O mestre de Fangio – parte 5

O mestre de Fangio – parte 4
09/01/2019
O mestre de Fangio – parte 6
25/01/2019

Continuando a temporada de 1931. (leia as partes anteriores clicando aqui)

Achille passou em branco na Mille Miglia, tendo que abandonar cedo com uma T50. Essa foi a famosa MM vencida por Caracciola, conduzindo a SSKL.

O Automobile Club de Monaco convidava participantes para seu GP e formava um seleto grupo de 28 pilotos. Entre eles estava, por exemplo, o German Bugatti Team, composto por Ernst-Günther Burgaller e Heinrich-Joachim von Morgen, ambos com T35B de 2,3L e o Príncipe Herman zu Leiningen, com uma T35C de 2,0L.  O outro alemão era Rudolf Caracciola, piloto oficial da Mercedes, portanto recebendo apoio de fábrica e tendo o futuramente legendário Alfred Neubauer como gerente da equipe. Convém ressaltar que Alfred era contrário à participação da SSKL em Monaco, por ser um circuito em que sua relação peso/potência era desfavorável, mas Rudolf se sentiu na obrigação de atender ao convite.

Da Grã-Bretanha vinha Earl Howe, o primeiro competidor independente a receber uma Bugatti 2,3L com duplo comando. Da Italia vinha a equipe oficial da Alfa Romeo, com duas 6C 1750 GS para Arcangeli e Borzacchini. Para Tazio levou uma das novas 8C 2300 que tinham estreado nas Mille Miglia na semana anterior. A Maserati oficial trouxe três 2,5L para Biondetti e Dreyfus, sendo uma com chassis curto para Fagioli. A Scuderia Ferrari inscreveu uma Alfa 6C 1750 GS para Goffredo “Freddy” Zehender.

A Bugatti veio com força total, quatro T51, para Chiron, Varzi, Divo e Guy Bouriat. Além disso havia um esquadrão de competidores independentes com Bugattis menos recentes.

Devido aos recentes problemas com pneus fornecidos pela Pirelli a Alfa tentou suspender o contrato de fornecimento para usar os Dunlop que equipavam seus concorrentes, mas não houve acordo. E assim a fabricante milanesa acabou decidindo não competir.

Obviamente a Bugatti passou a ser ainda mais favorita. Os carros oficiais se mostraram os mais rápidos nos treinos. Instado a explicar isso, Jean Bugatti, filho de Ettore, diz: “A duplicidade faz durar mais, mesmo que seja apenas um comando de válvulas”).

A regra das 10 horas de duração com dois pilotos se revezando foi deixada de lado, com a corrida se estendendo por 100 voltas.

O sistema de alocação para as posições de largada colocou os favoritos bem espalhados.

Dreyfus na primeira fila, Divo e Caracciola na segunda, Biondetti na terceira, Chiron e Varzi na quarta, Fagioli e Zehender na quinta. O resto do grid era formado pelas equipes independentes, com suas Bugattis, Maseratis e Alfas menos competitivos. Dreyfus aproveitou bem sua posição e assumiu a ponta, seguido por Williams (Bugatti 2,0L de uso pessoal), Hans Stuber (suíço especialista em subida de montanha, com Bugatti 2,0L), o argelino Lehoux e Caracciola.

Na volta seguinte Caratsch passa à frente de Lehoux que é seguido por Varzi, Biondetti e Fagioli, com Chiron uma posição atrás deste. Divo se atrasou, ficando mais 3 posições abaixo. Bouriat, com a última T51 tinha largado na penúltima fila e estava em antepenúltimo.

Mais uma volta e Lehoux repassa Caratsch, o resto continua igual.

Antes do fim da 4a. volta Williams consegue passar Dreyfus e Varzi faz o mesmo com Caracciola.

Na 5a. a ordem era Williams, Dreyfus, Lehoux, Varzi, Caracciola, Fagioli, Biondetti e Chiron.

Na seguinte Williams vai aos boxes. Constatada uma mola de válvula quebrada, ele não tem alternativa senão abandonar.

Na 8a. volta Varzi passa Lehoux. Mais uma volta e Varzi assume a liderança. Ele e Chiron eram os mais rápidos. Lehoux, com a 35B com que tinha brilhado na Tunísia era o terceiro, Fagioli e Chiron o seguiam, depois Caracciola, Biondetti, Bouriat e Divo.

Na volta 12 Dreyfus cai para quarto. Na volta 15 Lehoux chega aos boxes com o cambio em pedaços. Na 17 Fagioli passa Dreyfus.

Mais três voltas e a ordem era Varzi, Chiron, Fagioli, Dreyfus, Caracciola, Bouriat, Divo, Biondetti.

Na volta 24 Bouriat ultrapassa Caracciola e Dreyfus vem para os boxes. Tem uma tubulação de óleo quebrada e o conserto o faz perder 8 minutos, o que o deixa 4 voltas atrás do líder.

