Edu,
Sua coluna da última sexta-feira me deu o que pensar. Creio que 90% dos leitores do GPtotal gostavam muito mais da Fórmula 1 de alguma(s) outra(s) época(s) que da de agora. Muita gente fala ou escreve que “a Fórmula 1 de hoje não tem mais graça. Bom mesmo era nos anos 50/60/70/80/90” – caro leitor, escolha sua(s) opção(ões).
Teoricamente, bastaria comprar ou conservar fitas de vídeo e DVDs com imagens dos GPs dos anos 50, 60, 70 e 80 para satisfazer nosso “vício” pelo automobilismo. Mas não é assim. Nossos leitores falam com saudades de fases passadas, mas acompanham atentamente a Fórmula 1 de hoje e a cada GP mandam suas impressões sobre aquilo que assistiram. Portanto, só posso concluir que a F 1 atual, embora desprovida de muitos daqueles atrativos que nos conquistaram no passado, possui atrações (remanescentes dos “bons tempos” ou novas) suficientemente boas para nos motivar a reprogramar nossos horários para assistir aos GPs.
Antes que alguém pense que estou querendo “defender” a F 1 como é hoje, deixo clara minha posição: sinto saudades do final dos anos 70 e começo dos anos 80, os primeiros em que acompanhei a F 1. Gosto muito mais de assistir a uma fita de 1981, por exemplo, do que de 2001. Também considero as décadas de 50 e 60 períodos mágicos da categoria. A última temporada de F 1 que realmente me empolgou foi a de 1986.
Durante muito tempo sustentei nas conversas em mesas de bar e restaurante que a F 1 “de ontem” era maravilhosa, a “de hoje” é um lixo e fim de papo. De pouco tempo para cá (um ano, mais ou menos), minha visão sobre as coisas deixou de ser tão radical.
Por quê? Por vários motivos. O principal foi uma entrevista que fiz por telefone com Luiz Pereira Bueno (piloto que disputou os dois primeiros GPs do Brasil de F 1 e foi ídolo de duas gerações de fãs de automobilismo), no começo deste ano. Entre várias outras coisas, perguntei-lhe se continuava assistindo aos GPs. Sua resposta me surpreendeu:
– É claro que sim! Admiro tremendamente os pilotos de hoje, considero todos eles excepcionais.
– Mesmo com todas as ajudas eletrônicas de hoje? Acho que era muito mais difícil guiar um F 1 nos anos 70 do que hoje – retruquei.
– Cada época tem suas particularidades. Um F 1 atual tem um poder de aceleração e frenagem inacreditável. Em alguns trechos, você vem a 300 km/h e precisa, num espaço de menos de 100 metros, frear, cambiar e virar o volante para fazer uma curva a uns 90 km/h. Seria humanamente impossível, ou no mínimo muito perigoso, um piloto fazer tudo isso em cerca de um ou dois segundos. Por mais que a máquina ajude, o piloto sempre precisará ter talento para buscar limites cada vez mais altos.
Essa conversa me deu muito o que pensar. Luiz, já com 65 anos, foge completamente do padrão dos pilotos aposentados: muitos tendem a considerar que a “sua fase” foi a última a valorizar o talento do condutor.
Tudo na vida evolui. Seria absurdo desejar que a Fórmula 1, representação suprema de excelência em evolução tecnológica, permanecesse imutável durante décadas.
Já escrevi outras vezes que o tempo costuma fazer com que esqueçamos as coisas ruins e façam sobressair as boas. Isso leva à “romantização”, que considero uma forma honesta de distorção da memória. Existem fases de nossas vidas (a adolescência, por exemplo) que quando vivenciadas parecem ser verdadeiras penitências, mas depois de superadas despertam nostalgia e saudade.
Fala-se muito do ambiente amigável dos anos 70, da facilidade de acesso aos ídolos dos anos 80, da coragem dos pilotos dos anos 50, 60 ou 70. Mas tenho diversas reportagens dessas épocas que desmistificam essa impressão de que tudo era divino e maravilhoso.
Exemplos: Chico Júnior, correspondente da revista brasileira Auto Esporte entre 1971 e 1973, escreveu em um desses anos um longo artigo relatando as dificuldades para cobrir um GP de F 1. Registrava a arrogância de muitos pilotos e chefes de equipe (nada diferente de hoje), a dificuldade para conseguir credenciais (muitos organizadores as destinavam a amigos e apaniguados, deixando de fora quem realmente precisava trabalhar) e a falta de estrutura de muitos autódromos para que os jornalistas e fotógrafos (muitos exercendo ambas as funções) fizessem seu trabalho.
Na mesma Auto Esporte, mas em 1982, Mário Pati Jr. (piloto brasileiro que disputou campeonatos de F 3 na Europa em 1977 e 1978) mostrava seu desencanto com a F 1 contemporânea, tanto em termos tecnológicos quanto éticos – seu texto terminava com a frase “A F 1 atual é um saco de mentiras”. Outros registros da mesma época davam conta do quanto o ambiente da F 1 era insuportável.
Franco Lini, jornalista italiano que cobriu o primeiro GP de F 1 (1950) e só parou de acompanhar a categoria quando morreu em 1996. É um cronista que sempre mereceu nossa atenção, pelo conhecimento e vivência de automobilismo (chegou a ser diretor esportivo da Ferrari nos anos 60). Em 1986, Lini deu uma longa entrevista a nosso colega Lemyr Martins, da revista Placar. Entre previsões acertadas e furadas, reclamou da “perda do romantismo” e deu sua opinião sobre o fato de os carros serem pintados nas cores de patrocinadores: “Seria como se a seleção brasileira de futebol deixasse de usar camisa amarela e usasse a que foi imposta por uma marca de refrigerante”. Os patrocínios já faziam parte da paisagem havia quase 20 anos, mas Lini ainda os considerava intrusos no automobilismo “puro”.
Hoje, muitas pessoas falam que a eletrônica “faz tudo para os pilotos”. Um radical como Lini poderia encarar o advento dos aerofólios e dos pneus mais largos (final dos anos 60) da mesma maneira, como uma evolução que tira parte do “trabalho” do piloto.
Fico maravilhado quando as fitas de vídeo me permitem ver os pilotos dos anos 60 fazendo suas peripécias em circuitos muito mais perigosos que os de hoje. Mas muitos pilotos dos anos 60 e 70 lutaram por um automobilismo mais seguro, justamente para que não acontecessem aquelas mortes que Jackie Stewart chamava de “evitáveis”. As pistas e carros mais seguros se tornaram realidade e, de uns 20 anos para cá, tornaram os acidentes com morte ou ferimentos uma exceção e não um fato corriqueiro.
Visto de hoje, pode parecer pouco. Mas não é. Pergunte a Stirling Moss se ele não preferia ter parado de correr por vontade própria e não em decorrência dos ferimentos causados por um acidente.
Também reclamamos muito que os circuitos atuais são feitos apenas para a TV. Concordo plenamente: Tio Bernie tirou boa parte da graça das pistas em nome de facilitar a transmissão dos GPs. Infelizmente, não se pode querer tudo ao mesmo tempo. É justamente por causa da transmissão pela TV que hoje o GPtotal pode exprimir suas opiniões e receber a dos leitores poucas horas depois de encerrados os GPs. Até os anos 60, assistir a todas as corridas de F 1 era algo possível somente a quem comparecesse aos locais das provas. Quantos de nós poderíamos fazê-lo?
E já que estamos falando em TV: os fãs de automobilismo que foram aos cinemas para assistir ao filme Grand Prix, em 1967 e 1968, certamente saíram das sessões sonhando em poder assistir a cada corrida daquele jeito, com câmeras dentro dos carros e tudo. Pois esse sonho tornou-se realidade a partir do GP da Alemanha de 1985, quando inexpressivo piloto francês François Hesnault pilotou um terceiro carro da Renault apenas para fazer funcionar, em caráter experimental, uma câmera de bordo que enviava imagens de dentro do carro ao vivo para telespectadores de todo o mundo. Hoje, imagens de câmeras de bordo são tão corriqueiras que sequer provocam mudanças no batimento cardíaco.
Hoje, sabemos em tempo real quem está sendo mais rápido nos treinos de classificação e conhecemos o grid completo segundos depois de encerrada a sessão. Até meados dos anos 70, a cronometragem era manual. A compilação e organização dos tempos tomados pelos cronometristas demandava um bom tempo – era preciso esperar às vezes meia hora para saber, afinal de contas, qual seria o grid de largada para a corrida do dia seguinte.
Concordo com todos os adeptos da tese de que a Fórmula 1 perdeu muitos de seus atrativos nos últimos anos. Mas não tenho dúvidas de que em muitos casos os ganhos compensam as perdas, e que ela é capaz de despertar nos novos fãs o mesmo fascínio que exerceu sobre todos nós.
Boa semana a todos,
LAP