Uma das informações mais interessantes disponibilizadas em algumas provas de endurance diz respeito ao ritmo médio de prova de cada piloto, indo além do habitual registro da melhor volta que cada um assinalou durante a corrida, ou do percentual de tempo em que cada piloto esteve ao volante.
Essa, naturalmente, é uma estatística que tem a cara das provas de longa duração, por uma série de motivos. O primeiro e mais importante deles, óbvio, é que um mesmo carro é dividido geralmente por três pilotos, em condições virtualmente idênticas, tornando possível comparar o rendimento de cada um deles. Quer seja através do pico de performance – a volta mais rápida –, quer seja pela média das voltas ditas normais, livres de bandeiras amarelas, slow zones, interferências meteorológicas ou de entrada e saída dos boxes. Também facilita a elaboração da estatística o fato do endurance se dividir em stints habitualmente mais curtos, repetitivos, e pulverizados ao longo da prova. Sempre os mesmos tipos de pneus, sempre os mesmos níveis de combustível, tráfego relativamente constante, e por aí vai. Claro, as condições nunca serão exatamente iguais, mas são próximas o suficiente para que os números apresentem algum grau de coerência, e o piloto mais rápido frequentemente conserve essa condição quer seja no início, no meio, ou no fim da prova, o mesmo valendo para o mais lento ou o intermediário.
Certo, mas se essa é uma informação tão importante e esclarecedora, por que então não a temos no universo dos grandes prêmios?
Bom o primeiro motivo diz respeito à falta de paridade. Na Fórmula 1, desde 1959 dois ou mais pilotos não podem mais dividir o volante de um mesmo carro ao longo de uma mesma corrida – e mesmo quando o faziam, sempre havia diferenças de peso ou nas condições dos pneus. Desde então o máximo que temos são companheiros de equipe, mas nem sempre as condições dos dois carros é idêntica. Da mesma forma, grandes prêmios, por serem mais curtos, apresentam fases bem definidas, durante as quais os tempos de volta oscilam de maneira previsível e padronizada – embora já não tanto quanto noutras eras. E notem que nem chegamos a falar sobre essa regra esdrúxula que determina ao menos um pit stop e a utilização de duas especificações diferentes de pneus ao longo de cada prova, ou de abominações como a obrigatoriedade de fechar o setup do carro no dia anterior, muitas vezes tendo de apostar se irá chover ou não durante a corrida.
Muitos problemas teóricos, como se vê. Mas, se é verdade que não temos meios de fazer algo semelhante ao que é oferecido no endurance, é igualmente fato que volta e meia algum grande prêmio nos confronta com stints individuais impossíveis de serem ignorados, como o que rendeu a Charles Leclerc sua grande vitória em Monza no ano passado. Desde que foi aos boxes e calçou pneus duros o monegasco martelou 35 voltas nas quais a variação entre a mais rápida e a mais lenta foi de meros 977 milésimos. De fato, apenas uma dessas voltas – a segunda, quando ainda estava em processo de adaptação – saiu da casa de 1min23s. Todas as outras 34 estiveram nessa casa, comprimidas num ridículo intervalo de variação de apenas 746 milésimos!
Ok, a Fórmula 1 atual lida muito menos com o tráfego ou com variação de peso do que antigamente, mas nenhuma ponderação contextual poderá reduzir a qualidade da atuação de Charles naquele dia. O mesmo pode ser dito, por exemplo, a respeito da absurda regularidade de Jorge Lorenzo, cujo melhor exemplo talvez resida na soberba vitória no GP da Catalunha de 2018, no qual Lorenzo fez apenas duas voltas fora da casa de 1min40s: a primeira, partindo da imobilidade, e a última, quando já estava administrando o equipamento e celebrando a vitória – e mesmo assim, na volta final ficou menos de 25 centésimos acima desta casa. Notem que estamos falando aqui de uma volta que durava 100 segundos, com uma janela maior, portanto, para variações, e ainda assim Lorenzo flutuou seus tempos de volta entre a 2ª e a 22ª voltas em apenas 685 milésimos! Se reduzirmos o recorte às voltas 2 a 13, quando efetivamente construiu a vitória, a variação foi de apenas 309 milésimos. Uma piada…
O ponto a que quero chegar é que historicamente estatísticas têm valorizado a “melhor volta”, inclusive atribuindo-lhe um ponto em dois recortes históricos, um dos quais encerrado há menos de um ano, mas muito pouco se fala a respeito da qualidade das “piores voltas” de um piloto. E elas são tão importantes, se não mais, do que as melhores passagens para a definição dos resultados. Afinal, é muito mais fácil cometer um erro e jogar fora um punhado de segundos do que estabelecer uma distância verdadeiramente decisiva no intervalo de apenas um giro.
De fato, é a qualidade do stint como um todo – e já houve tempos nos quais ele poderia durar a corrida inteira – que efetivamente define os posicionamentos finais. Quanto melhores as “piores voltas”, menor a pressão para que o piloto necessite se atirar a voltas suicidas, expondo-se a maiores chances de errar, e o equipamento a estresses excessivos. Não por outro motivo soa risível quando algum “especialista” aponta fragilidades no ritmo de prova de Ayrton Senna argumentando que ele assinalou “apenas” 19 voltas mais rápidas.
Ora, se tem algo que a disparidade entre o número de vitórias (41) e de voltas mais rápidas em seu cartel diz a um analista minimamente isento e atento é justamente o contrário, pois se na maioria das vezes em que foi o primeiro a receber a bandeirada Senna simplesmente não precisou fazer a melhor volta da corrida, isso se deu justamente como reflexo da qualidade superior de suas voltas médias, ou de seu racecraft, como a valência costuma ser tratada em vocabulário internacional
Alguns bons exemplos vêm à mente. O primeiro deles remete à vitória em Macau, 1983, dada a quantidade de vezes em que a narração lhe atribuiu voltas no mesmo décimo de segundo, numa pista percorrida num F3 em mais de 2min22s. Não tenho, todavia, a folha de tempos desta prova, para poder fazer uma análise mais aprofundada. Mas tenho a do GP da Alemanha de 1988, e o que ela nos diz flerta com o inacreditável.
Considere que estamos falando sobre uma prova disputada com pista sempre molhada, muito escorregadia, mas com intensidade de umidade variável. Na região da Floresta Negra o volume de spray era por vezes grotesco, dificultando muito o constante trato com retardatários que muitas vezes nem mesmo se davam conta da presença de um carro mais rápido em posição de ataque. Também estamos falando de voltas percorridas em aproximadamente 125s pelos carros mais rápidos, num contexto muito diverso, evidentemente, daquele enfrentado por Leclerc em Monza no ano passado. Pois bem, A volta mais rápida de Senna na prova foi a 18ª, em 2m05s001. Ele não fez, portanto, nenhuma volta abaixo de 2m05s. Todavia, desconsiderando a volta inicial, na qual partiu da imobilidade, e também as últimas oito voltas da prova, após a rodada de Prost, quando começou a girar mais lento por absoluta falta de necessidade, restam 35 voltas disputadas em ritmo normal. Em todas elas – repito, todas elas – Ayrton virou em 2min05s (20 voltas) ou 2min06s (15 voltas). Trinta e cinco voltas disputadas sob chuva variável, em meio a tráfego, spray e alterações de peso e desgaste de pneus, e seus tempos, numa volta que durava mais de dois minutos, variaram apenas numa janela de 1,879s! E isso porque na 35ª passagem ele já começou a aliviar, pois se olharmos para as 34 voltas anteriores a flutuação foi ainda menor, de apenas 1,763s.
Outro bom exemplo a respeito da impressionante regularidade de Senna, sobretudo em meio ao trato com retardatários, nos foi dado no GP do México de 1989.
Ao longo das dez primeiras voltas, a visão foi familiar. Em todas elas Alain Prost cruzou os sensores de cronometragem a menos de um segundo de Senna, repetindo a pressão intensa – e inofensiva – que já havia sido vista nas voltas iniciais em Ímola e Mônaco. A partir da 11ª volta, contudo, Ayrton decide que é hora de acelerar e dá início a uma sequência de voltas absolutamente arrasadora. De imediato ele emenda 13 voltas seguidas em 1min22s, um ritmo que Prost, por mais que tentasse, não era capaz de acompanhar. A essa altura o pneu dianteiro esquerdo do francês já havia desenvolvido algumas bolhas, indicando que a escolha de Senna (dois macios à direita e dois duros à esquerda) havia sido a mais acertada. De fato, Prost vai aos boxes ao fim da 20ª volta, tendo indicado pelo rádio que queria quatro pneus B, mas uma falha de comunicação fez com que a McLaren pusesse três pneus macios, de especificação C, calçando apenas a roda dianteira esquerda com o composto B. Para piorar, a troca foi demorada, tendo custado a Alain mais de 14 segundos.
O contraste entre as corridas de Senna e Prost, a partir deste ponto, é absoluto. Enquanto o francês, com bolhas no pneu traseiro esquerdo, se vê obrigado a retornar aos boxes 14 voltas mais tarde para finalmente calçar seu carro com pneus duros, novamente perdendo 15s na troca, Ayrton segue na pista com os mesmos pneus com os quais havia largado, dando prosseguimento a uma de suas obras-primas. A folha de cronometragem mostra que ele preservou sua borracha durante as 10 primeiras voltas, virando sempre acima de 1min23s enquanto o tanque estava cheio. Todavia, quando entendeu que era momento de apertar o ritmo, a partir da 11ª volta, fez nada menos do que 45 voltas consecutivas abaixo de 1min23s! Ninguém, nem mesmo Prost, era capaz de imprimir tamanha regularidade em meio ao tráfego, tanto mais numa pista que compreendia um longo trecho sinuoso no qual era virtualmente impossível ultrapassar mesmo o mais lento dos retardatários. Realizar uma sequência como essa é a marca definitiva de um piloto refinado, capaz de percorrer longas distâncias em tempos extremamente competitivos e ainda assim poupar pneus e equipamento, tendo na administração do posicionamento um de seus pontos mais fortes.
Guiando assim, de forma tão eficiente e sem qualquer perda de tempo com voltas ruins, Ayrton simplesmente não precisava forçar o ritmo demasiadamente para sustentar uma liderança segura, e prova maior disso é que tanto na Alemanha em 1988 quanto no México em 1989 ele não assinalou a melhor volta da prova. Apesar disso ninguém foi capaz de acompanhá-lo, mesmo quando as melhores voltas da prova indicam que havia adversários em condições de virar tão rápido quanto, ou mesmo mais.
Feitas todas essas ponderações, creio ser positivo que o ponto pela melhor volta não seja mais atribuído, e também que já é hora de compreendermos que muito da qualidade de um piloto não se apresenta em suas melhores voltas, mas no quanto suas piores voltas se mantêm próximas ao topo.
Forte abraço a todos.