O ano era 1989. Eu estava no terceiro ano da faculdade de jornalismo e desde dezembro de 1988 trabalhava/estagiava na Interlagos Editora, de Luiz Carlos Lima. Autor dos livros “José Carlos Pace-O campeão mundial sem título”, lançado em 1985, e “Nelson Piquet-A trajetória de um campeão”, de 1986, Lima era um idealista: criou a Interlagos Editora unicamente com o objetivo de produzir revistas, anuários e livros sobre automobilismo. O dinheiro, quando existia, era curto. Mas fiquei lá durante um ano e meio, e não posso negar que aprendi muitas coisas sobre jornalismo e sobre automobilismo.
A Interlagos Editora ficava em uma sobreloja, em uma rua que termina no muro do kartódromo de Interlagos. Em volta, havia muitas oficinas de preparação de kart e de carros de corrida, pelo menos uma assessoria de imprensa (a Five Star, atual Mastermidia, de João Alberto Otazu), lojas de vestuário… Enfim, tudo ali girava em torno do automobilismo, e continua assim. Mas a Interlagos Editora não existe mais: fechou em 1991, logo depois do GP do Brasil.
Voltemos a 1989. Havia um piloto que corria na Fórmula Ford com um carro projetado e construído por ele mesmo. Como não quero desmoralizar o santo e sim contar o milagre, vou chamar esse piloto por iniciais escolhidas aleatoriamente: RSC. Ele e seu carro andavam sempre nos últimos lugares, mas conseguiam alguma atenção porque dizia-se que RSC havia construído seu monoposto dentro de um apartamento.
RSC sempre confirmou a história e contava casos gerados pelas reclamações dos vizinhos. As ferramentas e máquinas usadas na construção do carro produziam um barulho terrível, mas a bronca mais pesada teria acontecido no dia em que RSC decidiu afinar a carburação de um motor minutos antes de começar o último capítulo de uma novela das oito… Por razões como essas, ele se imaginava como uma pessoa detestada no prédio. Mas ficou surpreso com a amabilidade de todos quando decidiu mudar de residência. Quando descobriu-se que o chassi do carro não cabia no elevador, surgiram diversos voluntários para ajudar nosso personagem a carregar o chassi oito ou nove andares escadaria abaixo.
Entre lendas e verdades, RSC foi se tornando conhecido no meio. Era impossível não ver com simpatia seu esforço, mesmo que os resultados na pista não fossem nada brilhantes. Para tornar as coisas ainda mais difíceis para ele, o ano de 1989 foi um dos mais competitivos da história da Fórmula Ford brasileira. Quase todas as corridas tiveram 30 ou mais carros, pilotados por nomes como Rubens Barrichello, André Ribeiro, Tom Stefani (o campeão da temporada) e Pedro Paulo Diniz. Todos com equipes muito fortes e correndo com o chassi JQ, o mais competitivo da categoria na época.
Em setembro ou outubro de 1989, RSC apareceu na Interlagos Editora para conversar com Luiz Carlos Lima. Queria ter um assessor de imprensa mas desejava que a função fosse exercida por um jornalista “jovem, sem vícios”. Na verdade, o “vício” que mais incomodava RSC era o de querer um salário decente… Ao pegar um estagiário, RSC pretendia resolver seu problema de divulgação a um preço baixo.
Lima pediu-me uma sugestão e imediatamente mencionei Marcelo Cardoso, um grande amigo desde os tempos de adolescência em Santos. Ele havia mudado para São Paulo e entrou na faculdade de jornalismo no mesmo ano que eu. Estava sem trabalho e já havia acompanhado algumas corridas que eu cobri para a Interlagos Editora.
Antes de dar o “sim” a RSC, tivemos uma conversa com Lima, que aconselhou: “Explore a fundo a história do carro ter sido construído no apartamento. Se depender dos resultados dele, você não vai conseguir nada…” Na verdade, RSC terminara em 4º lugar no Campeonato Paulista de Fórmula Ford no ano anterior. Mas bastava analisar a tabela para constatar como ele havia chegado a esse resultado. Poucos carros largavam a cada etapa, e muitas delas foram vencidas por pilotos que se inscreviam apenas para testar seus carros em condições de corrida. RSC conseguiu alguns terceiros, quartos e quintos lugares – em todos os casos, o último a receber a bandeirada.
Empurrei meu amigo para a fogueira… e ele aceitou. O trabalho começou a tempo de fazer divulgação para a última corrida do ano, em Curitiba. A viagem foi feita de carro (uma Ford Belina que puxava o reboque com o Fórmula Ford). A bordo do carro, RSC, Marcelo e o mecânico Rivaldo, que se espremiam entre as peças e ferramentas. A intenção de Marcelo era chegar a Curitiba e imediatamente começar a percorrer as redações dos jornais para distribuir as fotos e textos, além de “vender” o personagem. Mas só fez isso depois de dar uma força a Rivaldo e RSC para descarregar a “tralha” toda no box.
Com os poucos recursos que tinha à mão, Marcelo conseguiu fazer com que RSC saísse em vários jornais e desse várias entrevistas para rádios. Contamos, é claro, com a ajuda de colegas nossos que trabalhavam nos veículos. No começo de 1990, porém, Marcelo recebeu um convite para trabalhar na Rádio Eldorado e deixou o trabalho com RSC. Em março, veio o infame Plano Collor, que confiscou o dinheiro dos brasileiros e, entre outros malefícios, colocou um ponto final nas carreiras de vários pilotos – inclusive RSC, que passou a aproveitar os GPs do Brasil para trabalhar em equipes de F 1. A última delas foi a Andrea Moda, talvez a mais caricata entre todas as que surgiram na F 1 nos últimos 30 anos.
Depois de alguns anos sem ouvir falar em RSC, perguntei dele a um conhecido engenheiro de uma equipe da F 3 sul-americana. E aí veio a história mais hilariante. RSC fora convidado para projetar um monoposto para uma categoria de base na Europa. Fez todo o projeto, o carro foi construído, mas quando o desceram dos cavaletes as rodas ficaram no ar. Segundo minha fonte, o chassi era mais baixo que o ponto de contato dos pneus com o solo…