Divo mantém um interessante duelo com Caratsch.

A SSK era muito rápida mas, pesada e longa, perdia nos trechos mais sinuosos o que ganhava na subida, devido a agilidade da relativamente pequena Bugatti.

Na 29a. Achille acerta a roda dianteira esquerda em uma guia pouco antes do túnel e tem o pneu e a roda de alumínio estourados. Chega aos boxes em três rodas, cuidando para que a roda ferida não danificasse o tambor de freio. É devolvido à pista 4 minutos depois, mas obviamente suas chances de vencer praticamente desaparecem. Agora é o colega Chiron quem lidera. O único piloto monegasco liderando a corrida de casa! A platéia vibra. Na 30a. volta a ordem era: Chiron, Fagioli, Bouriat, Caracciola, Divo, Varzi, Biondetti.

Na 39a. Divo vai para os boxes com problemas na embreagem e Achille passa por ele, enquanto Bouriat tenta se aproximar de Fagioli, 30” à frente.  

Com média acima de 86 km/h a vantagem de Chiron aumentava gradativamente.

Divo, que tinha voltado à pista, retorna aos boxes e é ultrapassado por Howe.

A ordem na volta 50, metade da corrida, era Chiron, Fagioli, Bouriat, Varzi, Howe, Divo, estes dois já duas voltas atrás.

Na volta 53 somente Fagioli e Bouriat estavam na mesma volta que ele e na seguinte Varzi toma uma volta completa. Caratsch tinha parado, com problema em um rolamento da embreagem na SSK. Os cinco primeiros eram Chiron, Fagioli, Bouriat, Varzi, Divo, Howe.

Na volta 63 um tubo de óleo do motor de Howe quebra e despeja o fluído no chão, resultando em uma derrapagem espetacular na entrada do Gasometro.

Na 70 a novidade era Bouriat em segundo, Divo finalmente abandonando.

Fagioli estava tendo problemas com a pressão do combustível, sendo obrigado a bombear manualmente. Ou seja, fazia as curvas com uma mão no volante enquanto a outra bombeava.

Apesar disso ele consegue igualar a melhor volta de Chiron, 2’07”, na volta 84.

Bouriat precisa ir aos boxes para trocar velas e perde o segundo lugar. Na 88 é a vez de Achille igualar os 2’07”.

Na volta 90 restam apenas 10 carros na pista, mas Dreyfus abandona na 97, com problemas no magneto.

A ordem final: Chiron, batendo o recorde de tempo de prova, com 3h39’9,2”, Fagioli, Varzi, Bouriat.  Chiron mal consegue terminar a volta de desacelaração com a pista se afunilando, tomada por um público em plena euforia.

Alguns meses depois surgiu a tese de que houve um erro de cronometragem e que a corrida tinha sido encerrada na volta 99. Isto teria prejudicado diretamente Achille, que tinha ultrapassado Fagioli na volta de desaceleração que talvez não fosse de desaceleração mas os resultados oficiais foram mantidos.

Em Alessandria, Achille era o único representante da Bugatti, novamente com sua T51 vermelha de 2.3L, mas inteiramente revisada na fábrica, em Molsheim. Consta que a revisão terminou no dia anterior aos treinos e o carro foi rodando até Alessandria. Fagioli iria liderar a Maserati oficial, sendo acompanhado por Pietro Ghersi, Umberto Klinger e Luigi Castelbarco, que tinha vencido uma corrida de 6 horas em Túnis. Todos com 26M. René Dreyfus estava escalado como reserva.  

A Scuderia Ferrari representaria a Alfa, com uma 8C 2300 em versão Grand Prix a cargo de Tazio.

Consta que Meo Constantini e Chiron estavam presentes, discretamente, para observar o desempenho desse carro. Arcangeli iria com uma 1750 e havia uma outra para Francesco Severi. Alfredo Caniato, co-fundador da Ferrari, iria com uma 1500. O Deutsches Bugatti Team também foi convidado e compareceu com duas 35B de 2.3L (Burgaller  e von Morgen) e a 35C de 2.0L para o príncipe Hermann zu Leiningen).

Achille larga na 2a. fila e Fagioli imediatamente à sua frente. Mas logo o galliatese assume a ponta perseguido por Fagioli. Nuvolari com a Alfa 8C tem que ultrapassar 7 concorrentes para encostar nos líderes. Na volta 3 Luigi tem que encostar sua 26M com o câmbio quebrado, deixando o segundo posto para o mantuano. A Bugatti se mostra claramente superior, a Alfa vai perdendo um segundo por volta até que quebra o diferencial na 10a. volta.

Sem seus principais rivais, Achille cruza para uma vitória absolutamente segura. Poderia dizer que o único problema que teve foi a poeira em seu belo macacão azul e, digamos, capacete branco de pano, mas uma pedra voadora acertou sua sobrancelha esquerda felizmente sem machucar o olho.

