O POVO NO PODER

COMEÇOU O CAMPEONATO 2005
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GIGANTES
03/09/2004

Uma das características mais impressionantes de Juan Manuel Fangio era sua imponência ao discursar. A fala pausada e a auto-confiança que transmitia o ajudaram muito a se transformar em um mito. Não importa onde estivesse, suas palavras eram sempre proferidas no então ultra-exótico castelhano, o que deixava as platéias ainda mais admiradas. O argentino até arranhava um italiano, mas deixava que seu público se virasse para entendê-lo. Afinal, ele era O Fangio. Sem falar que atingiu o ápice de sua carreira com mais de 45 anos, numa época em que a experiência contava muito na Fórmula 1, ao contrário de hoje.

Outros campeões mundiais também se destacaram por saber transmitir em palavras todos os permeios que formam um grande piloto, como Jackie Stewart, Emerson Fittipaldi, Niki Lauda. E não podemos esquecer de Ayrton Senna, que trouxe o discurso metafísico ao automobilismo (visões de Deus, corpo que se derrete no cockpit) e ganhou com isso tantos admiradores quanto detratores. Eram sensações tão estranhas ao homem comum, coisa de gente com alma tão impenetrável quanto misteriosa. Isto deixou muitas vezes no ar a sensação que é preciso ter um dom especial para ser um grande piloto. É como se fosse um desperdício, um erro se interessar por outra atividade, diante de tanto talento para domar a máquina e escravizar o cronômetro.

E tem Michael Schumacher, oriundo da classe média-baixa alemã e detentor de pelo menos ¾ de todos os recordes que alguém se dispuser a imaginar na Fórmula 1. No último domingo, quando obteve a incrível marca de sete títulos mundiais, o piloto ostentava a mesma tranqüilidade e simplicidade de alguém que ganhou um torneio regional de truco. Diante da insistente tentativa dos repórteres em captar a emoção do momento histórico, o piloto se saiu com esta: “Só estou meio perdido em pensamentos. Foi, em parte, um dia caótico. Sou heptacampeão e tenho de admitir que a ficha ainda não caiu. Infelizmente não sou nenhum poeta, que encontra as palavras certas para expressar seus sentimentos”.

É impressionante como Michael Schumacher se humanizou desde 2000, quando tirou de suas costas o peso da responsabilidade de tirar a Ferrari da fila. Repare: desde então, o alemão nunca detalhou em suas entrevistas o que pensa sobre suas habilidades técnicas, nunca fez discursos filosóficos sobre sua capacidade de concentração, nunca louvou seu triunfo sobre este ou aquele inimigo.

Pelo contrário, se tornou mais um homem de família e sempre creditou seu sucesso à todos que o cercam, de Jean Todt até a faxineira de Maranello. Ao dividir os louros da vitória, fez a opção clara de despir a vestimenta de semi-Deus e foi curtira vida. Suas atividades extra-pista se tornaram prosaicas: bater bola com os amigos (e também com Zico, Zidane, Ronaldinho, Robinho e Figo, afinal ele pode); levar os filhos à Disneilândia (onde consegue andar incógnito); passear, também protegido pelo anonimato de um capacete, com sua Harley Davidson pelas estradas européias; tomar uma cerveja e fumar um cigarro todos os domingos após as corridas, em uma sala reservada no motorhome da Ferrari para o ritual sagrado de um homem normal após um dia duro no escritório.

Infelizmente no Brasil, especialmente pela parca cobertura feita pela emissora detentora dos direitos de transmissão, a imagem de Schumacher vive deturpada. Em toda a Europa, especialmente na Itália e na Alemanha, todos vibram com a habilidade ao volante de um homem que, por seus hábitos (futebol, cerveja, família), podia ser um colega de trabalho. Com sua disciplina e sisudez alemã (o que talvez explique sua falta de magnetismo no caráter), o piloto colocou o povo no Olimpo sagrado dos grandes nomes da Fórmula 1. Alguém cuja vida não se resume à corridas, vitórias e recordes, mas também inclui atividades realizadas e valorizadas por gente como eu e você.

Outros campeões também foram como Schumacher. Gente como Nelson Piquet, que também manteve uma aura de pessoa comum, mesmo após tanto sucesso. No auge de sua carreira, o brasileiro dava tanto valor à vitória quanto a uma noite bem-dormida no seu barco, de preferência em companhia feminina.

Mas há uma diferença marcante entre estes dois, e para notá-la basta reparar nas entrevistas. Piquet sempre disse o que pensava, era de uma época em que isto ainda era possível. Isto feriu muitos sentimentos e fez com que a maioria burra da opinião pública o deixasse de fora dos primeiros lugares nas inúteis listas dos maiores pilotos de todos os tempos (não que o brasileiro se importe com isto). Mas como os italianos podem ter simpatia por alguém que disse que o Comendador Enzo Ferrari estava gagá (quando estava)? Como os ingleses vão gostar de alguém que chamou a mulher do endeusado Nigel Mansell de feia (embora ela seja)?

Michael Schumacher, ícone da Fórmula 1 regulamentada pelos diretores de marketing dos patrocinadores, só demonstra medo nas entrevistas. Eu já estive presente em um par delas, e é um espetáculo interessante: o piloto está sempre aberto para aquelas perguntas já mil vezes formuladas e respondidas. Mas quando o assunto é mais delicado, seu queixo vai ainda mais para a frente, a boca vira um bico e o rosto se retorce. O ser humano que não tem problemas em dividir freadas a mais de 200 km/h se borra de medo de falar alguma coisa errada. E vai bloqueando qualquer tentativa de quebrar sua superfície, com silêncio ou respostas evasivas.

Nisso, ele está no mesmo pé que gente como Fangio, Stewart ou Senna. A falta de eloqüência no seu discurso o deixa tão impenetrável e misterioso como os outros. Subvertendo a operação, Schumacher chega ao mesmo resultado. Resta a nós continuar divagando sobre se não há realmente um segredo que une os, com a licença do Edu, Grandes Senhores das Pistas.

Abraços e até a próxima semana,

Luis Fernando Ramos
GPTotal
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A nossa versão automobílistica do famoso "Carta ao Leitor"

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