A Audi “provou seu ponto” ao transformar o Quattro em um grande campeão do mundo do rally e a quebrar o preconceito contra modelos de competição com tração integral. A imagem da marca já havia mudado substancialmente, mas havia ainda um universo que precisava conhecer melhor o que a marca das Quatro Argolas podia fazer em termos de esportividade: os Estados Unidos.
A Audi exportava timidamente seus modelos para o mercado americano desde a década de 70, mas o jogo agora era outro. Agora era tempo de mostrar as qualidades em competições… contra os próprios americanos.
Tudo começou ainda no fim de 1981. John Buffum, um dos mais vitoriosos pilotos de rally dos Estados Unidos, recebeu o que ele mesmo classificou como um “presente de Natal”. Jo Hoppen, que na época era diretor de Porsche e Audi para a América, lhe deu um Audi Quattro para disputar os torneios de rally americanos, sobretudo no mais importante deles, o SCCA ProRally.
Buffum sabia que o Quattro era o futuro e não decepcionou: foi campeão por três anos consecutivos, incluindo duas vitórias (1982-83) em Pikes Peak, a mais famosa prova de subida de montanha dos Estados Unidos.
Para quem não sabe do que se trata, Pikes Peak é uma montanha enorme no Colorado, em meio às Rochosas. Na pista de cascalho (atualmente asfaltada) de exatos 19,9 quilômetros, pilotos enfrentam 156 curvas e ganham a bandeira quadriculada aos 4.301 metros acima do nível do mar, depois de subir nada menos que 1.439 metros no percurso – literalmente de tirar o fôlego, dado o ar rarefeito quando a pista acaba…
Buffum se inscreveu na categoria Unlimited, contra aquelas bajas, protótipos off-road e muscle cars americanos equipados com motores V8 flamejantes que só eles sabem fazer. E mesmo assim, com um carro “comum”, venceu todos eles.
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A Audi, claro, gostou da brincadeira. A partir de 1984, a marca começou a competir oficialmente por lá. Michèle Mouton venceu em 1984 com o Sport Quattro A2, estreando entreeixo mais curto, e em 1985 com o ainda mais agressivo S1. Até mesmo Bobby Unser, campeão de Indy e vencedor de várias edições de Pikes Peak (a família Unser é de Colorado Springs), quis experimentar aquela joia alemã, e acabou estabelecendo um novo recorde da pista em 1986.
Se com o Quattro “padrão”, eles já davam uma surra em todo mundo, e se eles fizessem também um “Quattro Unlimited”? Um ano depois, foi a vez do sempre competente Walter Röhrl ser campeão da pista com o S1 “Pikes Peak”, ainda mais brutal, baixando o tempo de Unser. O carro, com asas enormes, mais parecia um dragão, com direito a chamas enormes saindo do escapamento.
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O aumento de potência daquele bloco de alumínio 5 em linha, 2.1 L, foi digno de aplausos. Dos 340 cavalos em 1982 rompia-se a barreira de 500 cavalos com o S1. Unser precisou domar 540 cavalos, e a versão Pikes Peak de Röhrl foi pra… 598! Nessa escalada, o som treme-chão do motor ganhava uma particularidade absolutamente fantástica: um assobio ímpar da válvula de alívio do turbo. Nenhum motor havia produzido esse som antes, nem mesmo os de Fórmula 1. Mais parecia coisa de nave espacial.
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Aparentemente, aumentos extremos de potência não eram problema para aquele propulsor e ao fim de 1987, a Audi, que já havia feito de tudo no rally, resolveu mais uma vez quebrar paradigmas ao afirmar que a tecnologia Quattro também podia ser campeã no asfalto. Outra aposta de Jo Hoppen…
Olhares tortos, desdém, piadinhas veladas e risadas de canto foram as primeiras reações quando a Audi chegou para disputar o tradicional campeonato Trans-Am em 1988 com o Audi 200 Quattro Trans-Am. Afinal, o que diabos aquele sedã tiozão 4 portas com 5 metros de comprimento e motor em linha estava fazendo em meio aos mais puro-sangue esportivos V8 que a terra do Tio Sam poderia produzir?
Estava lá para ganhar, para desespero dos organizadores e equipes nacionais.
Ao volante dessa nova máquina, o americano Hurley Haywood e Hans Stuck, que quando tinha confronto de agenda, era substituído por Walter Röhrl. A Audi pegou o chassi do modelo 200, colocou uma gaiola de aço para segurança e aumento da rigidez, substituiu a lataria por carroceria de fiberglass com plástico refinada em túnel de vento, e instalou o drivetrain de sempre: o motor 5 cilindros turbo de rally (510 cavalos porque foi obrigada a usar cabeçote de 2 válvulas por cilindro), a famosa tração Quattro… e aquele assobio fantástico de nave espacial.
Ninguém podia acreditar que aquele veículo tão diferente pudesse colocar a concorrência no bolso, mas foi exatamente isso o que aconteceu. Haywood chegou em 2º na primeira etapa, para ganhar logo no round seguinte. Stuck demorou um pouco para pegar a manha do 4×4, mas quando passou a frear com o pé esquerdo nas curvas, passou a vencer com frequência. Röhrl, seu substituto eventual, era um embaixador do rally. Pensa que ele não barbarizou também? Pois venceu duas das cinco provas que disputou.
No total, os três venceram 8 das 13 etapas, e Haywood sagrou-se campeão. Não sem antes a SCAA, organizadora do Trans-Am, impor durante a temporada cem quilos a mais de lastro, um restritor de ar no turbo para diminuir 10% da potência e até mesmo pneus menores (!), já que a concorrência reclamou que os carros alemães tinham borracha muito mais inteira ao fim das corridas.
A imposição de todo esse handicap não adiantou nada, e os pilotos Audi continuavam vencendo. Na chuva, então, era constrangedora a desenvoltura dos Audi em meio a carros muito mais potentes. Como se não bastasse a surra na pista, tinham que aguentar com o sorriso mais amarelo do mundo o pândego Stuck, talvez o alemão mais divertido da face da Terra, tirando sarro e cantarolando o tipicamente alemão “iodelei” no pódio.
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Como a SCAA percebeu que a Audi, apesar de reclamar das sanções, iria continuar competindo, o órgão resolveu ao fim do ano proibir, de uma só vez, carros de tração integral e veículos que não levassem a bordo motores construídos nos Estados Unidos. Só faltou escrever no regulamento 1989 algo como “Parágrafo único: Malditos chucrutes, vocês não são mais bem-vindos aqui!”…
A Audi queria continuar, no bom sentido, estragando festas nos Estados Unidos. Então, correram contra o tempo e criaram outro carro em 1989 para a categoria GTO da rival IMSA Series.
Com um regulamento mais permissivo, criaram do zero um novo chassi tubular, usaram o teto do Audi 90, e criaram um carro ainda mais agressivo. O novo Audi 90 Quattro IMSA GTO chegava ao topo da performance do motor 5 cilindros: 700 cavalos, com um enorme turbo KKK que assobiava ainda mais forte.
A Audi acabou não participando da primeira e da terceira etapas, que eram as endurances das 24 Horas de Daytona e 12 Horas de Sebring. Entre elas, em Miami, Haywood e Stuck acabaram abandonando. Mas a partir da quarta etapa, o novo Quattro começou mais um período de domínio.
Stuck venceu 7 das 12 provas restantes, e tudo leva a crer que, se tivessem começado o campeonato com o carro já pronto, seriam campeões mais uma vez. Faltou muito pouco para vencerem a já experiente equipe Roush-Mercury, que acabou com o título de pilotos e construtores.
Até hoje, Stuck lembra com carinho desse carro, que depois teve no Audi TT RS de rua um motor “neto” do usado nesse tempo na América.
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Os dois anos na América, estragando a festa alheia, foram importantes para a Audi perceber que já podiam correr contra qualquer um. Com moral elevada, eles decidiram que já era tempo de desafiar suas rivais nacionais, ao produzir um novo carro para o DTM alemão na temporada 1990. Era tempo de desafiar Opel, e, acima de tudo, BMW e Mercedes.
Havia, porém, um pequeno problema: o DTM não permitia carros turbo, o que inviabilizava o uso do clássico drivetrain disponível. Só que a Audi se acostumou a pensar diferente. Em vez de projetar um carro compacto e ágil, como era, por exemplo, a lendária BMW M3 E30, pegaram o maior carro e o maior motor possível, tendo a certeza que a tração integral daria conta do resto.
Nascia o Audi V8 Quattro DTM, uma verdadeira limousine de competição. Era muito estranho ver um carro tão grande disputando curvas contra uma M3. E querem saber o fim dessa história? A Audi venceu o DTM 1990 com Stuck e o de 1991, com o novato Frank Biela – que futuramente faria parte do mais que vitorioso projeto de Le Mans da marca a partir de 1999.
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Em apenas uma década, aquela fabricante de carros caretas havia se tornado uma marca autenticamente esportiva, com o mesmo status de uma BMW ou de uma Mercedes. A Audi havia se tornado uma feroz competidora que não precisava mais ter medo de ninguém.
O Audi Quattro foi mais do que a vitória nas pistas. Foi a vitória de uma ideia.
Abração!
Lucas Giavoni
2 Comments
Amigo Lugas,
Uma verdadeira delicia de coluna. Parabens e obrigado !
abs,
Manuel
Que Colunaaaaaça meu Amigo Giavoni!!!
Parabéns!!!
Esses modelos que a Audi fabricou, além de lindos, se tornaram lendários, com aquela cor clássica que deveria ter sido utilizada nos tempos de Le Mans.
Os anos 80 foram anos mágicos para o esporte a motor.
Saudades daquela época.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-Pr