A Targa Florio era reconhecidamente a corrida mais difícil da Europa. As estradas sicilianas de montanha estavam longe de ser as melhores do mundo. Isso no seco, imagine debaixo de um aguaceiro. E a partir da segunda volta as comportas de S. Pedro se abriram completamente, permanecendo assim por mais três.

A Alfa tinha se apresentado com força máxima, cinco carros. A Maserati veio com 3 e Varzi se apresentou novamente com sua T51 vermelha. Mas alguém da Alfa deve ter se informado melhor sobre as condições climáticas e elas estavam equipadas com paralamas dianteiros. Esse dispositivo simples evitava que a lama fosse parar na cara dos ocupantes dos carros, mantendo seus goggles limpos o suficiente para não atrapalhar a visão. Enquanto a pista esteve seca, Achille se manteve na liderança, com a matilha de Alfas no seu encalço. Fagioli derrapou na entrada de uma ponte e bateu no parapeito, deixando o eixo traseiro em forma de U e quebrando alguns dentes. Na volta seguinte, Biondetti praticamente repete o acidente de Fagioli, com a visão encoberta pela lama. Dreyfus, o único não italiano, desistiu faltando 1/4 da prova, sem chances devido a muitas paradas para troca de velas e cansaço.

Nuvolari e Borzacchini fizeram 1-2 para a Alfa. Achille chegou em terceiro, inteiramente recoberto de lama, Campari em quarto.

O GP da Italia (Monza), primeira prova do campeonato europeu, seria cumprido de acordo com as novas regras, 10 horas, 2 pilotos por carro. Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar mas… existem evidências em contrário. Durante os treinos da véspera Arcangeli queria muito testar a nova Alfa 12 cilindros. Por volta das 12:30, quando Jano e os demais pilotos tinham ido almoçar, Arcangeli pediu autorização ao team manager  Prospero Gianferrari para dar algumas voltas, a titulo de experimentar dirigibilidade e aceleração. Ele dá uma volta mas não aparece para completar a segunda. Logo vem a info de que uma Alfa saiu da pista na Curva del Violone.

A reconstituição do acidente, que não teve testemunhas, concluiu que Arcangeli começou uma derrapagem controlada em alta velocidade mas, quando acelerou para aprumar a trajetória correta, algo aconteceu e ele não conseguiu. O carro bateu em uma árvore, bateu em uma segunda, ele foi ejetado, sofreu ferimentos fatais na cabeça e morreu na hora.

Isto tinha acontecido em 1923, no mesmo lugar, do mesmo jeito, com Ugo Sivocci, com Alfa P1.

Consta que a Alfa considerou se retirar mas recebeu um telegrama direto de Mussolini ordenando que não apenas competisse mas vencesse. Era essencial para o prestígio italiano, segundo a ótica governamental, que um carro italiano (e não um francês) vencesse o GP de casa.

Em 1923 a Alfa tinha se retirado.

Varzi se encarrega do primeiro turno, lidera e se mantém assim até completar 2 horas. Chiron assume mas logo tem que parar, com o diferencial quebrado. Achille é então acoplado à dupla Divo-Bouriat e os ajuda a obter um terceiro. Como o sistema de pontuação era por penalização, quem abandonava somava mais pontos, quem terminava menos, essa medida compensou um pouco o prejuízo da quebra. O mesmo ocorreu com Nuvolari. A Alfa 3,5 12 cilindros Tipo A que dividia com Borzacchini quebrou e ambos foram realocados. Tazio venceu em dupla com Campari em uma 8C 2,3 e Borzacchini em segundo com Ferdinando Minoia em outra 8C. Alfieri Maserati, percebendo após a Targa Florio que seus carros não estavam à altura das novas Bugatti e Alfa, não participa oficialmente.

No GP de Roma, disputado no novo autódromo de Littorio, equivalente ao alemão AVUS, o contrário ocorre. A Maserati vem completa, Alfa não manda nem a Scuderia Ferrari. Varzi entra como independente, Nuvolari com a velha 35B de sua própria equipe TN, mas ambos quebram. Ernesto Maserati vence com a grande V4, 4,0L.

Achille participa pela primeira vez das 24 horas de Le Mans, em dupla com Chiron, mas na volta 26 seu colega de equipe Maurice Rost sai da pista, matando um espectador e ferindo três. A Bugatti decide se retirar.

Em breve mais um capítulo.

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

2 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Excelente Chiesa!

    A cada texto, vai ficando cada vez melhor.

    Que época!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Carlos Chiesa disse:

      Muito recompensador seu comentário, Mauro. Também acho que foi uma época sensacional. Sem dúvida a matriz
      da F1 pós 2a. Guerra está lá e gente como nós se maravilha ainda com as façanhas de Fangio, Moss etc..
      Estou me divertindo muito desenvolvendo este trabalho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *