderia melhorar sua posição no grid durante o treino oficial de sábado, mas o fato de praticamente não ter conseguido treinar na sexta já configurava uma desvantagem.
Naquela altura, após quatro etapas disputadas, Elio de Angelis era o líder do campeonato com 20 pontos, enquanto Alain Prost e Michele Alboreto ocupavam o segundo lugar com 18. Havia um equilíbrio entre McLaren e Ferrari, com esta última se mostrando ligeiramente mais competitiva.
Em setembro, quando as equipes chegaram a Spa para finalmente disputar o GP da Bélgica, o panorama era completamente diferente. Para começar, dois pilotos haviam morrido em corridas do Mundial de Esporte-Protótipos: os alemães Manfred Winkelhock, da RAM, e Stefan Bellof, da Tyrrell. Este, um dos pilotos mais talentosos e promissores da nova geração, estava cotado para assumir um lugar na McLaren em 1986. Morreu justamente em Spa, ao tentar uma ultrapassagem ousada demais sobre o ídolo belga Jacky Ickx na perigosa curva Eau Rouge.
Entre as equipes de ponta, o panorama também estava bastante mudado em relação ao de três meses antes. A Ferrari estava em queda livre, a McLaren havia melhorado ainda mais o seu carro e Prost liderava o campeonato com certa folga. Apenas uma semana antes, o francês havia vencido o GP da Itália, uma corrida que escancarou a deficiência técnica da Ferrari. Alboreto navegou entre o quarto e o sétimo lugar, sendo ultrapassado por praticamente todos os pilotos que chegavam nele, até abandonar no final por problemas no motor. Dá para imaginar como estava baixo o moral da Ferrari para o GP da Bélgica. E a Williams, que havia tido atuações discretas nas primeiras corridas do ano, acertou a mão no segundo semestre e vinha crescendo rapidamente.
Prost conseguiu a pole position (1:55.306) e dividiu a primeira fila com Senna. Na segunda, apareciam Nelson Piquet e Alboreto. No dia da corrida, como é freqüente em Spa, a chuva apareceu. A largada foi dada com pista molhada e Senna assumiu a ponta antes mesmo da primeira curva, a La Source, seguido por Piquet. A expectativa por uma briga brasileira durou apenas uma curva: Piquet rodou na saída da La Source e caiu para último. Recuperou-se bem e ficou em quinto, mas não dava tempo para buscar mais posições.
Senna ficou tranqüilo na frente e liderou praticamente de ponta a ponta – perdeu o primeiro lugar apenas brevemente, quando a pista começou a secar e ele, como todos os demais pilotos, precisou parar para colocar pneus slick. Alboreto abandonou logo na terceira volta por pane na embreagem e Prost, mais preocupado em marcar pontos no campeonato (que seria conquistado na corrida seguinte, o GP da Europa), sequer brigou muito quando Nigel Mansell se aproximou para tomar o segundo lugar.
É impossível deixar de comparar os fatos envolvendo o GP da Bélgica de 1985 com os do GP da Espanha de 1975. Emerson Fittipaldi boicotou a corrida, disputada no circuito de rua de Montjuich (próximo a Barcelona), por falta de segurança na pista. Só não foi suspenso pela FIA porque os acidentes acontecidos durante a corrida (um deles causando a morte de espectadores) mostraram que o brasileiro estava com a razão.
Naquele dia 1º de junho de 1985, ficou claro para todos que a F 1 já não era mais um palco para demonstrações de coragem a qualquer custo. Ela se tornara um esporte muito mais profissional, com tudo o que isso tem de bom e de ruim. Muitos encantos da velha fase tiveram que ser deixados de lado em nome da segurança e do profissionalismo, e alguns deles fazem falta até hoje. Mas sempre chego à mesma conclusão ao analisar as duas situações: os ganhos acabam compensando as perdas.
Luiz Alberto Pandini |